Em The Last of Us, nós continuamos pela família

Cena da primeira temporada de The Last of Us. Joel (Pedro Pascal) e Ellie (Bella Ramsey) estão no alto de um edifício em ruínas, olhando na direção da câmera para o nascer do Sol. Joel, à esquerda da tela, é um homem latino de meia idade, com cabelos curtos e barba preta, já com vários fios grisalhos. Ele usa uma jaqueta verde clara por cima de uma camisa cinzenta. Podemos ver as alças de uma mochila passando por seus ombros, além de uma alça transversal que vai de seu ombro esquerdo até sua cintura. Joel segura essa alça com sua mão esquerda, deixando exposto um relógio analógico preso em seu pulso. Ellie, à direita da tela, é uma menina caucasiana de cabelos negros presos em um rabo de cavalo. Ela usa uma jaqueta encapuzada aberta por cima de uma camiseta cinza-clara. Em seu ombro esquerdo, já uma lanterna tubular presa na alça de sua mochila, apontada para frente. A câmera os captura da cintura para cima, e atrás deles podemos ver edifícios arruinados, tomados por vegetação e caindo aos pedaços, e uma massa de água ainda mais ao fundo do horizonte.
“Não pode ser em vão” (Foto: HBO)

Gabriel Oliveira F. Arruda e Nathália Mendes

Ecoando sua celebrada minissérie Chernobyl, Craig Mazin nos inicia em The Last of Us com um prólogo: em um talk show dos anos 1960, acompanhamos um biólogo carismático (John Hannah) que avisa tanto o entrevistador (Josh Brener) quanto a plateia que o verdadeiro perigo para a extinção da raça humana não são vírus ou bactérias, mas os fungos. Quando questionado sobre o que aconteceria no evento destes organismos evoluírem para nos infectar, ele responde com um simples “Nós perderíamos”. E, pelas próximas nove semanas, fomos convidados a imaginar como seria um mundo onde é justamente isso o que aconteceu: nós perdemos.

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A Baleia é um retrato sobre tudo o que nos faz humanos

Cena do filme The Whale. Na imagem, o personagem do ator Brendan Fraser está dentro de uma casa. Ele está sentado em um sofá, usa uma camiseta cinza e sorri. Ao seu lado direito, há um abajur de luz amarela. A iluminação é baixa e os tons são frios.
Além de indicações no Oscar, The Whale recebeu indicações em premiações como Critics Choice Award, Cannes, Globo de Ouro e SAG Awards (Foto: A24)

Clara Sganzerla 

Moby-Dick, ou The Whale, é um famoso romance publicado em 1851 pelo escritor estadunidense Herman Melville, que conta a famosa saga do capitão Ahab atrás da baleia que arrancou sua perna. A semelhança com A Baleia, um dos filmes mais comentados do Oscar 2023, não é apenas no nome. A nova obra do diretor Darren Aronofsky nos leva em uma triste trajetória de um outro protagonista atrás de algo que vai além da forma física: uma redenção para si mesmo.

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Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades é a autocrítica de Alejandro G. Iñárritu

O longa foi exibido no Festival de Veneza e teve uma pré-estreia presencial no Brasil, na seção Perspectiva Internacional da 46ª Mostra SP (Foto: Netflix)

Bruno Andrade

O que parece ser unânime em relação a Alejandro González Iñárritu é que ele nunca se esforça em agradar. Disso surgem virtudes e defeitos: ele pode criar obras originais e autênticas, com refinado valor estético, mas também pode cair no escárnio, na decepção, na epopeia que pode ser o ego de um diretor. Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades parece ser o meio termo entre essas duas situações. Com uma trama que se propõe a traçar a história de um renomado jornalista e documentarista mexicano, Silverio Gama (Daniel Giménez Cacho) – personagem marcado por uma profunda crise existencial –, o longa integrou a seção Perspectiva Internacional da 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.

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Terra e tradição se abrem sob os pés da família de Alcarràs

Imagem retangular que mostra uma cena do filme Algarràs. Uma família branca está em pé, todos virados de lado, olhando na direção esquerda da imagem. O fundo tem montanhas e plantações verdes.
Exibido na Competição Novos Diretores da 46ª Mostra Internacional de São Paulo, o longa não esquece que uma tradicional família agricultora na Europa sempre conta com o trabalho braçal de imigrantes pretos (Foto: MUBI)

Nathália Mendes

Eu não canto pela voz, […] por quem canto é por minha terra, terra firme, casa amada”, dizem os versos cantados por Rogelio (Josep Abad), patriarca dos Solés que protagonizam Alcarràs, longa de Carla Simón exibido na 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, na Competição Novos Diretores. A obra, uma coprodução espanhola e italiana, conta como uma família de agricultores no interior da Catalunha se vê sendo expulsa de sua propriedade após anos cultivando pêssegos naquela terra. E não há nada que se possa fazer. Diante das perdas inevitáveis, Rogelio acompanha em silêncio, assistindo com olhos carregados de tristeza a tradição de gerações se desfazer, bem como sua própria família.

