Vivemos em um país em que os ecos da homofobia, institucionalizada e articulada pelas principais ferramentas de poder, podem afetar até mesmo a relação de uma mãe e um filho na periferia da Baixada Santista. Um discurso que está socialmente arraigado de tal forma, que é capaz de levantar entre eles uma barreira quase intransigível, em nome de uma luta que opera contra seus próprios interesses. Pedágio, filme nacional que chegou aos cinemas em Novembro, assume todas as facetas desse fenômeno, através de uma trama que não poderia irromper de outra forma, que não em um humor tragicamente mordaz.
Abusos da mídia, dores físicas e psicológicas de artistas, transtornos desencadeados pelo meio e todos os bastidores podres da indústria musical de forma nunca antes vista. Foi o que The Idol prometeu explorar ao narrar a perspectiva de Jocelyn (Lily-Rose Depp), uma cantora mentalmente instável e fisicamente ferida pela profissão, que tem sua vida e a forma como enxerga a arte alterada ao conhecer um problemático produtor musical, Tedros (The Weeknd).
Em um dia cinza, uma trabalhadora de um supermercado é demitida por furtar uma refeição vencida, que iria para o lixo. Pouca diferença faz, já que um serviço tão mecânico poderia ser melhor aplicado em qualquer outro lugar. Na mesma cidade, mas aparentemente sem conexão nenhuma, um homem alcoólatra é dispensado por beber no trabalho. Para ele, a mesma coisa: com exceção do salário no fim do mês, pouco importa. É nesse cenário de desilusão e desesperança total que ambos se encontram, e Folhas de Outonomostra que é possível fazer comédia romântica sem nenhuma paixão ou graça.
Presente na 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo e no Festival de Cannes, o longa do finlandês Aki Kaurismäki parte de um lugar comum: uma demissão – ou melhor, duas demissões. No entanto, com a constante frieza do trabalho assombrando o dia a dia, as risadas se fazem no absurdo e na solidão compartilhada entre dois protagonistas que igualmente buscam por conexão humana (ou animal) em meio a um cotidiano de sobrevivência.
Reencontrar sentido em seus recomeços. É o que a sinopse de A Sobrevivência da Bondade propõe. Na trama, exibida na seção Perspectiva Internacional da 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo e vencedora do Prêmio da Crítica do Festival de Berlim, uma mulher negra é abandonada no deserto dentro de uma jaula. Conseguindo milagrosamente escapar depois de dias, ela cruza a paisagem árida em busca de salvação, para encontrar ainda mais barbárie na civilização.
A sinopse busca por recomeços, mas, a cada novo cenário apresentado, essa ideia parece mais distante. BlackWoman – como a protagonista é chamada nos créditos finais, uma vez que o longa-metragem praticamente não tem diálogos – cruza campos arenosos sem sinal de vida, cidades abandonadas por uma suposta guerra e trilhas em ambientes hostis, com o inimigo caminhando poucos metros à frente. A mulher não tem outro objetivo senão a sobrevivência e, para o espectador, o tom é contemplativo. O que estaria acontecendo ali? E, acima de tudo, o que isso significa?
Ao parafrasear Luis Buñuel, a renomada crítica Pauline Kael faz uma reflexão interessante: “Um elaborado conjunto de teorias trata o Cinema como ‘a viagem noturna ao inconsciente’ […]. O Cinema parece ter sido inventado com a finalidade de expressar a vida do subconsciente”. As narrativas nunca se limitam apenas à superfície – mergulham nas entranhas do pensamento. Anatomia de uma Queda, longa que integra a seção Perspectiva Internacional da 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, tem domínio dessa sensação, e trabalha em sintonia às verdades ocultas e dilemas da interpretação.
