Em Robot Dreams, o pesadelo é o descarte das relações

 

Cena de Robot Dreams. Na imagem, o robô e o cachorro estão com os pés na beira da praia. Os dois são cinzas. O robô veste uma boia de braço rosa e o cachorro um short nas cores azul, amarelo e laranja. Ao fundo há areia e diversas barraquinhas de praia.
Meu Amigo Robô foi lançado em 2023 e concorre ao Oscar de Melhor Animação (Foto: Wild Bunch)

Jamily Rigonatto

Agora eu sei que tenho um coração, porque ele está doendo é uma das frases mais populares do universo do audiovisual. Emitida pelo Homem de Lata em O Mágico de Oz, a citação marcou o futuro das produções cinematográficas quando o assunto é abordar a relação dos robôs com o ato de sentir. Certamente, a inspiração recaiu na realização de Robot Dreams, filme lançado em 2023 sob a direção do espanhol Pablo Berger. Nas linhas doces da animação, a quebra de um vínculo se mostra mecânica e lancinante. 

O longa-metragem conta a história de um cachorro que vive em um universo sem humanos, povoado apenas por animais que agem como tais. Cansado de estar sozinho, seu movimento é similar aos da geração da tecnologia: procurar em uma máquina a fuga de realidade. É assim que ele adquire um robô, com o qual logo desenvolve, impressionantemente, uma amizade sincera, que em pouco se desmonta em reviravoltas. 

Cena de Robot Dreams. Na imagem, o cachorro e o robô andam pela neve. Ambos são cinzas e estão de mãos dadas. Ao fundo, há diversos prédios cinzas.
Robot Dreams é classificado como uma comédia, mas nos dilacera em tristeza (Foto: Wild Bunch)

São em cenas delicadas, acompanhadas apenas pela trilha sonora – já que o filme não tem nenhuma fala –, que o enredo, também assinado pelo diretor, nos leva por um caminho leve, cheio de momentos divertidos que imprimem a sensação de que as coisas seguirão até um final feliz. No entanto, é em um desses momentos de acalento e doçura que o cão e o robô se deparam com a dor das rupturas

Na praia, tomados por espírito livre e companheirismo, uma fatalidade acontece e as peças metálicas do melhor amigo de lata são molhadas, impedindo que o cachorro consiga o tirar da areia e tenha que ir embora sem ele. A partir desse momento, os papéis se invertem e quem precisa buscar uma forma de fugir de uma realidade desoladora e vazia é o maquinário, agora abandonado e sem perspectivas. 

O filme se passa na década de 1980, mas cabe perfeitamente para a atualidade (Foto: Wild Bunch)

Os eventos se tornam distintos. Para um, há a tentativa de resgate do amigo, mas também a possibilidade de encontrar socialização, diversão e muito mais em um espaço da vida real. O outro, fica à mercê de algo que sequer sabíamos que um objeto robotizado poderia ter: a imaginação. Nesta, a existência mantém a força em sonhar com a beleza e desejar que a existência não se resuma a espera pelo momento de parar de vez. 

O roteiro se estabelece em uma dualidade e é impossível não comparar o cachorro com os seres humanos. O abandono, mesmo que não intencional, coloca em cheque o quanto as relações podem ser descartáveis, seja com pessoas, máquinas, animais de estimação e o que mais houver. Assim, a humanidade no cão se revela poderosa, o suficiente para que seus sentimentos estejam acima de qualquer coisa.

Toda a similaridade não é feita de acaso. A cada passo, os movimentos parecem se aproximar de uma alegoria à contemporaneidade, juntando a dependência tecnológica e a era dos amores líquidos em uma tacada só. Nessas condições, uma empatia pelo robô se esgueira pelas pontas e fica impossível não sentir um gosto amargo nas reações do cão. Ele poderia fazer mais, mas será que nós faríamos?  

Quanto ao visual, Meu Amigo Robô – como foi traduzido no Brasil – tem traços realmente adoráveis que remetem às animações clássicas dos anos 2000. Moldado no tradicional 2D, o filme tem ilustrações sutis e pouco marcadas, mas extremamente expressivas. É isso que contribui para uma narrativa limpa e clara, fácil de ser entendida sem a presença dos diálogos. 

Porém, como nem tudo são flores, assistir à produção parece nos levar para um ciclo em alguns momentos. É claro que todo o cerne é bem trabalhado, mas não há necessidade de se desenvolver em longas 01h30, que em certo ponto parecem minutos demais para história de menos. Com certa economia de tempo, o resultado seria mais dinâmico e não entregaria o massante de esperar e esperar por um clímax com final feliz que nunca virá.

Robot Dreams é a adaptação audiovisual da graphic novel homônima, assinada por Sara Varon (Foto: Wild Bunch)

Ainda que com ressalvas, é inegável que a produção surpreende e o Oscar 2024 não pensa diferente. O filme concorre na categoria de Melhor Animação ao lado dos gigantes Nimona, Elementos, Homem-Aranha Através do Aranhaverso e O Menino e a Garça. Sua narrativa doce e amarga conquistou os corações dos críticos desde a estreia no 76º Festival de Cinema de Cannes, ocorrido em Maio de 2023.

Além de fazer parte de uma das principais programações de Cinema do mundo, Robot Dreams conquistou o prêmio de Melhor Animação no European Film Awards, uma das nomeações mais importantes do setor europeu. O título ainda foi reconhecido na mesma categoria pelo Prêmio Goya 2024, no qual também foi lembrado como Melhor Roteiro Adaptado.

“Nossos corações estavam tocando no tom que nossas almas cantavam” (Foto: Wild Bunch)

A vida segue, mesmo que não do jeito que esperamos. Essa é a lição deixada por um longa-metragem cheio de emoção, no qual os rompimentos são cortantes, mas não impedem que o tempo passe e a vida siga. Os rumos podem parecer injustos, porém, extremamente embebidos de realidade, o que impede que tenhamos em nós uma verdadeira revolta.

Robot Dreams nos faz pensar. Refletir sobre quem somos e como tratamos as coisas que compõem o nosso redor, talvez realmente as descartemos cedo demais. Ainda assim, comprar a companhia de alguém soa verdadeiramente egoísta e igualmente solitário; não parece possível colocar na balança. Nos sonhos de um robô que sente demais, o que dói é se identificar tanto com o cruel despropositado dos encontros.

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