Disney, Pixar e ‘Don’t Say Gay’: por que financiam nossos armários?

Pautada por mudanças bruscas de posicionamento e fervorosos embates políticos, a polêmica entre Disney e Pixar com a legislação americana pode dizer muito sobre o conteúdo que o estúdio produz

Entre Red: Crescer é uma Fera, Segredos Mágicos, Dois Irmãos e Luca, vivências queer tem sido postas sobre as telas da Pixar de diferentes formas – algumas mais enrustidas que outras (Foto: Pixar Animation Studios/Arte: Jho Brunhara)

Enrico Souto

Em 25 de fevereiro de 2022, o Orlando Sentinel, principal jornal da cidade da Flórida, Estados Unidos, desvendou uma bomba. Legisladores do estado, envolvidos ativamente com uma proposta de lei homofóbica que tramitava no Congresso, receberam doações milionárias da Walt Disney Company, conglomerado multibilionário de mídia. Hoje, quase três meses depois, após a Disney já ter alterado seu posicionamento, a lei ter sido aprovada e outros escândalos revelados, uma questão continua acaçapada. O que uma empresa deste tamanho teria a ganhar financiando um projeto como este?

Apelidado de Don’t Say Gay (Não Diga Gay, em inglês), o Projeto de Lei Pelos Direitos dos Pais Sobre a Educação foi criado pelo deputado republicano Joe Harding visando a proibição de discussões sobre orientação sexual e identidade de gênero em salas de aulas, do infantário ao 3º ano, ou “de forma que não seja apropriada à idade ou desenvolvimento dos alunos”. Sob a premissa falaciosa de oferecer maior controle sobre a educação de seus filhos, na prática, a ambiguidade da lei busca podar a liberdade de professores para além dos graus de escolaridade previstos na lei, ao passo que cria um ambiente ainda mais hostil para crianças LGBTQIA+ de todas as idades, que muitas vezes sofrem violências dentro de casa e encontram na escola o único espaço de acolhimento.

Trata-se de uma lei imbecil, com motivação e pretensão puramente LGBTfóbicas. À vista disso, é especialmente curioso que a Disney apoie uma proposta como essa, diretamente da Flórida, onde estão instalados seus principais parques temáticos. Além de ter o privilégio de agir com total autonomia e controle no território dos parques, adquirindo poderes equiparáveis ao do próprio governo – apesar de, hoje, essa soberania estar em risco, ainda chegaremos lá –, seu domínio econômico lhe dá um poderio político sem precedentes. Não é difícil imaginar o porquê a marca, com envolvimento notável em produções destinadas ao público infantil, teria interesse em dar suporte a um projeto que visa monitorar justamente essa demografia. 

Cena do curta em animação Out, da Pixar. Imagem retangular e colorida, mostra um casal observando de forma romântica um porta-retrato roxo. Quem segura o objeto é um homem branco, de barba fechada e ruiva, vestindo uma camisa amarela, calças jeans e um gorro azul na cabeça. Atrás dele, segurando os seus ombros, vê-se um homem negro, de cabelos crespos escuros, vestindo uma camisa roxa. Os dois apresentam um sorriso contagiante, e o cenário é um quarto.
O curta Out, traduzido para o Brasil como Segredos Mágicos, é a primeira produção da história da Pixar a apresentar um protagonista assumidamente gay (Foto: Pixar Animation Studios)

O que, de um jeito ou de outro, gerou imensa revolta entre a comunidade e a fanbase queer da Disney. Afinal, se aos olhos do público a empresa diz apoiar a causa LGBTQIA+, debaixo dos panos ela não vê problema algum em contribuir para a violação e subalternização desse mesmo grupo. Com a acusação, Bob Chapek não demorou a se retratar. Em nota para seus funcionários, mais tarde obtida pela imprensa, o CEO da Disney admitiu a contribuição financeira aos políticos republicanos, apesar de negar que as doações tivessem qualquer conexão com a lei. A respeito do seu silêncio ensurdecedor sobre o tema por meses, Chapek optou pela covardia e alegou que declarações corporativas são pouco efetivas em conjunturas políticas como essa.

