Compartment Nº 6 desliza nos trilhos da desesperança

Cena do filme Compartment Nº 6. Nela vemos um homem e uma mulher, ambos brancos, sentados em um banco de trem, se olhando. Ele é careca e usa blusa azul, enquanto ela tem cabelos castanhos claros na altura dos ombros e usa uma blusa verde.
Depois de vencer o Grande Prêmio do Júri em Cannes (em um empate com Um Herói), o longa finlandês chega à Mostra de SP pela Competição Novos Diretores [Foto: Sony]
Vitor Evangelista

Bem recebido e premiado com o Grand Prix em Cannes, o finlandês Compartment Nº 6 passa pela 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo provando que, às vezes, a jornada é mais importante que o destino. De fato, o filme de Juho Kuosmanen, parte da Competição Novos Diretores, esbanja um nível técnico invejável para um cineasta “iniciante”, repleto de discussões interessantes e do clássico trunfo de não dizer, e sim mostrar.

Na história, acompanhamos uma jovem finlandesa (Seidi Haarla) que se distancia de um caso amoroso em Moscou, embarca em um trem e parte em busca de rochas especiais, que contam com inscrições muito antigas e enriquecedoras para seus trabalhos como historiadora. No vagão meia-dúzia, ela conhece um minerador russo (Yuriy Borisov), escroto e inconveniente, mas aos poucos amolecido pelo álcool no sangue e pela companheira de dormitório.

Cena do filme Compartment Nº 6. Nela vemos dois jovens brancos parados ao redor de um carro verde. Cada um está de um lado do veículo, abrindo as portas. Está de dia e muita neve cobre o ambiente.
Dentro do vagão, Compartment Nº 6 encontra espaço para nos transportar pelo tempo e pela emoção dos jovens protagonistas (Foto: Sony)

O roteiro de Andris Feldmanis, Livia Ulman e de Kuosmanen, baseado no livro de Rosa Liksom, investe no jogo de gato e rato que os protagonistas se metem, partindo de situações de extremo alerta (como a sequência ambientada no banheiro da locomotiva) até momentos mais sutis e divertidos (a mini-viagem que toma parte lá pelo segundo ato). Ao invés de colocar na boca dos personagens suas ações e seus passados, o brilhante texto nos mostra essas virtudes em ação, em gestos, olhares e reações.

Imagine o cruzamento ideal da ambientação da trilogia romântica de Richard Linklater com o niilismo mais classudo que o Cinema pensa em ostentar. Hytti nro 6 nos mantém na ponta dos pés, nunca revelando suas reais intenções. Devemos nos preocupar? Ou apenas aproveitar a viagem? São quase duas horas de uma jornada inquieta e extremamente viciante, o que causa um estranhamento quase que latente por baixa da primeira camada do voyeurismo.

Cena do filme Compartment Nº 6. Nela vemos duas mulheres brancas sentadas à mesa, que está cheia de comidas e bebidas. Cada uma segura um cigarro aceso e elas se olham nos olhos. A da esquerda é mais velha e a da direita é jovem.
O frio europeu congela tudo, menos o sentimento e o calor da juventude (Foto: Sony)

Acompanhar tanto da intimidade dessas pessoas, dos vídeos caseiros da garota até o sono grosseiro do homem, pode ser intrusivo até demais. Porém, o diretor não força a barra ou penetra demais a psique atormentada e millennial dessa dupla do barulho. Respeitando limites e dando espaço para que seus objetos de estudo respirem, Kuosmanen é maquinista de um veículo que tem total ciência de onde quer ir. O destino vive no amanhã, ele sabe, e nós só temos o hoje. 

O frio que congela a Rússia não é o bastante para que Vadim e Laura se prendam a quaisquer definições que os estereótipos de uma estudiosa e de um estúpido poderiam carregar. A escolha da Finlândia para a corrida do Oscar 2022 possui o fleur que costuma favorecer os grandes filmes internacionais: uma história “universal” recheada de pormenores culturais específicos. A receita do sucesso é a honestidade, e, capturado pela meticulosa montagem de Jussi Rautaniemi, pela gélida fotografia de J-P Passi e pelo rústico design de produção de Kari Kankaanpää, Compartment Nº 6 é brutalmente verdadeiro.

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