Terra e tradição se abrem sob os pés da família de Alcarràs

Imagem retangular que mostra uma cena do filme Algarràs. Uma família branca está em pé, todos virados de lado, olhando na direção esquerda da imagem. O fundo tem montanhas e plantações verdes.
Exibido na Competição Novos Diretores da 46ª Mostra Internacional de São Paulo, o longa não esquece que uma tradicional família agricultora na Europa sempre conta com o trabalho braçal de imigrantes pretos (Foto: MUBI)

Nathália Mendes

Eu não canto pela voz, […] por quem canto é por minha terra, terra firme, casa amada”, dizem os versos cantados por Rogelio (Josep Abad), patriarca dos Solés que protagonizam Alcarràs, longa de Carla Simón exibido na 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, na Competição Novos Diretores. A obra, uma coprodução espanhola e italiana, conta como uma família de agricultores no interior da Catalunha se vê sendo expulsa de sua propriedade após anos cultivando pêssegos naquela terra. E não há nada que se possa fazer. Diante das perdas inevitáveis, Rogelio acompanha em silêncio, assistindo com olhos carregados de tristeza a tradição de gerações se desfazer, bem como sua própria família.

Sem documento formalmente escrito e assinado, o terreno foi “dado” aos Solés há muitos anos, um agradecimento dos Pinyols por terem sido protegidos durante a guerra espanhola. Este é o cânone que fundamenta a narrativa. Com o passar do tempo e as mudanças geracionais, o novo primogênito que comanda a família não se contenta mais com plantações de pêssegos, mas quer o dinheiro que a energia gerada por painéis solares pode prover. Agora, o vínculo que um dia tiveram não importa mais. Sem compreender como os simbolismos são tão importantes para si e tão desprezíveis ao outro, o que resta ao avô Solé é tentar guardar os laços que mantém a tradição até o fim da colheita.

Imagem retangular que mostra uma cena do filme Algarràs. Uma família branca está reunida, sentada em uma mesa repleta de comidas. Eles estão virados para a direção da foto. Todos sorriem, se movimentam ou conversam uns com os outros.
O sentimentalismo de Rogelio mistura decepção e relutância com a transição de gerações, de forma que mal assume o erro que levou os Solé àquela situação (Foto: MUBI)

Alcarràs é um longa da vida real. Não só por levar o nome da pequena cidade da Catalunha onde a própria família da diretora cultivava pêssegos, mas também pelo seu elenco de atores amadores, residentes daquele mesmo interior espanhol. O protagonismo é horizontal, todos ganham luz por completo, de forma igualitária; esta característica brilhante exemplifica como a vida simplesmente acontece. Além de Josep como o patriarca Solé, conhecemos seu sucessor e único filho homem Quimet (Jordi Pujol), a mulher dele, Dolors (Anna Otín), e seus filhos Roger (Albert Bosch), Mariona (Xènia Roset) e Iris (Ainet Jounou). 

Compondo os Solé, ainda, estão as irmãs de Quimet, Glòria (Berta Pipó) e Nati (Montse Oró), com seu marido Cisco (Carles Cabós) e filhos, os gêmeos Pau (Isaac Rovira) e Pere (Joel Rovira). Como uma família tradicional, os membros se relacionam uns com os outros de acordo com suas idades, o machismo geracional e o tradicionalismo aparecem, dando mais palco para os homens do que para as mulheres, mas sem caracterizar tais contrastes como tóxicos ou necessariamente opressores. Aos poucos, os conflitos explodem, exatamente como deve ser. É quase como se eu estivesse assistindo a minha própria família.

Imagem retangular que mostra uma cena do filme Algarràs. Na imagem um jovem branco está deitado em uma cama, uma criança de cabelos castanhos está deitada em seu peito e tem um braço transpassado por ele. Ambos olham na direção esquerda onde uma jovem está agachada atrás da cama, apenas seu pescoço e cabeça aparecem, olhando de volta para os dois.
O protagonismo horizontal permite que cada personagem transmita frustração à sua maneira: enquanto Roger toma porre e deixa a plantação encharcar até que os pés das pessegueiras virem pura lama, Íris toca flauta nos ouvidos do pai o dia todo (Foto: MUBI)

É curioso que a narrativa linear de Alcarràs seja, ao mesmo tempo, um ponto fraco e um ponto positivo. Sua semelhança com a realidade é tamanha que até a progressão de acontecimentos imita a vida: não abrimos os olhos todos os dias aguardando o clímax, a chegada de problemas ou da vitória. Na verdade, vivemos na simplicidade com que os segundos correm. Tal lentidão do cotidiano enfraquece o longa tanto quanto o constrói artisticamente, tecendo as teias de uma família silenciosamente frustrada. A inevitabilidade da desgraça que virá provoca fervor interno em suas personagens, esses que, tendo pouco direito de externalizá-lo, se mantêm quietos, transparecendo a raiva e a decepção em momentos específicos e de formas diferentes.

Se em Verão 1993 Simón estreou na direção narrando sua própria história, agora, em Alcarràs, ela transbordou realidade cultural. A iniciativa inteligentíssima de levar pessoas comuns para contar a obra fictícia que escreveu ao lado de Arnau Vilaró, este que também cresceu em uma família agricultora na Espanha, é o que dá brilhantismo à composição. A empreitada trabalhosa e brilhante trouxe a conquista do Urso de Ouro de Melhor Filme no Festival de Berlim de 2022. Mas, para além dos prêmios, a produção faz mais do que é possível medir através de estatuetas: transborda verdade. Assim, ao lado de um elenco com pertencimento, sua ficção é dotada de realismo, um retrato fielmente protagonizado por quem está inserido naquele contexto. 

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