O Cinema político sempre encontrou solo fértil no Brasil. Por aqui, não falta o que retratar: ditaduras, questões trabalhistas, de distribuição de renda, alimentos e moradia, golpes de Estado e por aí vai. Até um dos mais básicos processos democráticos, as eleições e os seus ecos na sociedade brasileira, têm sido tema de poderosas metáforas na produção nacional, com a crescente ameaça à democracia sob a premissa de defesa dos bons costumes e do patriotismo. Voltando os olhos para o outro lado do oceano Atlântico, Sérgio Tréfaut, cineasta brasileiro que viveu em Portugal e na França, joga luz sobre o fenômeno do recrutamento de jovens sobretudo franceses para se juntarem às linhas de luta do Estado Islâmico. Em A Noiva, que estreou no país na seção Perspectiva Internacional da 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, o conflito é pincelado através da vivência de Bárbara, viúva de um jihadista.
As transformações físicas, descobertas sexuais e emoções intensas que fazem parte da transição da infância para a adolescência povoam e intrigam o imaginário popular. Muitos artistas buscam examinar isso em suas obras, partindo de suas experiências íntimas. Em Das Tripas Coração (1982) – em inglês, Heart and Guts –, a cineasta Ana Carolina constrói um microcosmo que expõe aspectos dessa transição de forma cômica e teatral, valendo-se de uma narrativa onírica não-linear, declamações inflamadas e murmúrios fora de cena. Uma inclinação à rebeldia e à desobediência permeia o longa-metragem, que desenrola-se dentro de um colégio feminino, austero, religioso e falido. O filme compõem a seção Apresentação Especial na programação da 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.
É possível que um sentimento de surpresa arrebate um espectador desavisado ao descobrir que Corações Gentis(2022), representante belga na Perspectiva Internacional da 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, é um documentário. Essa surpresa, no entanto, está longe de afastar o gênero do longa-metragem dirigido pela dupla de cineastas Olivia Rochette e Gerard-Jan Claes. Nesse híbrido de sensibilidades ficcionais e documentais, o casal de jovens adultos Billie Meeussen e Lucas Roefmans são retratados à beira de transformações em suas aspirações pessoais, com uma emoção vertiginosa e delicada — um típico frio na barriga adolescente — acerca das expectativas sobre o futuro e suas incertezas.
A produção romena Cinema Almanac (Almanah Cinema, no original), presente na 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, é apresentada como uma coletânea de seis curtas de Radu Jude (Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental), que assina a direção e roteiro em algo semelhante a quando um escritor publica um volume de seus contos ou poesias. Por estarem reunidos em um mesmo conjunto, faz sentido pensar que possuem características em comum, além da mera aleatoriedade. Cinco dos curtas que a compõem, Caricaturana, Os Potemkinistas, Memórias do Front Oriental, As Duas Execuções do Marechal e Punir e Disciplinar,mostram que o cineasta busca refletir sobre as imagens do passado e o possível impacto que podem causar no observador contemporâneo. Porém, ele próprio mal consegue impactar, devido à forma como utiliza as fotografias.
Paloma trabalha colhendo mamões em uma plantação, faz bico de cabeleireira, namora com Zé e, junto dele, cria a pequena Jenifer no interior do Pernambuco. Ela é espirituosa, bondosa e amada por todos da cidadezinha, e no fundo, tem um desejo próximo ao coração: se casar na igreja, vestida de noiva, com buquê e chuva de arroz. Mas, quando enfim toma coragem e chega ao padre com o singelo pedido, ouve um sonoro ‘não’. Por ser uma mulher trans, o sonho de Paloma não pode ser concretizado.
Na trama, presente na seção Mostra Brasil da 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo e inspirada por acontecimentos reais, quem interpreta Paloma é a grandiosa Kika Sena. Arte-educadora, diretora teatral, poeta e performer, graduada em Licenciatura em Artes Cênicas pela Universidade de Brasília (UnB) e mestranda em Teoria em Prática das Artes Cênicas pela Universidade Federal do Acre, Sena é pesquisadora nas áreas de gênero, sexualidade, raça e classe, e autora dos livros Marítima (2016) e Periférica (2017) e da zineSubterrânea (2019).
Quando se trata de Durval Discos, existem dois tipos de público:aquele que começa a assistir o filme esperando uma coisa e o que termina tendo recebido outra. É fato que a vivência é comum para qualquer obra, mas, no caso específico desta em questão, o aspecto é muito mais chamativo. A experiência é tão marcante que a 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo programou uma exibição do longa para o dia 28 de outubro, como parte da seção Apresentação Especial e no exato dia da comemoração dos 20 anos de aniversário da produção.
“Ainda é tempo de morrer amanhã, que será o ontem de depois de amanhã, se eu então continuar vivo.”
– Javier Marías
O primeiro ano do Clube do Livro está chegando: em Setembro, completamos nossa 12ª edição, preparados para encerrar um ciclo que nos fez próximos da Literatura como nunca antes havia acontecido. Iniciando as comemorações desse marco tão especial, trouxemos A Pediatra, de Andréa del Fuego, para deixar suas impressões sobre o tão saudável projeto caçula do Persona.
