Cracolândia (não) é propaganda

O documentário é parte da Mostra Brasil da 44ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (Foto: Danilo Verpa/Folhapress)

Raquel Dutra

Prometendo apresentar uma profunda pesquisa e diferentes pontos de vista sobre um dos maiores desafios da vida urbana contemporânea é que o documentário Cracolândia chega à 44ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. Em certa medida, ainda que levianamente, a produção dirigida por Edu Felistoque cumpre sua promessa inicial, mas revela outras problemáticas ao decorrer do filme que são chanceladas de uma forma muito infeliz ao final de seus 87 minutos.

O debate que o filme se propõe a construir tem a participação de especialistas, médicos, agentes de serviços sociais, representantes de ONGs e centros de apoio, dependentes químicos e outros profissionais de diversas áreas de atuação que buscam uma solução para o problema, no Brasil e fora do país. As discussões e entrevistas são orientadas pelo cientista político Heni Ozi Cukier, que também serve como principal fonte para o documentário. E aqui mora o primeiro de muitos problema de construção de sentidos de Cracolândia

Cukier, que também é roteirista do filme, esteve envolvido com pesquisas sobre o tema e busca compartilhar seus conhecimentos, mas escolhe um caminho tão errôneo para fazê-lo que sua experiência beira a completa inutilidade. Tomando para si o protagonismo da discussão, sua participação se torna incômoda e vai desenvolvendo uma pose de “salvador”. Carregado de um tom condescendente e despreocupado em tratar de uma questão tão séria, o papel que ele desempenha dentro do documentário e como o faz prejudica a construção de uma discussão proveitosa e realmente preocupada com a situação.

É incômodo também o uso frequente de imagens explícitas e apelativas, às vezes acompanhadas de sons de isqueiros sendo acendidos e pessoas usando a droga (Foto: Reprodução)

A partir disso, todos os outros problemas de Cracolândia se desenvolvem com sucesso. As entrevistas enviesadas, os discursos carregados de preconceitos com movimentos sociais, o retrato romantizado das ações violentas de policiais, comparações rasas do cenário de São Paulo com outros estados do país, um reforço eterno e cansativo de que eles buscam “o meio termo” (que na verdade, como bem sabemos, sempre pende para um lado)… Todas essas abordagens duvidosas e intencionais comprometem uma estruturação coerente do filme, que não possui qualquer narrativa informacional organizada para construir gradativamente um ponto de vista concreto.

Um pequeno acerto do filme é trazer a participação de profissionais que lidaram com o problema em outros países, como Suíça, Noruega e Canadá. Ainda sim, são permeados por um discurso liberal que impede a produção do filme de fazer associações pertinentes entre as entrevistas, já que boa parte do que é visto lá fora é defendido por alguns movimentos sociais atuantes aqui no Brasil. Mas estes, o filme se encarrega de pintar como mal-intencionados ou desconexos da realidade.

Os pontos mais interessantes e que desencadeariam uma perspectiva ainda mais profunda sobre as origens do problema são levantadas pelos próprios dependentes químicos, mas são negligenciadas pela produção do filme. Quando alguém que sofre com o vício começa a falar sobre o desamparo, rejeição, discriminação e/ou desumanização, logo é interrompido por algum discurso institucional que rejeita essa abordagem do problema ou por Cukier bradando sua própria opinião com uma trilha de palestra motivacional ao fundo.

A produção do filme também não pensou em nenhum momento em aplicar um recorte de raça, classe e/ou gênero nas análises que são apresentadas (Foto: Reprodução)

Depois de gerar muito incômodo no espectador, Cracolândia justifica todas as suas escolhas errôneas e desonestas em seus minutos finais, quando um último depoimento de um dependente químico é jogado na tela e seguido de uma breve explicação sobre sua principal fonte que também é quem conduz o documentário. Heni Ozi Cukier é deputado federal pelo Partido Novo, eleito em 2018. Uma informação tão descontextualizada que não faria sentido algum se não fosse tão autoexplicativa, revelando a missão principal do filme. Isto é, usar uma situação tão complexa e urgente com pessoas tão vulneráveis como propaganda pra alguém já estabelecido num cenário profundamente privilegiado. 

Por todas suas construções, Cracolândia acaba também por reforçar a complexidade da situação, que ainda se torna alvo de figuras oportunistas e leituras completamente desonestas. Ali, não existem respostas únicas, simples ou soluções fáceis. Falar sobre ela perpassa esferas da saúde, do social, da discriminação implacável que dependentes químicos sofrem, da segurança pública, do tráfico de drogas e do crime organizado. Construída ao redor de muito sofrimento humano, quem mais padece com a existência da Cracolândia pede por soluções que compreendam sua totalidade e suas raízes mais profundas, longe de interesses individuais.

Deixe uma resposta