No cativeiro de Oh Dae-su (Choi Min-sik), papéis de parede repetidamente estampados com favo de mel, uma televisão de tubo em ótimo estado e um gás capaz de fazer adormecer compõem o cenário desconcertante. O quarto nunca é invadido pela luz natural, gotas de chuva ou o barulho da cidade, mas é penetrado por uma câmera de Cinema condicionada à perspectiva restrita do personagem, sufocando o espectador junto dele. Em 2003, o diretor sul-coreano Park Chan-wook lançou ao mundo a sua interpretação da série de mangá japonesa Old Boy (1996-1998) que, com uma paleta de tons verde, vermelho e roxo, se propôs a retratar a enorme prisão que acorrenta a sociedade e, principalmente, ocasionou o mais belo trauma geracional com um plot twist digno de calafrios.
Em um tom alegre e cheio de espírito, A Garota Radiante (2021) retrata a história de Irène (Rebecca Marder), uma adolescente apaixonada por Teatro. Dirigido e roteirizado por Sandrine Kiberlain, o longa francês é ambientado no ano de 1942 e mostra como é a vida de uma família judia, expondo, pouco a pouco, as proibições e os impedimentos impostos pelo nazismo. O filme é leve, divertido, mas traz em seus detalhes e entrelinhas o terror da época, que assusta, de uma forma ou de outra, o espectador, alertando-o do que pode estar por vir.
A Irlanda tem sido palco de produções interessantes e diversas. Longe dos conflitos amistosos e de uma bela ambientação folclórica, ou até da sensibilidade tocante de uma tal menina silenciosa, a ilha também abriga as Criaturas do Senhor e seus lados sombrios e humanos. Na obra, produzida pela oscarizada A24, a decisão de uma mãe entre proteger seu filho ou deixá-lo aceitar as consequências de suas próprias ações norteiam um dilema sem volta, capaz de alterar a trajetória da cidade inteira e de um patriarcado atemporal.
Estrelado pelos indicados ao OscarEmily Watson e Paul Mescal, o filme demora a mostrar a que veio. Brian (Mescal) retorna ao lar, uma ilha não nomeada da Irlanda, depois de anos morando na Austrália. Sua partida é um mistério e seu retorno, mais ainda. Mesmo assim, o homem, na casa dos seus vinte e tantos anos, é bem recebido pela irmã Erin (Toni O’Rourke) e principalmente pela mãe, Aileen (Watson). O menino de ouro da mulher, porém, não é bem como ela o vê e, ao longo dos 100 minutos, se revela.
Em 2017, quando aconteceu a passeata de Charlottesville, Infiltrado na Klan provavelmente estava finalizando seu processo de pesquisa e escrita ou começando suas filmagens. Talvez Spike Lee não esperasse que sua história, apesar de latente na sociedade contemporânea, se manteria tão atual. Muito além de apenas tocar na ferida do racismo, a obra também assumiu o papel de estancar um sangramento que, em sua esmagadora maioria, continua derramando sangue negro. De acordo com a mensagem que antecede o logo do filme, “essa parada é baseada em merdas reais pra caralho”.
O longa, que no seu aniversário de cinco anos encerrou a Mostra Cinema é Direito do Persona no Sesc Bauru, conta a história de Ron Stallworth (John David Washington), um policial negro da extremamente branca cidade de Colorado Springs. No local, em um momento de ebulição social americana, ele descobre uma célula da Ku Klux Klan ativa na cidade e decide se infiltrar na organização, dividindo sua identidade com o detetive branco ‘Flip’ Zimmerman (Adam Driver). Mas é no teor dessa mesma mensagem que está escondida a intenção de Spike Lee de, na verdade, trazer um meio termo entre fato e ficção para transmitir a ótica do diretor para o público. Tal aspecto transforma Infiltrado na Klan em uma das obras mais conscientes e contundentes da extensa carreira do cineasta.
Por muito tempo, o Cinema retratou os povos indígenas moldados por óticas brancas, completamente envoltas de estigmas e equívocos. Essas imagens se fixaram no imaginário popular e, muitas vezes, a descrição que temos dos nativos é animalizada, preconceituosa e intolerante. Fugindo desse movimento, os diretores Renné Messora e João Salaviza trouxeram às telas Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos (2018). O filme, gravado na Aldeia da Pedra Branca em Tocantins, é um registro contemplativo e profundo dos Krahô e sua grandeza espiritual, e integrou a Mostra Cinema é Direito no Sesc Bauru.