Em tempos de amnésia seletiva, Cidade Invisível entrega esperança e suscita discussões

Cena da série Cidade Invisível. Fotografia retangular do ator Marcos Pigossi, dos ombros até o topo da cabeça. Ele é um homem de cabelos castanhos, barba e bigode. Ele está sentado numa poltrona azul claro e possui uma borboleta sobre os olhos. Ela é roxa azulada com manchas pretas nas bordas das asas. Na parte inferior de cada asa, tem um círculo branco com um círculo roxo dentro, imitando dois olhos. Marcos possui a boca semiaberta, com a parte debaixo dos dentes da frente aparecendo, como se estivesse num cochilo. Ao fundo, há um aparador de madeira. A imagem possui uma tonalidade amarela acentuada.
“As pessoas são cruéis, elas têm medo de tudo que é diferente porque a gente revela como elas são absurdamente iguais e entediantes” (Foto: Reprodução)

Júlia Paes de Arruda

Como seria se o nosso folclore se materializasse e convivesse todos os dias conosco, com seus personagens despercebidos e infiltrados na sociedade? Se as histórias de infância fossem realmente verdade? Essa é a proposta de Carlos Saldanha (diretor das franquias Rio e A Era do Gelo) em Cidade Invisível. Diferentemente do que estamos acostumados, o novo sucesso da Netflix ganha um teor adulto ao unir-se com um suspense investigativo. Apesar da narrativa envolvente e provocante, a execução das ideias traz algumas problemáticas que merecem ser destacadas. 

Quem espera algo na mesma linha do Sítio do Picapau Amarelo, está muito enganado. A história é contada na visão de Eric (Marco Pigossi), um detetive da polícia ambiental que acaba perdendo sua esposa, a antropóloga Gabriela (Julia Konrad) num incêndio na Vila Toré, no Rio de Janeiro, onde ela trabalhava. Em luto e cheio de questionamentos, ele se depara com circunstâncias inusitadas e imprevisíveis que desafiam seus princípios e sua própria identidade. 

O resgate das narrativas orais em risco de extinção é um ótimo ponto de partida para a criação da série. Porém, a preservação de pontos chaves é fundamental para a autenticidade das histórias. O erro de Saldanha nesse caso é introduzi-las no Rio de Janeiro, sendo que as paisagens nortistas eram o principal cenário das originais. Afinal, é realmente estranho achar um boto-cor-de-rosa, natural de águas doces, encalhado numa praia, não é? O que pode ser considerado positivo dessa alteração é que os personagens são colocados numa capital carioca pouco apresentada aos turistas. A situação de vulnerabilidade em que estão os seres folclóricos também alavanca a ideia de “infiltrados” dentro da sociedade brasileira, evidenciando uma sensação de deslocamento que uma parte da nossa cultura enfrenta dentro da própria comunidade.

Cena da série Cidade Invisível. Fotografia retangular de uma praia do Rio de Janeiro com os morros do Pão de Açúcar e da Urca ao fundo, no canto superior esquerdo. Mais abaixo dos morros, há uma praça arborizada com dois postes de iluminação, um mais afastado que o outro. No canto inferior direito, mais próximo a câmera, está o ator Marco Pigossi agachado na areia da praia. Ele é um homem de cabelos castanhos com barba e bigode. Ele veste uma camisa azul marinho com as mangas em azul mais escuro e uma bermuda preta. Ele usa um tênis de corrida preto com três faixas verticais e brancas na lateral. Possui uma pulseira no pulso direito e um relógio no pulso esquerdo. A mão direita está apoiada em suas coxas com a mão entre suas pernas. Com a mão esquerda, ele fala ao telefone. Próximo a ele, está um boto-cor-de-rosa morto estirado na areia.
“Eu tô com um boto na caçamba do meu carro!” “Mas hoje é jogo do Flamengo. Eu tenho que ir” (Foto: Alisson Louback)

O thriller policial é o que prende a atenção do público e o instiga a pular para o próximo episódio. Isso se deve à atuação de Pigossi, que traduz com sinceridade a carga dramática do personagem. Mas apesar do suspense instigante, incomoda a falta de aprofundamento nas entidades. Enquanto a Cuca (Alessandra Negrini) vai e vem de uma forma que é possível compreender sua história, o Saci (Wesley Guimarães) serve apenas de porta de entrada para o universo folclórico, sendo deixado de lado em grande parte da narrativa. Uma boa sacada para seu disfarce entre as pessoas é a utilização de uma prótese em uma das pernas. Aliás, talvez seja um pouco óbvio, mas o roteiro deixa implícito sua verdadeira identidade ao batizá-lo de Isac – um anagrama para Saci.

Além de, claro, ter a função comercial, a história original de Raphael Draccon e Carolina Munhóz promove uma mensagem importante a respeito de prioridades. Cidade Invisível entrega uma oposição entre a falsa ideia de progresso e a preservação do que é ancestral. Isso é válido tanto para as narrativas orais, que acabam se perdendo no volátil mundo online, quanto para as de preservação da natureza. No enredo, a construção de um novo empreendimento (obviamente, extremamente lucrativo) é motivo suficiente para destruir a biodiversidade nativa, obrigando os moradores da Vila Toré, até mesmo os mais persistentes, a se mudarem da região para sobreviver. Esse tópico poderia até ser uma farpa para o descaso com as queimadas que ocorreram em nosso país nos últimos meses.

