O monstro no túmulo: as Histórias extraordinárias de Edgar Allan Poe

Capa do livro Histórias extraordinárias, de Edgar Allan Poe. Na imagem, o livro está de pé em um fundo branco. O livro é uma edição em capa dura, de cor roxa, com o nome de Edgar Allan Poe escrito em fonte de cor amarela, com uma caveira desenhada logo acima de seu nome. Abaixo está escrito Histórias Extraordinárias em fonte de cor igualmente amarela. Abaixo está o logo da editora Companhia das Letras, com a fonte de cor amarela
A edição de Histórias extraordinárias, publicada pela Companhia das Letras, reúne 18 contos de Edgar Allan Poe, com seleção, apresentação e tradução de José Paulo Paes, oferecendo ao leitor um panorama da obra do grande mestre do Terror (Foto: Companhia das Letras)

Bruno Andrade

Há uma linha tênue entre o Horror e o Terror. Enquanto no primeiro o apreço pelo sobrenatural e sua respectiva negação da realidade são predominantes (lembre-se do Horror, o Horror!anunciado pelo agente Kurtz em O Coração das Trevas), o segundo preza pela criação de uma atmosfera repleta de suspense, cuja brincadeira consiste justamente na ausência do mágico, e na dúvida se determinadas situações ocorreram ou se estão na cabeça dos personagens. Na Literatura, há predominância dos textos de terror, e, de forma mais apropriada, trata-se de uma categoria precursora ao suspense psicológico, na qual ambos os gêneros se cruzam quando o assunto é aterrorizar. Em Histórias extraordinárias, uma coletânea de 18 contos traduzidos pelo poeta José Paulo Paes, o leitor encontrará a angústia e a engenhosidade de Edgar Allan Poe, um dos principais inventores do Terror moderno.

São poucas as coisas que se assemelham a auspiciosa — e estimulante — sensação de que estamos sempre um passo atrás do escritor, e essa habilidade é bem desenvolvida nos contos de Poe. Nesse jogo em que somos submetidos, através de figuras de linguagem, gêneros narrativos e estruturas textuais, recebemos a catarse, possibilitada através de uma brincadeira íntima entre leitor e autor. Mas essa graça parte de um pressuposto, no qual estamos sempre observando em suspeita, analisando o mínimo em detalhe, e, de certa maneira, lançando um olhar um pouco mais crítico. No ensaio O conto policial, o argentino Jorge Luis Borges escreve que Edgar Allan Poe inventou esse jogo, e não criou um novo gênero literário, mas sim “um novo leitor, sempre desconfiado”, à espreita de uma revelação. 

Mesmo levando em conta o aspecto fundamental da crítica, que é atentar-se à obra — deixando, na melhor das hipóteses, o autor em segundo plano —, torna-se tarefa particularmente árdua não analisar alguns aspectos da vida particular de Poe, observando reflexos em sua obra. Sabe-se que ele foi um homem infeliz, e o conteúdo biográfico sobre o autor, cuja morte precoce — faleceu aos 40 anos — ainda é motivo de teorias, assegura que o contista teve uma vida conturbada, com distúrbios psicológicos e uma marca permanente da ausência paterna. A mãe morreu pouco mais de um ano após o abandono do pai, e Edgar foi morar, ainda aos dois anos, com um comerciante chamado John Allan, que o aceitou, porém se recusou a adotá-lo legalmente; aí surge o sobrenome: Allan Poe.

Fotografia de Edgar Allan Poe. Na foto em preto e branco, Poe está olhando para a frente, e só é fotografado da altura dos ombros para cima. Ele é um homem branco, possui cabelos lisos penteados para o lado e bigode de cor preta. Ele está usando um sobretudo de cor preta e um lenço de cor branca amarrado no pescoço. O fundo da foto é cinza.
“Não existe beleza rara sem algo de estranho nas proporções”, escreve Edgar Allan Poe no conto Ligeia (Foto: W.S. Hartshorn)

Embora alguns argumentem que essa ausência dos pais e uma possível inclinação a problemas psicológicos tenham dado origem a seus escritos, sabe-se que Poe foi um jovem inclinado para a Literatura desde muito cedo, e aos 18 anos publicou seu primeiro livro, Tarmelão & Outros Poemas (ainda sem tradução no Brasil). Mas o fato é que, como qualquer um que leu pode afirmar, Histórias extraordinárias é composto por contos poderosos, de enorme profundidade psicológica, mas também muito estranhos. Publicadas originalmente em 15 de fevereiro de 1845, as histórias possuem o medo e a loucura como traços em comum, às vezes de forma conjunta na mesma trama, e seus personagens não conseguem — ou podem — se desenvolver, estando sempre inseridos em espirais temporais. 

