This Is Us é maior que nós

A uma temporada de se despedir da TV, This Is Us alcançou três indicações nas categorias principais do Emmy 2021 (Foto: NBC)

Raquel Dutra

Ao longo de quatro anos, This Is Us se encarregou de retratar as dores e delícias da vida a partir de crônicas da família Pearson. Com seus personagens profundos e reais, explorados numa história livre e sem amarras, a produção da NBC criou seu maior encanto em sua humanidade radical e melodramática, que gerava fortes relações com seu público ao passo em que criava as mais diversas catarses dentro e fora da tela. Alcançando o clamor da crítica e do público com sua fórmula completamente singular, This Is Us não escapou de viver, como qualquer outra narrativa seriada, seus altos e baixos, e com sua bagagem, chegou ao seu quinto e penúltimo ano. 

“O que resta, então, à grandiosidade narrativa de This Is Us?” era a pergunta que rondava a chegada da quinta temporada da série, que já havia trabalhado incontáveis aspectos da vida de seus personagens, com a característica fundamental de transcender até mesmo o tempo para fazer isso. Envolvendo-se em reviravoltas, reflexões sobre o que havia sido o passado e vislumbres do que viria a ser o futuro, o presente da história estava no marco dos 40 anos dos trigêmeos que nasceram de Rebecca (Mandy Moore) e Jack (Milo Ventimiglia), que acontecia ao mesmo tempo em que o núcleo familiar da série lidava, de forma individual e coletiva, com suas muitas questões, e ao mesmo tempo em que o mundo real vivia um dos momentos mais difíceis da história da humanidade em decorrência da pandemia de covid-19.

Como sempre, corajosa em assumir os rumos de sua própria narrativa e nunca receosa em compreender a vastidão de sua matéria-prima, This Is Us propôs a se envolver com o mundo de forma mais direta, abordando os aspectos da vida real de 2020. Assim, a quinta temporada da série abraça o mundo, a humanidade e sua história, continuando com a sua fórmula de traçar questões reais da vida humana sem deixar de tratar as suas tramas complexas. Agora, porém, o conjunto do trabalho apresentado causa um efeito diferente, que responde aos questionamentos sobre o rumo da produção através da conclusão que resta ao seu público ao fim do quinto ano: This Is Us é algo maior.

A quinta temporada de This Is Us teve dois episódios a menos do que o habitual por conta da pandemia de covid-19 (Foto: NBC)

O novo nível de This Is Us é alcançado através de alguns elementos. O primeiro – e talvez mais importante deles – é o protagonismo de Randall (Sterling K. Brown), que direciona grande parte dos acontecimentos da nova temporada. A partir do gancho narrativo do fim do quarto ano, a trama da vez se inicia logo depois de uma discussão terrível que ele tem com Kevin (Justin Hartley), e embora a relação dos irmãos seja um dos pontos de maior destaque do quinto ano, assim como a individualidade e sonhos de Kevin, a série não se importa em ser parcial e definir Randall como centro da narrativa. E de forma alguma isso é um erro.

A decisão de concentrar a história em sua figura mais complexa, além de assegurar um desenvolvimento merecido para Randall – que reverbera no avanço de muitas outras personagens, garantindo assim roteiros primorosos para os 16 episódios -, também coloca This Is Us no alinhamento perfeito de seus objetivos no novo ano, isto é, se contextualizar de forma mais direta no mundo real. Afinal, não tem forma melhor de refletir sobre as implicações da pandemia de covid-19 e o levante anti-racista de 2020 do que através do membro da família Person que processa o fato de ter sido criado sem qualquer informação sobre seus pais biológicos, enquanto vive distante da mãe e dos irmãos, cria três adolescentes, trata seus problemas de ansiedade à distância e trabalha como vereador negro de um um distrito de maioria não-branca.

E se a inteligência de Randall administra o contexto pandêmico com maestria, a repercussão do assassinato de George Floyd é, obviamente, um assunto difícil para o personagem de Sterling K. Brown. Ao lidar com os noticiários, com as questões de suas filhas, com a relação abalada com seus irmãos e com o comportamento do resto da família – que é repleto de boas intenções, mas exaustivo para quem é colocado na posição de orientar as ações das outras pessoas -, Randall se vê diante de muita coisa e percebe, mais uma vez, que está em conflito com sua própria identidade.