Contudo, é importante falar que a produção nacional da Netlfix gerou polêmicas. Entre os pontos abordados, o mais discutido foi a falta de representatividade indígena dentro e fora das gravações. Além disso, surgiram também críticas sobre a forma tratada de uma religião não-cristã, como se suas crenças fossem mera fantasia. Nas repercussões, muitos salientaram a importância de consultar os povos originários para frisar as suas versões e não as folclóricas dentro do roteiro. Isso os daria visibilidade suficiente para evitar julgamentos incoerentes e distorcidos que apenas reforçam estereótipos.

Cena da série Cidade Invisível. Fotografia retangular dos atores Alessandra Negrini, Marco Pigossi e Áurea Maranhão, respectivamente. Eles estão numa sala de interrogatório, com três janelas com persianas. Alessandra é uma mulher de cabelos cacheados pretos soltos com tererês nas mechas frontais. Ela veste um vestido preto com renda nas mangas e no colo. Ela está sentada numa cadeira preta com as mãos entrelaçadas sobre a mesa verde. Ela usa uma luva preta de renda que não cobre os dedos, unhas pintadas e pulseiras na mão direita. Ela possui olhos escuros e olha diretamente para a câmera. Marco é um homem de cabelos castanhos com barba e bigode. Sua expressão facial está enfurecida. Ele veste uma blusa cinza, uma camiseta de botões cinza por cima e calça jeans preta. Pendurado em seu pescoço, está um distintivo. Ele está ao lado de Alessandra, em pé com o corpo à frente e a mão esquerda apoiada na cadeira de Alessandra e a direita na mesa. No pulso direito, há um relógio preto. Áurea é uma mulher de cabelos castanhos escuros presos em um rabo. Ela está de perfil, virado para a esquerda. Ela veste uma camisa cinza de manga curta, possui um brinco prateado na orelha esquerda e um relógio preto no pulso esquerdo. Com a mão direita, ela segura uma caneta bic azul. Ela está sentada na mesa interrogando Alessandra. Na frente de Áurea, existem papéis presos por um clips e um caderno com espiral pequeno aberto embaixo da sua mão direita. Ao fundo, pendurado na parede amarela, um cartaz com uma foto de um cachorro malhado, faixa preta na parte inferior com o texto “Maltratar animais é” em vermelho e letras maiúsculas seguido de um retângulo vermelho entortado para a esquerda com “crime” escrito em letras brancas e maiúsculas. Abaixo, parênteses brancos em tamanho decrescente seguido de “DENUNCIE” em letras maiúsculas e brancas e o telefone 456 9989 em vermelho.
A série foi renovada para sua segunda temporada e o serviço de streaming afirmou ter noção da responsabilidades que tem nas mãos (Foto: Reprodução)

A atuação do elenco de Cidade Invisível é impecável. Marco Pigossi pode até ser o protagonista, mas não supera o desempenho de Alessandra Negrini como a Cuca. A sensualidade da atriz transita com a da personagem e entrega uma caracterização poderosa e intensa. O jogo de câmeras, juntamente com a iluminação dos espaços, faz com que o público tenha dúvida do lado em que ela está, o que torna a bruxa extremamente instigante. O destaque também vai para Fábio Lago como Curupira. O amadurecimento do guerreiro é realmente magnífico na tela e (literalmente) pega fogo com a dedicação e a destreza de Lago em incorporar com garra seus papéis. 

A menção honrosa é de Jessica Cores como Iara, que soube encarnar com aptidão as características mais marcantes da conhecida sereia. O encanto da personagem é perceptível tanto pelos seus traços físicos quanto pelos trejeitos, especialmente pelo olhar hipnotizante. Obviamente, não poderia deixar de lado a voz sedutora. Ao cantar Sangue Latino, de Secos & Molhados, a atriz mostra sua versatilidade e fascina os ouvintes, tanto do bar quanto dos que assistem a cena. Além disso, a canção ilustra o sentimento da entidade, que é obrigada a levar os homens ao mar para matá-los. 

A trilha sonora de Cidade Invisível é essencial para construir a narrativa. Já no primeiro episódio, Tu Tá na Gaiola de Kevin O Chris é utilizada para projetar o Saci, demarcando a vivência de Isac. A própria Nana Neném traça os poderes da Cuca que, juntamente com uma fotografia predominantemente de cores escuras, carrega o ar de mistério que as cenas exigem. Para definir Manaus (Victor Sparapane), o boto, os clássicos sambas brasileiros delineiam a malícia e a malandragem que o personagem tem, ainda mais quando está agregada ao chapéu característico e às doses de bebida.

Cidade Invisível não começou totalmente com o pé direito, mas o enredo atrativo e emocionante conquistou o coração do público. Além disso, trata-se de uma produção nacional, mérito que, recentemente, vem sendo alvo de ataques e desmanches, mesmo tendo grande impacto econômico e cultural no país. Em tempos sombrios, apreciar o resgate às tradições orais nacionais e a tentativa de engrandecer as nossas produções dá aquela ponta de esperança que não é tão ruim ser brasileiro. E se ela abranger nossos povos de maneira a eliminar estereótipos e a trazer visibilidade, melhor ainda! 

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