“Acredito que a melhor maneira de nossa empresa trazer mudanças duradouras é por meio do conteúdo inspirador que produzimos, da cultura acolhedora que criamos e das diversas organizações comunitárias que apoiamos”, aponta o CEO. Porém, por trás dessa declaração florida, há um cenário muito, muito mais sombrio. Em resposta, funcionários LGBTQIA+ e aliados da Pixar, estúdio pertencente à Disney, assinaram declaração pública não apenas repudiando a atitude da companhia do rato, como também escancarando atos deliberados de censura desses executivos contra elementos abertamente queer em suas produções.

Quem acompanha o histórico das duas empresas já sabe que a relação sempre esteve entre tapas e beijos. Esses conflitos existem desde que a Disney era responsável unicamente pela distribuição dos filmes da Pixar, e a negociação para aquisição do estúdio em 2006 foi extremamente conturbada. Hoje, a rixa continua, com a Pixar acusando seus superiores de barrar a circulação dos seus filmes no cinema – mesmo porque, apesar de justificadas pela pandemia, obras de outras produtoras, como Marvel Studios e Walt Disney Animation, continuaram ocupando as telonas. Porém, nenhum desses casos atravessavam o escopo do conteúdo, não como agora.

Fotografia retangular e colorida, mostra Bob Chapek, um homem branco, careca, vestindo um terno preto e camisa branca, discursando em frente a um púlpito, onde apoiam-se três microfones. Suas duas mãos se apoiam ao púlpito, que apresenta uma placa azul com a silhueta branca de um castelo, e seu olhar é sério e preocupado. O fundo azulado está desfocado.
Outros estados americanos se manifestaram contra a lei homofóbica da Flórida; foi o caso de Eric Adams, prefeito de Nova Iorque: “venha para uma cidade onde você possa dizer e ser quem quiser”, afirmou (Foto: Tyrone Siu)

A carta inicia expondo algumas das maiores hipocrisias do discurso de Bob Chapek. Enquanto a Disney diz que apresenta uma longa trajetória de suporte à comunidade LGBTQIA+, os trabalhadores da Pixar rebatem que a empresa nunca havia manifestado apoio público à causa antes de 2018. Se Chapek argumenta que declarações corporativas não são eficazes, seus funcionários demonstram como isso não só nunca impediu o rato de liderar ações políticas, mas também como essas ações apresentam sim efeitos factíveis, dentro e fora dos Estados Unidos. No entanto, os tons mais fúnebres da nota surgem somente no parágrafo seguinte: 

“Nós da Pixar testemunhamos pessoalmente belas histórias, cheias de personagens diversos, voltarem das críticas corporativas da Disney trituradas em migalhas do que já foram. Quase todos os momentos de afeto abertamente gay são cortados a pedido da Disney, independente de quando há protesto tanto das equipes criativas quanto da liderança executiva da Pixar. Mesmo que a criação de conteúdo LGBTQIA+ seja a resposta para corrigir a legislação discriminatória no mundo, estamos sendo impedidos de criá-lo.”

Ou seja, muito além de um financiamento externo, a LGBTfobia da Disney se trata de uma política interna, aplicada violentamente contra estúdios subordinados. Por trás do discurso vazio de “conteúdo inspirador” e da venda extensiva de merchandising com estampas coloridas, apenas sobra o preconceito. Todavia, vale dizer que, apesar de apavorante, essa notícia está longe de ser surpreendente. A Disney tem um vasto histórico de queerbaiting, ou seja, obras que codificam um ou mais personagens com características queer, mas nunca se comprometem em se aprofundar ou mesmo em declarar essa identidade abertamente E a Pixar não sai ilesa disso.

