Em Ammonite, só o amor escapa do tédio

As duas mulheres estão sentadas nas pedras olhando para o mar. Saoirse, à esquerda, está usando um vestido azul claro e Kate, à direita, está de preto
Ammonite foi exibido pela primeira vez no Festival de Cinema Internacional de Toronto, em uma edição majoritariamente virtual que homenageou Kate Winslet (Foto: Reprodução)

Vitória Lopes Gomez

Enquanto as ondas quebram na costa nublada de Lyme Regis, na Inglaterra, a paleontóloga Mary Anning (Kate Winslet) caminha quieta, junto de seus novos achados. Os primeiros minutos do longa, passado em 1840, já ditam o ritmo para o restante do filme: acompanhamos a vida pacata e solitária da introspectiva Anning, que prefere a companhia dos fósseis a pessoas. A morbidez de seu cotidiano em Ammonite só é interrompida com a chegada de Charlotte (Saoirse Ronan), que, tendo de ficar sob os cuidados de Mary, muito aos poucos, passa a se aproximar dela.

Ammonite, o segundo longa do inglês Francis Lee, imediatamente rendeu comparações com o francês Retrato de uma Jovem em Chamas, pela semelhança na ambientação e na temática. O filme também lembra o trabalho anterior do diretor, God’s Own Country, em que um homem do interior vê seu cotidiano mudar com a chegada de um migrante romeno. Mas, semelhante ao primeiro e ao contrário do segundo, onde o encontro inicial entre os personagens é intenso e carnal, em Ammonite, o romance entre as protagonistas não é imediato, mas se dá conforme a convivência, a qual lutamos para acompanhar.

Pôster do filme Ammonite. Os rostos das atrizes se encontram sobrepostos, o nome do filme aparece no canto inferior direito, e acima dele está o nome das atrizes, Kate Winslet e Saoirse Ronan
Além das protagonistas, o elenco ainda conta com Fiona Shaw, James McArdle e Alec Secareanu (Foto: Reprodução)

Mary Anning, apesar de conhecida no ramo da paleontologia, vive na pobreza, já que sua fama não garante seu sustento na sociedade patriarcal inglesa. Escavando fósseis na praia e vendendo a turistas, ela mal consegue sustentar a mãe doente, interpretada por Gemma Jones, que mora com ela. Quando Mr. Murchison, também paleontólogo, entra em sua loja e oferece pagamento para que Mary lhe mostre suas técnicas, apesar de contrariada, ela aceita.

Mas Murchison, mesmo sendo menos conceituado e experiente que Anning, é mais requisitado na profissão, majoritariamente masculina, e tem de viajar a negócios. Não querendo levar a mulher, que sofre com a perda recente de um bebê, ele exime seu peso na consciência ao pagar Mary para fazer companhia à esposa em sua ausência (que não será longa). Sem poder se dar ao luxo de negar a oferta, a paleontóloga passa a incluir Charlotte em suas excursões à praia, como acordado.

Kate Winslet está sentada à frente de um estante com pedras. Ela usa para a janela, está usando um vestido estampado em xadrez azul com gola branca
O diretor se inspirou na figura real de Mary Anning para escrever Ammonite (Foto: Reprodução)

A relação inicial das duas combina com Lyme: fria e apática. As cores sóbrias da cidade, das vestimentas e do interior da casa de Mary ressaltam a morbidez e a solidão, assim como o desconforto na presença uma da outra. Charlotte, que vem da capital e tem uma vida de luxo com o marido, se vê obrigada a viver nas mesmas condições que Mary, com pouca higiene e comida e fazendo trabalhos braçais. Os comportamentos, as roupas e a decoração da casa de cada uma explicitam a diferença entre as classes sociais.

Além dos aspectos visuais, o trabalho de som também tem parte importante na ambientação. As ondas do mar, os sons da praia e das rochas, que muitas vezes se sobressaem aos poucos diálogos, contribuem para a imersão no cotidiano de Ammonite e, ao criarem uma atmosfera sensorial, ajudam, inclusive, na construção da intimidade entre as protagonistas. As velas mais ardentes e o som do fogo queimando, por exemplo, se acentuam conforme as duas se aproximam.

Kate está à frente, com cara de cansada e segurando algo com as mãos. Ao fundo e desfocada, Saoirse segura a outra extremidade da carga delas. Ambas estão de vestido azul escuro
A trilha sonora instrumental, composta por Dustin O’Halloran e Volker Bertelmann, complementa os sons ambientes de Ammonite (Foto: Reprodução)

A situação piora quando Charlotte fica doente e Mary tem que se dedicar aos cuidados da mulher, que, sem ter com quem ficar, passa a morar em sua casa. Após a melhora, as duas, que agora vivem juntas, começam a se aproximar discretamente. Até então, o ritmo do filme, apesar de fazer jus à ambientação do século 19, acompanha até demais a vida de Anning: a lentidão e pacacidade passam a sensação da melancolia e do tédio da rotina retratada, mas, ao fazê-lo, corre o risco de perder a atenção do espectador.

