A arte berra em Ziraldo – Uma Obra que Pede Socorro

Imagem retangular e colorida retirada do documentário ‘Ziraldo - Uma Obra que Pede Socorro’. Nela, vemos em foco Ziraldo, um homem de idade avançada, pele parda, cabelos e sobrancelhas brancos, que veste uma camisa branca com um colete bordado bege e preto. Ele olha para cima, pensativo, enquanto coloca o dedo indicador da mão direita sobre a boca, em sinal de reflexão.
Ziraldo – Uma Obra que Pede Socorro, exibido pela 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, é a única produção da seção Apresentação Especial disponibilizada online (Foto: Elo Company)

Enrico Souto

“Arte não é um privilégio do artista, é um direito do ser humano”. É com essa e outras contestações que abre-se Ziraldo – Uma Obra que Pede Socorro, parte do acervo da 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. O ponto de partida é Ziraldo, “o Michelangelo da boemia carioca”, um dos artistas mais geniais da história contemporânea do Brasil. Aprendemos um pouco mais sobre seu talento e ofício, agora por entre lentes pouco exploradas. Todavia, o documentário vai muito além da pessoa Ziraldo. Além de um panorama singular sobre sua obra, o que se apresenta aqui é um comentário amplo sobre a urgência da atual situação das artes no Brasil e como a cultura do país é constantemente negligenciada em diferentes esferas sociais. O resultado é uma poderosa denúncia e um clamor por socorro.

Ziraldo ostenta uma pluralidade de competências, isso todo mundo sabe. Mas alguns de seus trabalhos sempre recebem maior destaque, e com razão. Seja sua atuação como escritor de Literatura infanto-juvenil, com obras como O Menino Maluquinho e A Turma do Pererê, que se entranharam no inconsciente cultural do país, ou suas contribuições como cartunista n’O Pasquim, com seu traço irreverente e humor crítico e contestador, quando também foi preso pelo até então regime militar em 1968. Devido a isso, pouco se discute sobre a riquíssima presença de Ziraldo nas artes plásticas, que está longe de ser ocasional. É, então, sabendo disso que o documentário de Guga Dannemann, seu segundo, aponta para tal caminho tão atípico.

Fotografia retangular e colorida. Nela, vemos, da cintura para cima, Ziraldo, um homem de idade avançada, pele parda, cabelos e sobrancelhas brancos, que veste uma camisa amarela, um colete branco e uma calça jeans. Ele olha para frente, enquanto se apoia na parede, sorridente. Na parede, pode-se ver o mural do Canecão, uma das obras mais icônicas de Ziraldo. A imagem de destaque da pintura é um guerreiro em uma armadura medieval e um jacaré brindando com copos de cerveja, em cima de uma lua, com olhos, boca e nariz. O traço da obra é arredondado e geométrico.
Ziraldo é também responsável pelo pôster e identidade visual da 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, sendo homenageado em dois documentários do evento (Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)

Nesse âmbito, a principal referência do longa é a, considerada por muitos, obra-prima sublime de Ziraldo: a Santa Ceia, um enorme mural de 32 metros de largura e 6 metros de altura, que o artista pintou nas paredes do que foi uma das maiores casas de shows do Rio de Janeiro: o Canecão, em Botafogo. Feito por cerca de 6 meses em 1967, em plena ditadura, o painel pretendia reconstruir e reinterpretar o afresco de Leonardo Da Vinci, A Última Ceia, através dos seus traços mais arredondados e cartunizados. A obra oferece uma potente riqueza estética, e bebe essencialmente da fonte do cubismo, especialmente do quadro Guernica, trabalho de Pablo Picasso, que também é referenciado com frequência durante o filme.

A direção de Dannemann monta um quebra-cabeças de entrevistas feitas com especialistas e pessoas próximas de Ziraldo – Zuenir Ventura e Juarez Machado são exemplos de figuras que marcam o filme –, além do próprio. Devido a isso, o apelo visual é mínimo, contudo, a riqueza dos relatos consegue sustentar a obra de maneira formidável. Além disso, o tom encontrado pelo documentário (Ziraldo, Lifelong Work of Art Crying for Help em inglês) parece ideal. Geralmente descontraído, transmitindo a alegria, beleza e nostalgia das memórias do mural e do caráter comunitário e coletivo da produção, porém encontrando o perfeito equilíbrio quando demanda seriedade e concebe suas críticas.

Fotografia retangular e preto e branco. Nela está, em cima de um andaime de madeira, Ziraldo, um homem de pele parda e cabelos escuros, que veste uma camisa polo branca e uma bermuda cinza. Ele está com um cigarro na boca, e revira uma cartolina branca. Do lado dele, está uma mulher branca, de cabelos longos e escuros presos, vestindo uma camisa social branca e uma calça preta. Ela segura seu óculos na mão direita, e observa atentamente as ações de Ziraldo. Em cima do andaime, vemos uma cadeira, escada e equipamentos de pintura. Na parede, vemos parte incompleta do mural do Canecão, obra icônica de Ziraldo.
O mural, que retratava um jantar regrado por cerveja e por um forte espírito carioca, foi alvo de críticas e considerado transgressor pelo regime militar. (Foto: Antonio Rudge)

Posto isso, nos envolvemos na história que formou o mural do Canecão e, no entanto, logo somos introduzidos ao seu lado sombrio, e a motivação real do documentário. Infelizmente, o painel não resistiu ao teste do tempo. Mas isso não veio por desgastes físicos naturais, quem dera. Visando expandir o estabelecimento, hoje fora de funcionamento, partes do mural foram cobertas, apagadas ou destruídas, expressando completo desrespeito com uma das obras brasileiras mais importantes da segunda metade do século XX. A UFRJ, atual proprietária do local, aprovou um projeto de restauração da criação de Ziraldo em 2015, mas que nunca foi efetivada por falta de orçamento no processo. Neste momento, a universidade cogita conceder o prédio à iniciativa privada, buscando investimento.

Investigando um incidente particular com a obra de um dos maiores artistas brasileiros, Ziraldo – Uma Obra que Pede Socorro descobre um fenômeno muito, muito mais grave. E que já não é mais novidade. Desde os incêndios anunciados do Museu Nacional do Rio de Janeiro e da Cinemateca Brasileira, até a depravação e descarte de obras artísticas, como é o caso do mural do Canecão e muitos outros; são apenas sintomas de um projeto deliberado de desmonte cultural, capitaneado pelo governo Bolsonaro, mas cuja raiz surge de uma problemática estrutural. Aprendemos a desvalorizar a nossa cultura do berço, de modo que presenciamos a arte nacional ser apagada, bem diante de nossos olhos, sem que nenhuma providência seja tomada. Porém, a Arte não perece, pelo contrário, passa a berrar cada vez mais alto. E, se ela pede por socorro, talvez devêssemos atendê-lo.

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