Esse aspecto evidencia a originalidade de Poe, visto que a maioria dos romancistas da época discorriam sobre as minúcias dos ambientes, com a quase delirante riqueza de detalhes, enquanto o contista norte-americano deixava de lado o moralismo e a extensão, enxugando seus textos e focando no desfecho da história. De modo a sempre considerar a reação do leitor — dispondo rigorosamente seus elementos —, ele construía, assim, a atmosfera para o clímax. Por isso sua escolha pelo gênero: o que poderia prender mais a atenção de alguém que o Terror

Talvez por essa razão os cenários em Histórias extraordinárias sejam sempre os mesmos castelos sombrios, as mesmas masmorras escuras e os recorrentes personagens misteriosos à beira da loucura. Esses elementos são fundamentais para a apreensão do leitor, que logo de cara percebe um mistério a ser desvendado. Em seus contos, a descrição dos ambientes tem o intuito de construir a atmosfera horripilante, e não é um fim em si mesmo, tendo em vista que auxilia o leitor a compreender os sentimentos do protagonista, que de forma premeditada sente que algo está errado. Ainda assim, elementos físicos misturam-se com a consciência dos personagens, e essa forma pode ser observada no trecho a seguir, retirado do conto A queda da casa de Usher:

“Débeis raios de luz avermelhada coavam-se através das vidraças e das rótulas, servindo para tornar suficientemente distintos os objetos mais proeminentes em torno; a vista, contudo, esforçava-se em vão por alcançar os cantos mais remotos do aposento ou os recessos do teto, abobado e cheio de ornatos. Tapeçarias escuras pendiam das paredes. A mobília era profusa, sem conforto, antiquada, e encontrava-se em estado precário. Muitos livros e instrumentos musicais espalhavam-se ao redor, mas não conseguiam dar nenhuma vitalidade ao ambiente. Senti que respirava uma atmosfera de angústia. Um sopro de profunda, penetrante e irremediável tristeza andava no ar e tudo invadia.”

O que é interessante notar nesse trecho é que a realidade está imposta como um mero jogo de aparências, um produto de consenso. Diferente do real, a realidade é imaginária, pois os artifícios que utilizamos para enxergá-la são possibilitados através de abstrações da consciência. Dessa forma, sabemos que não há possibilidade de se respirar “uma atmosfera de angústia”, mas conseguimos enxergar a afirmação em um cenário real, pois temos conhecimento do medo. Na verdade, não há muitas coisas que distinguem a realidade cotidiana da realidade dos contos de Poe. A diferença é que, em suas histórias, tudo ameaça ser apenas uma perspectiva. 

Porém, de forma equivalente à originalidade de Poe, os críticos da época mantiveram o tom conservador em relação às inovações propostas pelo escritor — atitude diferente da que teve o poeta Charles Baudelaire, que saudou a engenhosidade do autor norte-americano e chegou a traduzi-lo para o francês. Essa inovação, observada por Baudelaire, está presente em contos como William Wilson, cuja trama gira em torno de um rapaz que encontra um outro jovem de mesmo nome e aparência física, onde a única diferença entre ambos é o fato do doppelgänger comunicar-se somente por sussurros. 

Essa história — que inspirou a obra O Duplo, de Fiódor Dostoiévski, e também aparece com certa frequência em A Trilogia de Nova York, de Paul Auster — apresenta, de forma paradoxal, o interior humano como um outro ser, uma espécie desconhecida e por si só revoltante. Para citar novamente Borges, a história nos remete ao conto O milagre secreto, do livro Ficções (1944). Ambos os textos retratam indivíduos que abandonam a realidade, colocando o tempo em suspenso e deixando de lado qualquer tipo de lógica. Mas, como se sabe, a lógica não é garantia da verdade.

Capa da edição de bolso do livro Histórias extraordinárias, de Edgar Allan Poe. Na imagem, está escrito Edgar Allan Poe em fonte de cor branca, com um fundo de cor roxa. Abaixo, está escrito Histórias extraordinárias em fonte de cor branca, e logo abaixo escrito Seleção, tradução e apresentação de José Paulo Paes, também em fonte de cor branca. O fundo desse trecho é de cor azul. Abaixo, escrito em fonte de cor branca, está o logo da editora, escrito Companhia de Bolso. Na lateral esquerda, há um gato preto com olhos de cor laranja, em um fundo de cor branca.
A edição de bolso da obra faz alusão ao conto O gato preto, um dos mais famosos da carreira de Poe (Foto: Companhia das Letras)

O gato preto, um dos contos mais famosos do livro, traz a noção de anormalidade e uma metáfora para a deterioração do homem, destacada pela violência do protagonista. O gato, que se chama Plutão — mesmo nome do deus dos mortos na Mitologia romana —, é uma possível metáfora na qual a morte vem acertar as contas com o narrador, traçando, ainda, um limiar entre a sanidade e a loucura. Em A carta roubada, considerado o primeiro texto da literatura policial, há a investigação do detetive Auguste Dupin sobre o desaparecimento de uma carta furtada pelo Ministro D., sendo Dupin muito parecido a Sherlock Holmes — e isso não ocorre por acaso, pois Poe foi a influência declarada de Arthur Conan Doyle. 

Mais de 175 anos depois de seu lançamento, Histórias extraordinárias ainda apresenta aos leitores de primeira viagem uma profundidade e imersão surpreendentes, mesmo em tempos atuais. A forma envolvente dos contos — seja pelo terror ou pela construção da narrativa — estimula e cativa o imaginário, através de uma escolha exata de palavras e situações. Diferente de William Wilson, o duplo de Edgar Allan Poe é o que restou, definindo a maneira de enxergar a obra desse autor atormentado. Ele é o gênio do conto, o inventor de um novo gênero literário, o mestre do terror, mas, acima de tudo, é o escritor. 

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