“Sempre pareceu que quando essas coisas aconteciam no mundo, elas ficavam sempre do lado de fora da casa”, desabafa um despedaçado Randall que encara o assassinato de George Floyd como filho adotado em uma família branca e pai de uma família negra (Foto: NBC)

É assim o primeiro episódio de This Is Us depois de um ano como 2020. Levantando debates sobre relações raciais desde Randall se entende por gente, a trama mantém seu compromisso com um dos temas mais importantes da humanidade e não foge de um dos aspectos mais importantes do último ano. O tato é medido, e sem perder seu fio narrativo, o roteiro de Forty: Part One aprofunda a verossimilhança de This Is Us na personagem machucada e cansada que existe no olhar e na fala de Sterling K. Brown

O que a história diz na atribulada abertura da temporada é que o filho perfeito está em um estágio avançado de seu processo de humanização. Ou seja, Randall viverá muitos momentos incômodos e o público discordará muito de suas atitudes. À medida em que ele segue seu processo terapêutico, ele mergulha em si mesmo e se distancia das outras pessoas, num movimento contrário a tudo o que conhecemos do personagem mais abnegado de This Is Us até então. 

Mas essas consequências são inevitáveis, como parte de algo muito maior e muito mais significativo para a trama e para a vida de Randall, que numa conexão direta ao que vivemos depois de tantas tragédias no último ano, diz estar “apenas muito, muito, muito triste”. Ironicamente, felizmente, ele (e nós) podemos contar com a inteligência emocional de Beth (Susan Kelechi Watson), que ancora o coração ansioso do esposo e a emoção à flor da pele do público na essência nada perfeita que une perfeitamente todas as coisas em This Is Us: o amor.

A série ainda encontra espaço para homenagear os cientistas que trabalharam para desenvolver conexões de internet, tecnologia que permitiu que continuássemos conectados com quem amamos nos meses em que estivemos distantes por conta da pandemia (Foto: NBC)

A única coisa capaz de reverter a tendência de This Is Us se transformar em This Is Randall é uma força maior do que a humanidade do personagem. Então, entre as idas e vindas e movimentações do destino sobre a história de vida e família de Randall, a trama nos coloca diante da história mítica de Laurel (Jennifer C. Holmes), sua mãe biológica, de frente com a figura mais fascinante e apaixonante do universo vasto de pessoas que já passaram ou passarão pela série. Sempre retratada um amor absurdo pela memória de William (Ron Cephas Jones), agora, ela encerra a injustiça de não se apresentar dignamente em This Is Us através do lindo roteiro de Eboni Freeman e Kay Oyegun (que também dirige o episódio).

“Você tem os meus olhos. Vejo tanta dor neles”

O encontro espiritual de Randall e Laurel cura as feridas do personagem de uma forma que subverte a tradição dos seus ciclos: se antes ele iniciava um novo ano sob uma plenitude superficial que quebrava sua pessoa ao decorrer da narrativa, agora, existe aqui um processo de reconhecer suas dores logo de início e assim ser capaz de juntar os pedaços de sua identidade. E como já é do conhecimento de quem acompanhou todos os anos de This Is Us, a dimensão da personagem de Randall no sistema da série interfere na dinâmica de todos os outros, que a partir da ligação profunda que eles mantêm uns com os outros, encontram os meios para investigarem suas perturbações e encontrarem seus caminhos.

No meio do nó narrativo, Rebecca também segue tratando o diagnóstico inicial de Alzheimer (Foto: NBC)

E assim, This Is Us nos leva ao emocional conflituoso de Kate (Chrissy Metz). A segunda parte do trio de irmãos vive uma nova fase de sua vida, marcada pelo amadurecimento de sua relação com a sua mãe, a satisfação que encontrou na maternidade ao lado de Toby (Chris Sullivan), sentimento que faz o casal decidir por ter mais um filho. Entretanto, a gestação é algo arriscado para a saúde de Kate, que opta, a partir do incentivo do esposo, pela adoção. O processo os leva até Ellie (Annie Funke), que segue com uma gravidez sem o desejo de ficar com o bebê, procurando por pais adotivos para a futura criança. 

As experiências de Kate com a mãe biológica de sua futura filha são positivas, mas desatam reflexões sobre a sua adolescência difícil, quando ela viveu um relacionamento abusivo com Marc (Austin Abram), assunto introduzido na quarta temporada que ganha um encerramento aqui. Entre as conversas daquelas duas mulheres, This Is Us lembra de um aborto que Kate realizou quando o pesadelo da relação tinha chegado ao fim em pleno momento de luto por Jack. E diante dessa situação, a narrativa escolhe um caminho muito feliz, tanto na forma respeitosa como retrata essa parte da história de Kate, quanto na forma satisfatória como resolve as feridas do passado da personagem.