Cena do filme em animação Procurando Dory. Imagem colorida e retangular, mostra duas mulheres olhando para o chão assustadas. Uma delas é branca, de cabelos escuros e longos, vestindo uma camisa cinza e uma blusa amarrada na cintura, e a outra é branca, de cabelos curtos e escuros, vestindo uma jaqueta roxa e uma camisa listrada branca e preta, enquanto segura uma mamadeira verde. Ao fundo, pode-se ver um céu azul limpo e algumas árvores e prédios.
Durante uma rápida cena de Procurando Dory, os protagonistas interagem com duas mulheres ambiguamente próximas, o que foi considerado na época como ‘o primeiro casal lésbico da Pixar’; respondendo aos rumores, o diretor Andrew Stanton concluiu que “elas podem ser o que você quiser que elas sejam” (Foto: Pixar Animation Studios)

Sim, “o primeiro personagem gay da Disney” já se tornou uma platitude. Porém, fato é que o primeiro personagem ‘abertamente’ gay a aparecer em uma produção da Pixar foi em Dois Irmãos, de 2020: Specter (Lena Waithe), uma policial de um olho só, com menos de cinco minutos de tela, que surge em uma cena apenas para pronunciar uma frase solta e ambígua em que ela comenta que a filha de sua namorada a fez arrancar seus cabelos. Uma personagem sem história, sem subjetividade, utilizada somente como um broche para que a empresa possa vangloriar-se sem remorsos por sua suposta diversidade. O que não impediu que o filme fosse banido ou alterado na Rússia e em vários países do Oriente Médio.

Mais recentemente, o assunto voltou à tona com o lançamento de Red: Crescer é uma Fera. Durante o teaser de anúncio do longa, aparecia no canto superior esquerdo da tela, em uma cena de menos de um segundo, um casal gay de mãos dadas caminhando pela calçada. Ao passo que alguns parabenizaram a empresa pela atitude, enxergando a inserção como uma forma de naturalizar a existência dessas relações no cotidiano, outros viram com maus olhos. Dada a experiência prolífica de fãs da Disney com queerbait, não é nada mais que frustrante assistir essas referências escondidas enquanto personagens queer nunca são plenamente assumidos. Uma representatividade comedida, ainda presa dentro do armário.

Cena do filme em animação Dois Irmãos, da Pixar. Imagem retangular e colorida, mostra uma mulher com características físicas semelhantes a figura mitológica do Ciclope: um único chifre acima de sua cabeça, apenas um olho e pele roxa. Ela veste uma farda policial azul, e conversa com um homem de bigode que está a sua frente. O cenário é noite, apenas iluminado pelas luzes de uma viatura.
Esforços de censura da Disney vieram inclusive contra elementos de cenário que remetessem a identidades LGBTQIA+; fonte interna da Pixar relatou à Variety um caso em que um adesivo de arco-íris colocado janela de uma loja foi removido por ser considerado “chamativo demais” (Foto: Pixar Animation Studios)

Ao assistir propriamente o filme, além de outros figurantes LGBTQIA+ surgindo ao fundo de cenas pontuais, nos deparamos com insinuações mais profundas. A personagem Priya (Maitreyi Ramakrishnan), do grupo de melhores amigas da protagonista, parece criar uma conexão diferente com outra garota da escola. No decorrer de uma festa de aniversário, ambas começam a dançar juntas, encarando-se com seus olhares vazios dignos do arquétipo emo que encarnam. Priya, frequentemente incompreendida por seus colegas pela sua personalidade inusitada, encontra enfim identificação em alguém. Tudo ao mesmo tempo que suas amigas trocam cutucadas e olhares maliciosos, dando a entender que ocorria ali um flerte.

Em uma conjuntura diferente, provavelmente esse elemento de Turning Red reforçaria as críticas feitas contra seu teaser. Contudo, assistindo a essas cenas após os eventos do início de março, o sentimento é diferente. Não mais vê-se uma empresa gananciosa que investe em conteúdos apelativos para a comunidade queer, porém ocultos o suficiente para que o público conservador continue lhes entregando seu dinheiro, mas sim um estúdio que luta por migalhas de representação em suas obras, enquanto subordinado por uma companhia autoritária e abusiva. De uma hora para outra, essas insinuações subliminares passaram de um ato de má-fé para um manifesto de coragem e resistência de um grupo de trabalhadores que, mesmo extensivamente suprimidos, se recusam a sumir.

