A Mãe: nas periferias de São Paulo, a ditadura nunca acabou

Presente na seção Mostra Brasil da 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, A Mãe estreou nacionalmente no Festival de Gramado (Foto: CUP Filmes)

Vitória Gomez

A ditadura nunca acabou. A ditadura só vai acabar com o fim da Polícia Militar, porque ela é muito presente dentro do cotidiano da periferia”, defende Débora Maria da Silva, fundadora do grupo Mães de Maio, em sua participação em A Mãe. Integrante da 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, na seção Mostra Brasil, o longa mescla ficção à realidade para escancará-la: para Maria (Marcélia Cartaxo), mãe solo e residente da periferia, o desaparecimento do seu filho pelas mãos da polícia e a burocracia para encontrá-lo se assemelha a incontáveis outros casos do cotidiano da Grande São Paulo.

Moradora do extremo leste – como o filho adolescente canta em suas rimas -, a protagonista sustenta a casa sozinha com o trabalho de camelô, no centro da cidade. Quando retorna ao lar, Valdo (Dunstin Farias) não voltou. Não há notícias dele na escola, entre os amigos próximos ou no boca a boca da vizinhança. Daí em diante, a personagem, interpretada visceralmente por Cartaxo, inicia uma incansável jornada de investigação e busca para encontrar o primogênito – ou, pelo menos, saber de seu paradeiro. Recorrendo até ao traficante do bairro, Maria descobre que a polícia pode ter sido a responsável pelo desaparecimento do filho.

Marcélia Cartaxo já venceu o Urso de Prata de Melhor Atriz no Festival de Berlim por A Hora da Estrela, em 1986, e o Kikito de Melhor Atriz em 2019, por Pacarrete (Foto: CUP Filmes)

A Mãe não dá trégua. Atormentada pelo desaparecimento do filho, o cotidiano de Maria se torna ainda mais cansativo com o peso esmagador da dúvida e da incerteza. A protagonista roda a vizinhança e os locais que Valdo frequentava até partir para as delegacias, onde tira as mesmas conclusões: nem a polícia, instituição supostamente encarregada de proteger o adolescente, está disposta a ajudá-la. Para piorar, denunciando à PM que a própria organização pode ter encabeçado o desaparecimento do jovem, Maria arruma um novo problema.

Graças ao design de produção de Karla Salvoni, as residências e arredores em que A Mãe passa são familiares, amplificando ainda mais o desespero com os rumos que a investigação toma. Desde o centro de São Paulo, com suas inconfundíveis galerias e assentos de ônibus, até a casa da personagem principal, o cenário é o de uma família brasileira – esta, formada por mãe e filho. Quando o enquadro da polícia invade porta adentro, o refúgio em que Maria poderia encontrar paz e descanso, o único em que Valdo poderia estar a salvo, mas não está, é violado. Nem dentro de suas quatro paredes ambos estão seguros, o sentimento de impotência cresce, e o trabalho de direção de Cristiano Burlan nos angustia junto dà Mãe.

Na pele da protagonista, Marcélia Cartaxo canaliza a inquietação e a desesperança de uma matriarca que não sabe o paradeiro da sua criança. Ela externaliza sua dor gritando com os negligentes agentes militares, desafiando os moradores locais por informações e rindo ao, de frente para um corpo morto no Instituto Médico Legal, constatar que aquele não é seu filho. Há esperança? Se sim, o sentimento está adormecido. Depois de dias sem ter sinal de Valdo, o roteiro de Cristiano e Ana Carolina Marinho faz a personagem procurar alento de outra maneira: Maria recorre às instituições de mães de filhas e filhos desaparecidos.

As rimas cantadas por Valdo são de autoria do seu intérprete, Dunstin Farias (Foto: CUP Filmes)

A impotência frente à atuação da polícia e a dificuldade em enfrentar as burocracias da máquina militar levam Maria e as integrantes dos grupos Mães da Sé e Mães de Maio – e muitas outras no Brasil – a resistirem juntas à opressão do Estado em localizar essas pessoas. “Como mãe pobre e mãe negra, a gente não pode perder as forças jamais”, diz Débora Maria da Silva, que interpreta a si mesma no longa-metragem. Símbolo de força, ambas mulheres, a fundadora da organização e A Mãe que dá nome ao filme, cutucam e lutam contra a atuação assassina da Polícia Militar nas periferias de São Paulo.

Inclusive, o diretor Cristiano Burlan não surgiu com a ideia de A Mãe da observação de outras realidades. Criado no Capão Redondo, ele próprio viu o irmão ser assassinado por agentes policiais, o que rendeu o documentário Mataram Meu Irmão (2013). Antes, Construção investigava a morte do pai, falecido em uma obra em que trabalhava por descuidos do local. Em 2017, fechando a série de produções documentais que ficou conhecida como Trilogia do Luto, Elegia de Um Crime reconstitui a morte da mãe, assassinada pelo parceiro. Assim como nas obras passadas, o longa mais recente de Burlan segue trazendo humanidade às populações periféricas.

Exibido no Festival de Málaga, A Mãe foi filmado no centro de São Paulo e no bairro Jardim Romano, na zona leste (Foto: CUP Filmes)

Se a violência policial nas periferias é constante no cotidiano das populações, A Mãe escancara a realidade. O filme pouco se preocupa em mascarar a história em prol de uma narrativa facilmente digerida – a conclusão nos minutos finais é tão desesperadora quanto os primeiros 90 -, e projeta a realidade nua e crua da vulnerabilidade nas mãos daqueles que juraram proteger as comunidades. A máquina militar, além de matar, acoberta os assassinatos e as investigações em nome dos seus. Mas A Mãe sabe disso. E nós também.

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