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Carvão queima o retrato da família tradicional brasileira

O enredo explosivo de Carvão faz parte da lista da seção Mostra Brasil da 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (Foto: Pandora Filmes)

Jamily Rigonatto 

Quão falsas podem ser as interações da família que vemos todos os domingos com suas bíblias e crucifixos em mãos? Essa e outras reflexões similares são a proposta de Carvão, filme brasileiro dirigido por Carolina Markowicz. Entre tons hiperbólicos e reviravoltas, a produção se debruça sobre as contrariedades da moral humana. Parte da seção Mostra Brasil da 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, o longa desmonta a farsa do conservadorismo e a transforma em cinzas. 

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A morte é corporativa em Plano 75

Com uma menção especial do prêmio Camera d’Or na seção Um Certo Olhar do Festival de Cannes, Plano 75 integrou a Competição Novos Diretores da 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (Foto: Loaded Films)

Bruno Andrade

Em um Japão não muito distante, na tentativa de lidar com o envelhecimento da sociedade e aliviar o sufocamento econômico promovido pela política neoliberal, é criado um programa que encoraja cidadãos idosos a serem voluntários de eutanásia. A política em torno do projeto é simples: encurtar institucionalmente a vida dessas pessoas, oferecendo uma recompensa de 100 mil ienes pelo sacrifício, que podem ser gastos livremente com o objetivo de fornecer o necessário para um “último desejo”. Esse é o enredo de Plano 75 (Plan 75), a distopia necropolítica dirigida e roteirizada por Chie Hayakawa, que integra a Competição Novos Diretores da 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.

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Família, sangue, vingança e meio século de tradição reunidos em O Poderoso Chefão

Cena do filme O Poderoso Chefão - Família Corleone reunida para a foto oficial do casamento de Connie. A imagem exibe os principais membros da família Corleone. Vemos Don Vito centralizado com um smoking preto ao lado de sua esposa, Carmela Corleone (Morgana King). Do lado direito estão: Sonny (o mais velho), Sandra (esposa de Sonny), as filhas gêmeas de Sonny e Sandra à frente, Michael e sua namorada Kay. Ao lado esquerdo estão: Carmela, Connie Corleone (noiva) e seu marido Carlo Rizzi, Freddo e Tom Hagen. Todos os homens da família Corleone estão trajados de smoking preto, exceto Michael e o noivo Rizzi. Michael está com um terno oficial militar verde e Carlo aparece com uma gravata preta. Todas as crianças estão à frente de seus respectivos pais.
Coppola não poderia ser mais assertivo ao trazer o casamento de Connie Corleone como cartão de visita para apresentar o núcleo das personagens e, ao mesmo tempo, a dicotomia entre família e negócios (Foto: Paramount Pictures)

Gabriel Gomes Santana

Por que você veio até mim antes de ir à Polícia prestar queixas?, disse o grande padrinho, Don Vito Corleone, no início de O Poderoso Chefão. Aclamado pela crítica, vencedor de três Oscars e dono da mais alta charmosidade cinematográfica, o filme de Francis Ford Coppola celebra cinco décadas. Você conhece aquela expressão “old but gold, ou “velho, mas brilhante”? Se encaixa perfeitamente para resumir essa fantástica ascensão de um império americano à moda italiana. Este texto traz como tema central as nuances e razões que fazem da obra algo irrecusável, à frente de seu tempo e referência na arte de expor a máfia nas telonas.

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As verdades oblíquas de Dickinson

Cena da série Dickinson. Emily (Hailee Steinfeld) está sentada em sua escrivaninha, de frente para uma janela no centro da imagem. É dia, e uma cortina transparente cobre a janela. Emily se vira para a esquerda para observar alguma coisa, preocupada. Ela é uma mulher jovem, caucasiana e magra, de cabelos castanhos-escuros longos amarrados num coque. Ela usa um longo vestido azul marinho de mangas longas. Do seu lado esquerdo, vemos a ponta de um guarda roupa de madeira com alguns livros empilhados no topo e vários outros espalhados ao chão, apoiados num caixote. Ao seu lado direito, mais livros espalhados no chão e outros guardados numa pequena estante que vai até a altura da cintura e outra, acima dela, fixada na parede. Em uma pequena mesa ao seu lado, vemos dois livros maiores apoiados. No canto inferior direito, folhas verdes de uma planta aparecem. O papel de parede do quarto é coberto de flores e folhas sob um fundo bege.
“Conta toda a verdade, mas de viés —/O melhor caminho é o Círculo/Nosso frágil Prazer se ofusca/Se a Verdade vêm de súbito” (DICKINSON, 1872, p. 327)² [Foto: Apple TV+]
Gabriel Oliveira F. Arruda

O que esperamos de histórias biográficas? Quando olhamos para o passado e para as pessoas que viveram nele, buscamos nos identificar com elas? Ou apenas recontextualizar suas vidas e seus modos para inferir sobre nossa própria contemporaneidade? Buscamos fundo em seus registros para demarcar a fidelidade com nossa atual realidade ou apenas nos contentamos em preencher as lacunas de suas vidas para servir às histórias que desejamos contar, usando suas carcaças como figurinos e suas faces como máscaras?