Cena do filme em animação Red: Crescer é uma Fera. Imagem retangular e colorida, vemos duas adolescentes dançando juntas em uma festa cheia de luzes coloridas, enquanto encaram uma a outra com um olhar sério e vazio. A primeira garota, à esquerda, é negra, com cabelos escuros e lisos que formam cachos na ponta. Ela veste uma camisa de manga comprida amarela e listrada, e usa óculos de armação circular no rosto. A outra garota, da esquerda, é branca, com cabelos lisos, tingidos em azul e roxo, presos por uma tiara preta.. Ela usa uma maquiagem escura no rosto e veste uma camiseta preta.
Alguém mais reparou na iluminação bissexual aqui? (Foto: Pixar Animation Studios)

Pensando nisso, é difícil não voltar os olhos a outro episódio recente envolvendo o nome da Pixar. Isso porque, em 2021, o estúdio foi responsável por Luca, o filme mais não-assumidamente gay da história. Quem poderia imaginar que a trajetória de dois monstros marinhos que, mesmo aparentando ser iguais a qualquer outra criança, precisam esconder sua verdadeira essência para que possam ser aceitos em um ambiente hostil, compartilharia semelhanças tão profundas com a experiência de pessoas queer? A jornada de um garoto que, ao alcançar a adolescência, descobre um fascínio por um mundo que sempre foi ensinado a odiar?

Ainda por cima, o longa centraliza-se na relação de dois meninos, cujo maior sonho é comprar uma única moto – onde dividem o assento – para que possam pegar a estrada e construir uma vida juntos, longe de todo o preconceito e discriminação do mundo. Do início ao fim, a relação de Luca (Jacob Tremblay) e Alberto (Jack Dylan Grazer) é retratada como um romance proibido, com direito até a uma cena de despedida na estação de trem, um clichê nada sutil em narrativas românticas. E acredite, essa não é a primeira nem a última vez que apontam isso. Leituras queer de Luca pipocaram antes mesmo do seu lançamento, quando fãs começaram a identificar simetrias estéticas muito marcantes com o longa Me Chame pelo Seu Nome que, tal qual a animação, se trata de um romance gay coming-of-age com a Riviera Italiana como plano de fundo.

São elementos que surgem de forma tão visível e ostensiva que é difícil imaginar que ninguém dentro da equipe criativa tomou essa decisão conscientemente. Como Luca passou por tantas mãos e nenhuma pessoa se atentou a esse detalhe? Com os murmurinhos circulando, o diretor Enrico Casarosa não demorou para negar veementemente que uma ‘alegoria gay’ estava nos planos do estúdio. “Nós realmente miramos em uma história pré-pubescente. É tudo sobre amizades platônicas”, assegurou em entrevista. O que é curioso, já que isso nunca impediu nenhuma peça de mídia de retratar romances com crianças ‘pré-pubescentes’. Afinal, por que Casarosa sentia-se tanto na obrigação de isolar completamente seu filme de um possível espectro LGBTQIA+?

Cena do filme em animação Luca. Imagem retangular e colorida, mostra Alberto, um garoto pardo de cabelos encaracolados e olhos verdes, vestindo uma regata amarela e boina marrom. Ele está com os olhos marejados, um sorriso no rosto, enquanto segura nos ombros e olha nos olhos de Luca, um garoto branco de cabelos escuros que veste uma camisa branca. Luca se apresenta de costas para a câmera e segura um dos braços de Alberto. O fundo, desfocado, mostra uma parede de pedras cinzas.
“Você me tirou (do armário) da ilha, Luca, eu vou ficar bem” [Foto: Pixar Animation Studios]
Até que, depois de meses insistindo incansavelmente nessa posição, o homem cedeu. Entrevistado pelo The Wrap em 5 de janeiro deste ano, quando a conversa sobre a obra já havia cessado, Casarosa finalmente admitiu que a equipe criativa “conversou” sobre o potencial romântico do relacionamento entre Luca e Alberto. Ao que rapidamente acrescentou que “não conversaram tanto”, reafirmando a antiga retórica de ‘pré-romance’. Sabendo hoje da batalha interna que a Pixar tem travado, qual a probabilidade de que o estúdio tenha inserido no filme uma visão queer – consideravelmente ambígua e passável pelos executivos da Disney –, escondendo esse fato compulsoriamente até que a poeira abaixasse e eles pudessem enfim abordá-lo a público, ainda que de maneira sutil?

