Yuni!

O drama adolescente da cineasta Kamila Andini é parte da seção Perspectiva Internacional da 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo e a aposta da Indonésia para representar o país no Oscar 2022 (Foto: Cercamon)

Raquel Dutra

O nome do novo filme de Kamila Andini é exclamado em muitos momentos dentro dos 90 minutos que o abrigam. Não é para menos, afinal, as reações à figura que o batiza: uma adolescente cheia de sonhos, perspicácia e incertezas que vive no interior conservador e religioso da Indonésia. Antes de chegar na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, Yuni gerou o mesmo sentimento no Festival de Toronto 2021, de onde saiu com uma recepção muito positiva e agraciada com Platform Prize, que reconhece filmes com “alto mérito artístico” e que também apresentam “uma forte visão de direção”.

Os aplausos para o trabalho da diretora indonésia são mais do que dignos. Yuni é um daqueles raros dramas adolescentes que sabe encontrar o lugar perfeito entre a irreverência e a seriedade, que aqui, cria uma ilustração da forma como as normas sociais do patriarcado interferem na vida de meninas que são empurradas em direção ao amadurecimento precoce. Impulsionado pela ousadia e sensibilidade de sua protagonista, o filme de Kamila Andini usa como cenário um dos lugares mais religiosos do país que possui a maior população islâmica do mundo, para assim tocar em questões de gênero, sexualidade e amadurecimento numa obra que vai além das narrativas coming-of-age hegemônicas do eixo Estados Unidos-Europa.

Ao lado de Andini, quem também assina o sucesso do filme é Arawinda Kirana com a genialidade que dá vida à Yuni. A personagem está no último ano da escola (que tenta implementar testes de virgindade obrigatórios e proibir expressões musicais por ser algo fora da conformidade dos ensinamentos islâmicos), e sob a tutela da avó (ou do abraço aconchegante porém conservador de Nazla Thoyib) enquanto os pais trabalham na distante capital Jakarta. Ela é considerada uma das melhores alunas da turma e também vista como uma das melhores pretendentes da cidade, vivendo o auge de sua adolescência em meio a profundos dilemas que surgem dessa interseção de costumes tradicionais e aspirações modernas.

O prêmio que Yuni recebeu no Festival de Toronto já agraciou obras como Jackie, de Pablo Larraín em 2016, e Martin Eden, Pietro Marcello em 2019 (Foto: Cercamon)

O roteiro de Kamila Andini e Prima Rusdi não foge de nada, e a vibrância de Kirana se choca com incertezas que Yuni encontra em todos os cantos. Primeiro, o pressuposto da universidade existe desde que suas notas e seu estado civil permaneçam como estão, pois só assim ela terá a chance de conquistar uma bolsa universitária e viver sua liberdade e autonomia. No entanto, ela tem um pé atrás com a questão do casamento, já que os mitos locais dizem que se uma jovem rejeitar dois pedidos, será praticamente impossível ela encontrar um marido depois.

A saída da personagem é manter todas as opções em aberto, e o filme concentra seu desenrolar na corrida de Yuni em direção ao seu sonho universitário antes que a terceira proposta de casamento destrua os rumos de sua vida. Na escola, a única dificuldade dela é encaixar sua mente lógica nos sentimentos aflorados pela Literatura, disciplina ministrada por Sr. Damar (Dimas Aditya), o professor que é sua paixão secreta. Então, ela conta com a ajuda do tímido Yoga (Kevin Ardilova), que direciona o encanto que tem por Yuni na poesia. A narrativa cheia de personalidade de Andini sabe usar clichês, e a paixão inicialmente unilateral floresce em algo muito mais significativo.

O filme é dedicado à memória do mestre da poesia indonésia Sapardi Djoko Damono (Foto: Cercamon)

Como o prêmio de Toronto bem notou, Yuni é um trabalho de arte. Parcialmente inspirado em Hujan Bulan Juni (conhecido como A June Rain, “chuva de junho”, numa tradução literal), o precioso poema de amor do reverenciado indonésio Sapardi Djoko Damono, Kamila Andini cria reviravoltas trazendo a poesia para o filme, tanto na forma quanto no conteúdo, tanto objetiva quanto subjetivamente. O movimento só funciona graças à vastidão emocional, verossimilhança e simpatia que Arawinda Kirana cria para a protagonista, mesmo nos momentos em que Yuni mergulha nos momentos contraditórios orientados pela confusão sentimental da juventude.

O próprio roteiro brinca com noções estéticas, significados culturais e hábitos da adolescência com sua protagonista obcecada por roxo (“todo mundo sabe que quando uma coisa roxa some, você deve ter roubado“, implora a diretora da escola para que Yuni deixe seus “maus” comportamentos influenciados pelas suas manias “bobas”). A cor costumeiramente associada ao poder, sabedoria e espiritualidade é amplamente conhecida na Indonésia como o tom que representa e consola as viúvas enlutadas, o que satiricamente muda os olhares direcionados à Yuni quando ela é vista dirigindo sua moto púrpura ou ostentando mechas lilases no cabelo.

A câmera de Teoh Gay Hian, por sua vez, é muito bem orientada para reparar nos detalhes, e a composição de Budi Riyanto Karung sabe exatamente o que precisa expressar. Seja quando o grupo de amigas de Yuni chora pela pressão do casamento compulsório no cenário do quarto adolescente, ou quando a protagonista explode um momento de caos emocional jogando todas as quinquilharias roxas potencialmente furtadas para fora do seu armário, ou quando todas as garotas estão apenas conversando sem rodeios sobre o que envolve o mundo delas naquele momento, tudo de Yuni existe para construir uma única mensagem que sua criadora identificou lá no início.

A estreia da cineasta foi com o aclamado The Mirror Never Lies, em 2011, que a colocou no radar mundial como um dos nomes mais promissores do Cinema do sudeste asiático (Foto: Cercamon)

O tema recorrente do Cinema feito por mulheres nos últimos anos, que reflete sobre a nossa realidade e os nossos caminhos em contextos de persistência do patriarcalismo,  encontra aqui um naturalismo gracioso, despreocupado, convincente e sem julgamentos. Podemos não saber exatamente o que queremos, mas sabemos exatamente o que não queremos. E quando o filme de Kamila Andini desenha isso diante dos nossos olhos através da jornada de sua protagonista, é a hora da maior exclamação de todas. Yuni! Apenas Yuni!

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