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As realidades do 27º Festival É Tudo Verdade

Arte retangular horizontal de fundo azul com estrelas azul claro. Lê-se o texto: “as realidades do 27º Festival É Tudo Verdade It’s All True”. Foi adicionado o olho do Persona no canto inferior direito, com a íris em azul claro.
Entre os dias 31 de março e 10 de abril, o Persona acompanhou o 27º Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade (Foto: Reprodução/Arte: Ana Júlia Trevisan/Texto de abertura: Raquel Dutra)

Está aberta a temporada de festivais na cobertura do Persona. Entre os dias 31 de março e 10 de abril, a realização do 27º Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade inaugurou o ano para as nossas aventuras cinematográficas. Depois de um 2021 marcado pelo Cinema das mulheres, da cidade maravilhosa, das experimentações e fantasias, 2022 se inicia com a única coisa da qual não podemos fugir: a realidade.

Mas na verdade, o espectro contemplado pelo maior festival de documentários do mundo era muito desejado para integrar o horizonte das nossas experiências. Dessa vez, o anseio se tornou possível graças ao formato de realização do É Tudo Verdade, que aconteceu de forma totalmente gratuita e híbrida, sendo presencialmente nos cinemas das capitais de São Paulo e Rio de Janeiro, e virtualmente através da plataforma de streaming do festival e das dos parceiros Itaú Cultural Play e Sesc Digital. 

A seleção é tão vasta quanto o tema que a define: 70 filmes, que entre curtas, médias e longas-metragens, se dividiram nas mostras competitivas e nas demais categorias de exibição (Foco Latino-Americano, Sessões Especiais, O Estado das Coisas, Clássicos É Tudo Verdade). Trazendo o Cinema documental realizado em mais de 30 países, o alcance do É Tudo Verdade é reconhecido pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, de forma a classificar diretamente os filmes vencedores dos prêmios dos júris nas Competições Brasileiras e Internacionais de Longas/Médias e de Curtas Metragens para apreciação ao Oscar do ano que vem.

À distância, o Persona selecionou 25 títulos a fim de compreender a seleção de 2022, que elegeu como os homenageados da vez Ana Carolina e Ugo Giorgetti, dois dos nomes mais importantes do Cinema de não-ficção brasileiro. As obras de abertura propuseram uma reflexão sobre o passado, presente e futuro da Sétima Arte, enquanto o encerramento do festival ficou na responsabilidade de um dos premiados pelo público e pelo júri da edição mais recente do Festival de Sundance.

A curadoria do Persona conferiu todos eles, além das obras vencedoras e demais títulos que chamaram a atenção de Bruno Andrade, Enrico Souto, Raquel Dutra e Vitor Evangelista. O resultado dessa aventura você pode conferir abaixo, e em meio a experiências milagrosas, figuras históricas, lutas urgentes e muitas reflexões filosóficas, vale o aviso: não se esqueça que é tudo verdade.

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Em O peso do pássaro morto, a perda é a grande protagonista

Capa do livro O peso do pássaro morto. Na imagem, um fundo roxo carrega o título da obra como se as palavras estivessem apoiadas em fios elétricos pretos. No canto superior direito está grafado o nome da autora em branco, já no canto inferior esquerdo é marcada a logo da editora. Ainda há nos extremos da capa os números: 8, 17, 18, 28, 37, 48, 49, 50, 52.
O peso do pássaro morto, publicado pela Editora Nós em 2018, é a obra de estreia de Aline Bei (Foto: Editora Nós)

Jamily Rigonatto

“–claro, – respondi
entendendo que o tempo
sempre leva
as nossas coisas preferidas no mundo
e nos esquece aqui
olhando pra vida
sem elas”

Quantas vezes na vida é preciso deixar parte de nós ir? E quantas vezes isso acontece até que não reste nada? Em O peso do pássaro morto, Aline Bei nos convida para integrar essas perguntas em sua poética questionadora, que desde o lançamento do livro em 2018, compõe o ar encantador habitante da crueldade. Em um retrato versado pelo gosto amargo de perder, a autora de Pequena coreografia do adeus e Rua sem saída apoia-se em palavras duras e sinceras para explorar o ato de se despedir, com toda sua naturalidade devastadora. 

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