Infelizmente, essa suposição pertencerá para sempre ao plano das teorias da conspiração. O que é possível dizer assertivamente é que, para além da Pixar, este é um padrão de representação que permeia todas as produções da Disney. De A Bela e a Fera à Star Wars, as inserções rápidas e facilmente editáveis de cenas dúbias com personagens sem relevância são as mesmas. É verdade que, no campo da Televisão e do streaming, narrativas queer são bem mais estimadas. Owl House, Star vs. As Forças do Mal – ambas já canceladas – e mesmo produções menores da Pixar – é o caso do curta Out – são exemplos de obras saídas dessas mídias que comentam sobre temas LGBTQIA+. Porém, está longe do suficiente.

Após mais de dois meses de polêmica, o cenário se transformou incontáveis vezes para o lado da Disney. À primeira vista, seu CEO demorou a tomar um partido. Na tentativa de exercer um papel mediador e, supostamente, não privilegiar nenhum dos dois lados, Chapek prometeu doar 5 milhões de dólares ao Human Rights Campaign, o maior grupo de defesa dos direitos civis LGBTQIA+ nos EUA, ao mesmo tempo em que se reuniu pessoalmente com o governador republicano da Flórida, Ron DeSantis, sob pretexto de discutir ‘preocupações’ sobre as implicações negativas da lei. Em retorno, o HRC rejeitou prontamente o dinheiro, exigindo por ações verdadeiramente significativas por parte da Walt Disney Company. “Hoje, eles deram um passo na direção certa. Mas foi meramente o primeiro passo”, concluiu o presidente da organização.

Cena do filme em animação Luca. Imagem retangular e colorida, mostra duas crianças, em um quarto desarrumado, lendo juntos livros de astrologia. A primeira, sentada na cama com um livro apoiado nas pernas e a cabeça escorada em uma das mãos, é Giulia, uma garota branca, de cabelos ruivos, que veste uma camiseta listrada branca e laranja e calças jeans largas. O segundo, sentado de joelhos enquanto lê focado um grande livro, está Luca, um garoto branco, de cabelos lisos escuros, que veste uma camisa branca e uma bermuda azul.
Fontes que conversaram com a Variety também afirmaram que a personagem Giulia, de Luca, foi pensada como lésbica, mas esse elemento foi retirado da versão final pois a equipe encontrou dificuldades em introduzi-lo sem incluir um interesse amoroso para ela (Foto: Pixar Animation Studios)

Assim que as respostas inflamadas de funcionários e organizações vieram à tona – e esse discurso centrista não colou –, a Walt Disney passou por uma mudança radical de posicionamento. Poucos dias depois da declaração da Pixar, Bob Chapek se pronunciou de forma muito mais categórica, anunciando que lutaria pela revogação da lei e pausaria todas as doações políticas no estado da Flórida, que passarão por uma revisão que garantirá seu alinhamento com os valores da empresa: “Vocês precisavam de mim para ser um aliado mais forte na luta pela igualdade de direitos e eu lhes decepcionei. Eu sinto muito”.

Na esfera de conteúdo, a surpresa foi um vazamento feito por fontes de dentro da produção de Lightyear, próximo lançamento da Pixar, revelando que Hawthorne, principal personagem feminina do longa, teria um relacionamento significativo com outra mulher. E não apenas isso, como também que um beijo entre as duas havia sido retirada do corte final e, após o escândalo da lei Don’t Say Gay, a cena foi restaurada. O que já é um enorme ponto de virada para a representatividade queer nas animações – em geral –, esse poderá ser o primeiro beijo gay da história de um filme da Pixar. De um jeito ou de outro, os riscos que inúmeros funcionários do estúdio tomaram ao enfrentar seus superiores da Disney parece, ao fim, ter gerado efeitos significativos para a comunidade.

