O Bloco na Rua de Ney Matogrosso e o grito de resistência da música brasileira

Capa do álbum "Bloco Na Rua" de Ney Matogrosso. A imagem tem um fundo preto e Ney está alinhado à direita e o lado esquerdo de seu corpo está levemente virado para a câmera. Ney veste uma roupa dourada que cobre seus ombros e seu rosto, mas não totalmente, pois o tecido possui uma transparência que nos permite enxergar ligeiramente sua expressão. Ele está olhando para a câmera, com uma expressão séria, e maquiagem preta ao redor dos olhos. A roupa possui alguns adereços pendurados, todos dourados, assim como toda a roupa.
Capa do álbum Bloco na Rua (Foto: Marcos Hermes)

Marina Ferreira

O instrumental misterioso, de um crescendo de guitarras e sintetizadores, com um quê de bateria ao fundo nos coloca sentados na plateia do teatro vazio, de olhos fixos no palco, na expectativa pulsante do abrir das cortinas para o espetáculo audiovisual, personificado na figura mística e quase mítica de Ney Matogrosso. Ele surge sob um único holofote, sua silhueta é viva e dançante em frente à um painel de luzes hipnóticas, vestindo seu figurino dourado e nada convencional e seu olhar faminto em busca de seu público, enquanto outras tantas luzes iluminam o palco e sua banda. 

Essa poderia ser apenas uma descrição de visões criadas ao apertar o play do trabalho mais recente do cantor. Mas é de fato a primeira imagem que nos surge ao nos depararmos com o registro visual da grande obra de Ney, Bloco na Rua, que lhe rendeu a indicação ao Grammy Latino 2020 na categoria Melhor Álbum de Música Popular Brasileira. 

Ney Matogrosso em cena (Foto: Marcos Hermes)

Para começarmos a entender o que é Bloco na Rua, em sua essência, devemos partir do fato de não ser um álbum de estúdio e sim o registro fonográfico da turnê homônima. Gravado em moldes pandêmicos antes mesmo da possibilidade de uma pandemia, a  apresentação aconteceu somente para as câmeras bem guiadas do diretor Felipe Nepomuceno, sem público. 

Diferente de álbuns que podem ser pensados por conceitos muito pessoais do artista, um show é sempre projetado com o objetivo de transmitir uma mensagem, contar uma história e entreter seu público, prendendo-o na trama de uma hora e tantos minutos e deixando-o sem fôlego até o último segundo da última canção. Isso, Ney Matogrosso faz com excelência e ao lado de sua fiel banda, que acompanhou-o na bem sucedida turnê Atento aos Sinais, encerrada em 2018 e concedeu à parceria o entrosamento necessário para criar e conduzir o novo (e genial!) trabalho. 

No álbum, Ney optou por vestir o rock n’ roll e ousar na escolha do repertório, que caminhou de Sérgio Sampaio a Chico Buarque, com algumas paradinhas em Rita Lee, Paralamas do Sucesso e Raul Seixas. Também trouxe uma canção inédita de Dan Nakawaga e mergulhou em clássicos da própria história, revisitando Secos e Molhados. Com tantas performances excelentes, dignas de elogios e debates, vale passear pelas mais marcantes do repertório. 

Ney Matogrosso em Bloco na Rua (Foto: Loriza Lacerda)

Desde os primeiros segundos da canção de abertura Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua é possível sentir que esse não será apenas um show, um álbum ou um registro qualquer e sim um grito de alerta que diz com todas as letras: a música e a cultura brasileira resistem. Não à toa, foi escolhida como título do álbum. 

A música, composta e gravada originalmente por Sérgio Sampaio em 1972, foi censurada pela ditadura militar, entendida como subversiva e perigosa ao regime por incentivar a movimentação popular. Na voz de Ney Matogrosso, libera da garganta a agonia de um país onde a cultura caiu em um buraco negro e acentuadamente, volta à Idade Média, como disse o cantor em entrevista após o lançamento do disco.

Costurando seu ode à resistência, liberdade e a beleza que há na coragem, o espetáculo segue na irreverência de Jardins da Babilônia, pois não há como falar desses elementos sem cantar Rita Lee. Com um dançante Ney girando no palco, entre as guitarras fortes e o instrumental que nos remetem diretamente à versão original, recebemos mais uma evidência de como o cantor está tão jovem aos 78 quanto estava aos 30, quando integrava o conjunto Secos e Molhados e arrebatava o Brasil com suas performances ousadas e muito a frente de seu tempo. A sequência se dá com três grandiosas escolhas do cantor: O Beco, do Paralamas do Sucesso, Alcool (Bolero Filosófico) da DJ Dolores e Já Sei, composição de Alice Ruiz e Itamar Assumpção. Três canções inusitadas e de performances surpreendentes e fortes, que as classificam como pontos altos do disco. 

Agora, tomo a liberdade para abrir um parágrafo dedicado à uma única música, que em minha opinião pessoal se define como a performance mais arrebatadora do álbum, em concorrência acirrada com Tem Gente Com Fome e Coração Civil. É preciso falar sobre Pavão Mysteriozo. Conhecida popularmente por um dos instrumentais mais belos da música brasileira e interpretada em sua versão original por Ednardo, a música é trazida para o show com a força da percussão de Felipe Roseno e Marcus Suzano, e os metais apoteóticos de Aquiles e Everson Moraes. Nela, a voz de Ney se delicia com a letra que parece ter sido escrita especialmente para sua interpretação e timbre particular. Durante toda a performance, é impossível desviar os olhos do cantor, que se entrega de corpo e alma à música e o sorriso em sua voz nos deixa na boca o gosto da esperança em voar. 

Continuando pela excelência do repertório, temos versões com o selo Ney Matogrosso de qualidade, como é o caso de A Maçã, Yolanda, Corista de Rock e Já Que Tem Que, antes de chegarmos à inédita do álbum, Inominável, de Dan Nakawaga, composta para a voz do cantor. Próximo ao fim, nos vemos presenteados com dois grandes clássicos da carreira de Ney Matogrosso junto ao Secos e Molhados: Mulher Barriguda e Sangue Latino

Em versões mais combativas do que as originais, e na pegada rock n’ roll que definiu o tom de todo o álbum, as duas canções ganham ainda mais força ao serem trazidas para o Brasil de agora, convocando a juventude a continuar entoando com orgulho. “Minha vida, meus mortos, meus caminhos tortos, meu sangue latino”. 

A escolhida para finalizar o álbum foi a romântica Como 2 e 2, composição brilhante de Caetano Veloso eternizada na voz de Gal Costa, em duas partes atemporais do disco Fa-Tal – Gal a Todo Vapor. Na interpretação de Ney, a melancolia se apossa da voz e do ritmo, trazendo uma nova história de amor, tão diferente da contada em 1971 em sua gravação original.

Ney durante a apresentação de Bloco na Rua (Foto: Divulgação)

Bloco na Rua deixa ainda mais nítida a capacidade do artista de inovar e se reinventar a cada novo projeto, dando novas roupagens e significados a clássicos do país, levando-nos a entender de uma vez por todas porque está há quase 50 anos na estrada. Como um camaleão, ele é capaz de deixar sua marca em ícones atemporais da nossa canção, trazendo sua identidade mesmo que passe por uma transformação a cada nova era. Dessa forma, Ney Matogrosso prova sua relevância indiscutível e se reafirma, na era dos sucessos rápidos, como um dos maiores ícones da música popular brasileira. 

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