É só após uma aproximação maior entre as duas que o ritmo engrena. Quando, em uma das excursões à praia, Charlotte ajuda Mary a escavar uma amostra de amonite, a relação entre elas escala. Anning, tão acostumada a viver e trabalhar sozinha, aceita a ajuda e começa a se abrir mais para a convidada, que já não é mais tão indesejada.

A amizade que surge, no entanto, revela ser mais do que isso. Apesar da previsibilidade do romance, são poucos os diálogos que levam a essa conclusão e os toques e olhares discretos, que as atrizes dominam, são os responsáveis por criarem a tensão entre Mary e Charlotte. Seja pela urgência da paixão reprimida ou pela volta cada vez mais próxima do marido de Charlotte, a partir do momento que, finalmente, as duas se rendem aos toques uma da outra, Ammonite desempaca.

As duas estão próximas uma da outra na praia. Saoirse está com o rosto colado no de Kate, que sorri
Apesar das personagens serem figuras reais, o diretor tomou liberdade para criar o romance, já que não há indícios claros da sexualidade ou de um envolvimento romântico entre as duas (Foto: Reprodução)

Enquanto o mundo ao redor continua pacato e frio, Mary e Charlotte esquentam. Porém, se por um lado a mudança ilustra como a relação escapou da rotina, por outro, quebra a sutileza estabelecida entre as duas, já que a narrativa não se sustenta assim e rapidamente volta ao que era antes. A incompatibilidade no tom fica clara em uma das cenas de sexo: as protagonistas começam discretas, como a dinâmica entre elas dita, mas logo tornam o contato quase emergencial. A intimidade construída se mantém graças à performance de Kate e Saoirse, que passam a intensidade do momento, mas o que poderia representar o clímax da relação se torna mais um ato carnal e imediato do que romântico.

Embora o tom acelerado de Ammonite se limite às cenas de sexo, a volta à lentidão, em um primeiro momento, não significa o fim da relação, mas torna-se novamente condizente, com o retorno do marido de Charlotte e sua partida. Porém, diferentemente de Retrato de uma Jovem em Chamas, o final de Mary e Charlotte é um tanto mais esperançoso por não saber como acabar, mesmo que a resolução rápida fuja (mais uma vez) do ritmo proposto até ali.

Kate e Saoirse se olham com ternura e carinho. Elas estão num banco florido e vestem vestidos com detalhes em vermelho e branco. Kate segura a mão de Saoirse perto de seu peito
Na cena de sexo, Winslet e Ronan tomaram o controle: as próprias atrizes, confortáveis no set, coreografaram as ações de suas personagens (Foto: Reprodução)

Com os poucos e mal trabalhados diálogos do frágil roteiro, que também ficou por conta de Lee, o filme cairia por terra sem atuações excepcionais. Felizmente, a produção não poupou e as escolhidas foram as conhecidas do Oscar Kate Winslet (seis vezes indicada e vencedora por O Leitor) e Saoirse Ronan (quatro vezes indicada, mas ainda sem vitória), que, apesar de não terem uma química invejável, salvam a história de Ammonite.

Seja nos momentos iniciais, com as poucas falas, ou após a aproximação, com os desabafos e discussões, as protagonistas conseguem comunicar os sentimentos sem precisar se apoiar nas linhas do roteiro. Pela linguagem corporal e pelos olhares, as duas transparecem o estranhamento, a curiosidade, o prazer, o conflito interno e o coração partido de suas personagens. Winslet merece um destaque especial: Mary Anning é a mais fechada e quieta das duas, mas a performance da inglesa, uma das melhores de sua carreira, revela tudo o que ela não diz.

Sem dúvidas, Ammonite não seria o mesmo sem Kate Winslet e Saoirse Ronan, mas a necessidade de juntar as personagens a todo o custo deixou de lado outros pontos interessantes da trama, que acabaram servindo apenas como um subtexto. O histórico profissional de Mary Anning, por exemplo, não foi muito além das poucas menções dos seus feitos e tarefas cotidianas da profissão. O papel da mulher na sociedade, outro ponto que, no início, parecia promissor também não teve um desenvolvimento direto, apesar de justificar ações e comportamentos e mover a narrativa.

Saoirse está sentada sozinha na areia da praia. Ela tem os cabelos louros presos e usa um vestido com detalhes em verde. Atrás dela vemos uma grande rocha
A direção de fotografia ficou por conta de Stéphane Fontaine, que também trabalhou em Capitão Fantástico e Jackie (Foto: Reprodução)

Mesmo com um roteiro fraco e cortes que se estendem por mais tempo que o necessário, Lee entrega uma direção tecnicamente certeira. Procurando os pequenos detalhes e simbologias, ele cria uma atmosfera intimista e sensorial, que quase compensa a falta de toque ao tentar retratar um relacionamento entre mulheres.

Por vir depois do brilhante Retrato de uma Jovem em Chamas, que colocou uma diretora lésbica no comando e elevou as expectativas, Ammonite não traz nada de novo e se torna imemorável. É uma boa para quem quer ver Saoirse Ronan e Kate Winslet mostrarem seu talento e versatilidade. Talvez, com uma diretora ou roteirista por trás da história, o relacionamento se tornaria mais crível e emocionante e as atrizes teriam (ainda) mais com o que trabalhar.

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