Mas, é claro, o outro lado não ficaria calado. Primeiro, a lei Don’t Say Gay foi efetivamente aprovada, com vias de entrar em vigor em 1 de julho deste ano. Indo além, no que parece um ataque direto do governo da Flórida contra a Disney, após declarar oposição a seu projeto, o senado do estado aprovou em abril uma lei que dissolve o status de distrito especial dos parques temáticos da Walt Disney World – aquele que lhes dava completa autonomia em seus territórios. Em contrapartida, se o rompimento desse regime, vigente desde 1967, poderia significar um enfraquecimento político da companhia na região, o tiro saiu pela culatra agora que os condados de Orange e Osceola herdarão uma dívida de mais de um 1 bilhão de dólares. 

Cena do filme em animação Lightyear. Imagem retangular e colorida, mostra Hawthorne, uma mulher negra com cabelos trançados e vestindo uma roupa de astronauta verde e branca, apontando seu dedo indicador para frente. Ao fundo, que está desfocado, pode-se ver uma base espacial.
Steven Clay Hunter, o diretor do curta Out, que já não trabalha mais para a Pixar, também se pronunciou contra a lei Don’t Say Gay: “Não podemos assumir que estas leis não sejam prejudiciais, preconceituosas e, francamente, maléficas. Nós não vamos embora. Não vamos voltar para dentro do armário” (Foto: Pixar Animation Studios)

Quem diria que, de uma hora para outra, a Disney iria de companhia reacionária a forte aliada da comunidade queer. Porém, há um aspecto questionável em como os eventos se sucederam. Será que a Walt Disney Company realmente mudaria seu ponto de vista dessa forma tão brusca sem nenhum benefício pessoal por trás? A Disney, como o colossal conglomerado de mídia que é, sempre colocará o capital em primeiro lugar. Na realidade, seu apoio às demandas LGBTQIA+ não é tão diferente de sua omissão anterior. No fim, tudo não passa de uma ação intensiva de publicidade e rebranding para limpar a reputação da marca, desatrelá-la do imagético homofóbico engendrado durante a polêmica Don’t Say Gay e recuperar o público progressista que havia sido perdido. E, acredite, tem dado certo. 

Pesquisando hoje por “Disney” e “Don’t Say Gay” no Google, dominam o topo da aba notícias que proclamam que a empresa está “em guerra contra o governo da Flórida” e que a colocam como sua principal opositora. Sim, é isso mesmo. O rato conseguiu apagar quase que totalmente seu envolvimento com a lei homofóbica, invertendo a narrativa a seu favor. O poder político e econômico da Disney é tamanho que ela provou deter o controle até mesmo sobre a nossa história. Entretanto, é preciso sempre lembrar: todas as atitudes da Disney visam somente o lucro, e se isso significa continuar administrando o interesse de países conservadores e legislações LGBTfóbicas, a troco de financiar nossas mortes e pisar em cima de nossos corpos putrefatos, assim será. Ao construirmos nossa luta, não podemos esquecer quem é o verdadeiro inimigo.

Cena do filme em animação Luca, da Pixar. Imagem retangular e colorida, mostra Luca, um garoto branco, de cabelos escuros e vestindo uma camisa branca, apontando de forma acusatória para Alberto, um garoto com características físicas semelhantes às de peixes: pele roxa e escamosa, cabelos de corais e dentes pontudos, e que veste uma regata amarela e bermuda marrom. Ele está em uma praia, na parte rasa do mar, iluminado pelo pôr-do-sol enquanto expõe um olhar entristecido para Luca.
Quanto tempo até a Disney decidir se voltar contra nós de novo? (Foto: Pixar Animation Studios)

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