O que encontramos a partir daí, no entanto, foi um procedimento nada convencional. A obra da autora paulistana se concentra em Cecília, uma pediatra que é o exato oposto do estereótipo que lhe é associado. Longe da imagem maternal e paciente evocada pela sua profissão, a personagem é munida de uma frieza incorrigível, o que a faz, nem tão surpreendentemente assim, uma médica muito bem-sucedida.
Com essa narrativa peculiar, as palavras concisas de Andréa del Fuego permeiam um humor perspicaz no cenário da classe média alta de São Paulo. Pelo fluxo de consciência de Cecília e suas peripécias cirurgicamente calculadas, a autora não precisa de mais de 160 páginas para propor reflexões nada pretensiosas sobre papéis de gênero, relacionamentos familiares e desigualdades sociais.
Lançado em 2021, A Pediatra é somente a mais recente demonstração dos méritos da mestra em Filosofia laureada com o prêmio José Saramago em 2011. Na ocasião, a obra tratava-se apenas de seu primeiro romance: Os Malaquias, drama familiar que carrega a referência do Nobel de Literatura português, tido como a principal referência da autora. Enquanto a nova edição do livro integra novamente o título ao catálogo da Companhia das Letras, o último romance de Andréa del Fuego faz seu nome integrar novamente a lista do Prêmio Jabuti, Prêmio São Paulo de Literatura e do Prêmio Oceanos.
Mas nem só de comemorações são feitos os inícios e fins de ciclos. No 9º mês do ano, também houve a despedida de Javier Marías, escritor, tradutor e editor espanhol considerado um dos contemporâneos mais importantes da língua. Com apenas 20 anos, iniciou seus trabalhos literários com Os domínios do lobo (1971), se consolidando na Literatura da Espanha com os romances O homem sentimental (1986) e Todas as almas (1989). O cenário internacional veio em 1992, quando Coração tão branco rompeu todas as barreiras ao vender 1 milhão de exemplares e ser traduzido para mais de 40 idiomas.
Além de se destacar entre os romances, cujo hall de sucessos ainda engloba Os enamoramentos (2011) e a trilogia – considerada sua obra-prima – Seu rosto amanhã (2002-2007), o autor também era conhecido pelos seus contos e artigos, sempre alinhados pela sua perspectiva de formação e experiência como docente em Filosofia e Letras, primeiro pela Universidade Complutense de Madrid, depois na Universidade de Oxford. No dia 11 de Setembro, Javier Marías faleceu aos 70 anos, em decorrência de uma pneumonia. Sua extensa produção literária angariou respeito e admiração pela crítica e pelos leitores, sendo um eterno favorito ao Nobel de Literatura – mas isso é assunto para o mês que vem.
Entre as idas e vindas do meio, parte fundamental do nosso radar afiado desde Outubro de 2021, introduzimos mais um Estante do Persona. Na companhia de outros trabalhos literários louváveis que a nossa Editoria selecionou para as indicações do mês, finalizamos o primeiro ano do Clube do Livro de olho no que vai terminar de definir a Literatura em 2022.
Na floresta colorida que preenche com entusiasmo a tela de Perlimps, uma das animações mais aguardadas da 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, dois agentes secretos duelam por um bem em comum. Do Reino do Sol, Claé (Lorenzo Tarantelli) é uma raposa que insiste em se identificar como lobo, enquanto Bruô (Giulia Benite), nascida no Reino da Lua, representa uma miscelânia selvagem, assumindo a forma de um urso com rabo de leão. À primeira vista inimigos, os bichinhos entendem que apenas com a união será possível derrotar o inimigo invisível.
Jacky Caillou é o protagonista ingênuo e pouco convincente do primeiro longa-metragem do diretor Lucas Delangle, O Estranho Caso de Jacky Caillou. Ambientado nos Alpes, a obra participa da 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo na seção Competição Novos Diretores e, anteriormente, foi exibido no Festival de Cannes 2022. O filme francês, parte do rol nada seleto de títulos que se iniciam com “O Estranho Caso”, baseia a sua narrativa no poder de cura popular e na explicação do fantástico pela natureza, fato que o afasta do extraordinário e somente o aproxima do comum.
Falar em Cinema Brasileiro é naturalmente evocar Glauber Rocha. E é inevitável falar sobre Glauber Rocha sem lembrar de Deus e o Diabo na Terra do Sol. Isto está longe de ser uma máxima unicamente brasileira, pelo contrário: indo de Martin Scorsese, adentrando em Godard, passando por Bong Joon-Ho e chegando em Quentin Tarantino; todos exaltam a importância do cineasta e do Cinema Novo para a Sétima Arte, às vezes, mais do que nós mesmos. Após a restauração do longa no Festival de Cannes deste ano, a obra retorna ao seu país de origem, na Apresentação Especial da 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.