Ficções: a obra aberta de Jorge Luis Borges

Foto em preto e branco do escritor Jorge Luis Borges. Ele é um homem caucasiano, de cabelos brancos, veste terno preto, camisa branca e gravata preta. Ele mantém a cabeça ereta, enquanto olha para a frente
Ficções é considerado um dos livros mais importantes na carreira do escritor argentino, que faleceu há 35 anos (Foto: Ferdinando Scianna/Magnum Photos)

Bruno Andrade

Nos círculos literários, os autores são geralmente mensurados por seus romances. O tempo demandado, a prosa, a estética, o intuito, tudo isso é levado em consideração. Mas diferente dos romances — e parafraseando Julio Cortázar —, os contos não vencem por pontos, e sim por nocaute. Mesmo sem nunca ter escrito um romance, Jorge Luis Borges figura na lista dos maiores escritores de todos os tempos. Falecido em 14 de junho de 1986, a morte do autor completa 35 anos.

Borges nasceu em 24 de agosto de 1899 — fato que permitiu ao escritor classificar-se como “um homem do século 19” —, em Buenos Aires. Antes de aprender o espanhol, foi alfabetizado em inglês. Começou sua carreira como poeta, publicando seu primeiro livro, Fervor de Buenos Aires, em 1923. Depois publicou ensaios e, mais tarde, em 1935, publicou sua primeira coleção de contos, História universal da infâmia. A obra que daria projeção internacional ao autor seria publicada em 1944, cujo nome não poderia ser mais apropriado: Ficções.

O título do livro já demanda interpretações. Sabe-se que, em literatura, a ficção não é sinônimo de mentira. Trata-se de um relato pessoal, muitas vezes realista, sobre determinados temas e assuntos que só expressam verdade dentro do texto. Portanto, desde o início, Borges anuncia que o livro não é um relato fidedigno, mas uma alusão à forma literária. A grandiosidade dos contos de Jorge Luis Borges está justamente na habilidade de transformar em fantástico — através dos gêneros narrativos — aquilo que nos passa despercebido. A ficção em Borges está fantasiada de veracidade.

Arte da capa brasileira do livro Ficções. A capa contém formas triangulares na cor preta e na cor vermelha. O título do livro, nome do autor e marca da editora estão na cor branca
Capa da edição brasileira, publicada pela Companhia das Letras em 2007, com tradução de Davi Arrigucci Júnior (Foto: Companhia das Letras)

A obra de Jorge Luis Borges é, atualmente, publicada pela editora Companhia das Letras, e os livros Ficções e O Aleph (outro livro importante em sua carreira) foram traduzidos por Davi Arrigucci Jr.. O livro é constituído por 16 contos, conhecidos pela profundidade filosófica, e divididos em duas partes. A primeira, O jardim de veredas que se bifurcam, foi publicada isoladamente em 1941. A segunda, Artifícios, era inédita até a publicação da coletânea em 1944. Os contos, embora distintos, oferecem certa coesão nos temas: espelhos, labirintos, memória, eternidade e o tempo. A perplexidade de Borges diante das ficções do imposto mundo real pode ser identificada logo no primeiro prólogo (Borges era conhecido por seus prólogos e chegou a publicar uma coletânea deles; Ficções possui dois), no qual escreve: “Desvario trabalhoso e empobrecedor o de compor vastos livros; o de espraiar em quinhentas páginas uma ideia cuja perfeita exposição oral cabe em poucos minutos”.

O argentino é considerado por muitos um autor pós-moderno, e, embora não se tenha clareza, uma das problemáticas da pós-modernidade é a suposição de que não existem novidades. Há certa sensação de que tudo foi criado, e, portanto, não há mais obras originais. Nesse ponto de vista, Jorge Luis Borges se aproveita da banal realidade cotidiana e enxerga nela o mítico, acrescentando à rotina características fantásticas. Entre as muitas realidades míticas presentes nos contos borgianos, Tlön, Uqbar, Orbis Tertius — primeiro conto da coletânea — questiona se algo realmente existe sem que alguém o perceba. No conto, Tlön é um mundo imaginário — encontrado por Borges em uma enciclopédia —, onde os habitantes reconhecem apenas o que é visível e negam qualquer realidade oculta. Mais do que um princípio religioso, o conto discute a percepção, pois, na obra do autor, a realidade possui uma essência onírica. 

Foto em preto e branco do escritor Jorge Luis Borges. Ele é um homem de cabelos brancos, veste terno e gravata, e está sentado em uma cadeira enquanto segura uma bengala. Está com a cabeça inclinada para trás, olhando para cima
Borges começou a ficar cego na infância, devido a uma degeneração genética herdada do pai; esse fator foi decisivo para sua obra (Foto: Ferdinando Scianna/Magnum Photos)

Adolfo Bioy Casares, escritor e amigo de Borges, escreve no prólogo de Antologia da Literatura Fantástica (1940) — coletânea de contos fantásticos feita em colaboração com Silvina Ocampo e com o próprio Borges — que ele “criou um novo gênero literário, que partilha do ensaio e da ficção”. Desde suas primeiras publicações, o escritor impôs o desconcerto e a dúvida, nos fazendo questionar se a obra recém-lida é realmente uma ficção ou um ensaio literário. 