O processo acaba por ser um importante vetor para o desenvolvimento de Kate na penúltima temporada de This Is Us. Observando a forma como sente a situação no presente, ela percebe que as coisas não estão resolvidas e que não tem o impacto que ela imaginava, e ao dividir sua aflição com Toby, decide ir, com o apoio dele, confrontar Marc e encerrar de vez essa parte de sua história. Então, um dos maiores atos da personagem em sua longa batalha com autoestima se concretiza bem diante dos nossos olhos – e dos olhos do homem que a destruiu quando ela tinha apenas 17 anos.

Outra importante novidade para Kate é o emprego que ela inicia na escola de música para crianças cegas de Jack, seu bebê, que traz a sensação de realização que a personagem perseguiu por tanto tempo (Foto: NBC)

Enquanto Randall conclui sua longa jornada em busca de sua identidade e Kate resolve sua difícil relação consigo mesma, a perfeição narrativa de This Is Us direciona Kevin ao início de um capítulo importante da construção de sua história. Continuando a maior surpresa da quarta temporada, o novo pai da família Pearson desfruta da realização de um sonho. Desde a fascinação com os bebês se mexendo pela primeira vez até a determinação em não perder o nascimento dos gêmeos, o irmão mais velho não decepciona e This Is Us entrega o melhor arco possível para o personagem que por tanto tempo procurou seu lugar no mundo. 

A experiência ainda permite a Kevin desenvolver uma forte conexão com Jack (Milo Ventimiglia), o alvo de toda a adoração que compõe a memória mais amada e dolorida de This Is Us. É dele que vem a mensagem mais forte do ano, que parece definir a concepção da série sobre a vida nesta etapa em que busca ir além. Quando o filho mais anseia por ser como o pai, que é cercado pelo ideal inatingível de paternidade e perfeição, Kevin entende por meio de Jack que a questão toda é muito maior do que uma existência sem defeitos. Porque o amor é muito, muito, muito maior que qualquer outra coisa.

E falando de amor, o sentimento que o astro de Cinema desenvolve por Madison (Caitlin Thompson) constrói um relacionamento repleto de aprendizados. Mesmo que a conclusão dos dois não seja de acordo com o planejado, o fim da temporada chancela um processo importante de consolidação de autoconhecimento em Kevin e de autoestima e amor próprio em Madison, que vence alguns dos monstros que enfrenta desde a primeira vez que apareceu em This Is Us.

No mesmo dia e ao mesmo tempo, os bebês de Kevin e Madison nascem em um lugar e o de Kate e Toby em outro, e 40 anos depois, temos uma nova geração de Big Three (Foto: NBC)

Ao cruzar todas as suas tramas complexas, This Is Us resolve algumas delas ao mesmo tempo em que não tem medo de desenvolver outras em sua penúltima temporada. E por mais que o quinto ano da série seja significativo para a história, para seu público e para a relação que existe entre ambos, a produção não conseguiu o mesmo efeito no lugar que poderia encontrar seu reconhecimento. Preparando-se para se despedir da TV aberta norte-americana, a série chegou ao Emmy 2021 com apenas três indicações dentre as categorias principais, ainda na tentativa de se recuperar do desempenho decepcionante do ano passado.

Primeiro, o incomparável Sterling K. Brown é mais uma vez nomeado pelo seu trabalho como Randall em Melhor Ator em Drama, categoria que o viu vencer em 2017 e indicado por todos os anos de This Is Us. No âmbito das atuações coadjuvantes, apenas Chris Sullivan conseguiu chegar à disputa do Emmy, enquanto nas convidadas, Phylicia Rashad convenceu a Academia de TV com a pose irredutível de Mama C, a mãe de Beth. Sem indicações para roteiro e direção, a série da NBC conseguiu ser lembrada em Melhor Série de Drama no meio de gigantes como The Crown, Pose e The Mandalorian.

Quem fica de lado na quinta temporada de This Is Us é Rebecca, que segue aprendendo a viver com o diganóstico inicial de Alzheimer (Foto: NBC)

O quinto ano de This Is Us, que busca como nunca antes a forma como as coisas acontecem no mundo real, na verdade demonstra um outro significado: tratar a vida de forma geral não é o seu foco. A atenção da obra se direciona muito mais para a sua própria história e seus personagens, aprofundando, investigando e curando suas pessoas e suas narrativas. Como consequência da relação íntima que construiu com seu público, esse processo ultrapassa a tela e atinge processos catárticos e terapêuticos de quem acompanha as crônicas da família Pearson durante todos esses anos, mas This Is Us é maior que isso.

Deixe uma resposta