À moda de Hemingway, os contos de Ficções tem precisão milimétrica, como se fossem encaixados peça por peça. Em A Biblioteca de Babel, o autor apresenta um paradoxo. A linguagem é um instrumento universal, mas não pode resumir todas as experiências da vida, que, muitas vezes, dependem exclusivamente de nossas interpretações. A biblioteca nada mais é do que o universo, dado que, no conto, o mundo é concebido através dela. Os bibliotecários buscam alguém que consiga compreender todas as obras presentes na biblioteca, o que poderíamos enxergar como um deus. Se analisarmos pela teoria do filósofo Umberto Eco — que, inclusive, criou um personagem em O nome da rosa (1980) chamado Jorge de Burgos, em homenagem a Borges —, lembramos de seu conceito de obra aberta. Tendo como horizonte o Finnegans Wake, de James Joyce, Eco diz que a obra de arte contemporânea é aberta a interpretações, e seu conceito remete justamente à noção de infinitude do texto literário. A experiência literária está refém das experiências pessoais do leitor, e não pode conceber uma interpretação exata.

Em 1961, Borges venceu com Samuel Beckett o Prêmio Formentor de las Letras pela publicação de Ficções. Para o autor, esse foi o momento decisivo para sua fama internacional. Fato é que sua influência na literatura é inegável, criando, para alguns críticos, um momento de ruptura — um “antes e depois” de sua obra. O escritor chileno Roberto Bolaño disse, em entrevista, que seus livros derivam de “uma dívida eterna com Jorge Luis Borges e Julio Cortázar”. Para Gabriel García Marquez, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura, a obra do autor o intimidava pela sua genialidade. O norte-americano David Foster Wallace também foi influenciado por Borges e chegou a resenhar para o The New York Times sua biografia. 

Foto do escritor Jorge Luis Borges e do escritor Adolfo Bioy Casares. Os dois são homens caucasianos de cabelos brancos, estão sentados em cadeiras de madeira, vestem terno e gravata, e algumas pessoas estão em volta. Jorge Luis Borges veste um terno preto e segura uma bengala, enquanto Adolfo Bioy Casares veste um terno cinza claro, utiliza um suéter verde por cima da camisa e mantém o braço direito sobre uma mesa de madeira. Ao fundo, alguns livros estão em uma estante
Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares tinham um projeto literário extremamente racional, acompanhado de muitas correções e edições, mas que aparentava casualidade por seu ar fantástico (Foto: Reprodução)

Outro grande admirador da obra borgiana foi o crítico norte-americano Harold Bloom, e escreveu que, no trabalho do argentino, “a perda foi sempre a ênfase criativa […]: só se pode perder aquilo que nunca se teve, é esse o refrão que se encontra ao longo de toda a sua obra”. Esse comentário faz alusão a cegueira de Borges — um dos fatores cruciais para entender a dimensão de seus contos —, que ocorreu gradualmente em decorrência de uma doença hereditária. Aos 55 anos já estava completamente cego, e as obras publicadas após a cegueira foram narradas pelo autor e transcritas pela mãe ou pela esposa, María Kodama. Em entrevista concedida a Roberto d’Ávila para a TV brasileira, um ano antes de morrer, Borges diz que ficar cego “é incômodo, mas sendo gradual não é trágico”. Na ocasião, o escritor completa dizendo que nasceu ficando cego, e perdeu completamente a visão quando aprendeu a enxergar.

Muitas vezes, os leitores se perdem no encanto dos temas abordados por Jorge Luis Borges, e deixa-se passar que sua prosa é considerada uma das melhores do século XX — mérito defensável através do tradutor. Como o autor aponta nos dois prólogos do livro, o foco está na maneira de narrar e em suas formas. Borges anuncia que O jardim de veredas que se bifurcam é um conto policial, bem como em Exame da obra de Herbert Quain encontram-se notas sobre um livro imaginário. Essa transição entre gêneros, muitas vezes dentro do mesmo conto, demonstra a maestria do autor.

Com mais de 75 anos desde sua publicação, Ficções ainda cativa e estimula diversos leitores por sua dimensão filosófica e construção concisa. A obra do autor — que chegou a influenciar Michel Foucault, conforme o próprio escreveu no prefácio de As palavras e as coisas (1966) — continua despertando curiosidade e estranheza. Borges apontou para os caminhos que se bifurcam, e nos ensinou a questionar todas as possibilidades — ele foi todos, e nenhum.

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