The Car segue a estrada do precursor, mas dessa vez, o Arctic Monkeys observa a lua de longe

The Car é um novo capítulo para a banda Arctic Monkeys, que mostra um lado introspectivo e reflexivo do grupo (Foto: Domino Records)

Leandro Santhiago

Desde seu álbum de estreia até o clássico indie AM, de 2013, o Arctic Monkeys havia se estabelecido como uma força gigantesca do rock mainstream, lotando estádios internacionalmente e lançando hits atrás de hits, como é o caso de Fluorescent Adolescent e R U Mine?. O quarteto de Sheffield, até então, cultivou a fama de trazer ao público um som mais enérgico e potente, liderado pela instrumentação rock clássica com a tríade de guitarras, baixo e bateria. No entanto, um piano dado de presente ao vocalista Alex Turner fez com que o grupo expandisse seu vocabulário musical e entrasse em uma nova etapa sonora.

A energia acumulada até o momento foi o combustível para a viagem até o espaço na qual vemos Tranquility Base Hotel & Casino, um passeio lunar regado pela sonoridade dispersa – ainda que coesa – emprestada da psicodelia das décadas de 1960 e 1970. Em The Car, o sétimo disco da banda, a poeira levantada pela decolagem do som espacial de seu precursor assentou. Nesse último lançamento, o grupo traz canções mais reclinadas e relaxadas, quase como um descanso depois da viagem proporcionada pelo sexto disco, ainda que com um sabor melancólico e nostálgico de fundo.

There’d Better Be A Mirrorball marca nova era da banda e estabelece, como faixa inicial do disco, o clima leve e saudoso da obra (Foto: Domino Records)

The Car foi lançado em 21 de Outubro de 2022 e precedido de três singles que ilustraram a sonoridade do projeto que estava por vir. There’d Better Be A Mirrorball, um dos destaques da obra, foi o primeiro lançamento da banda desde o álbum ao vivo Live at the Royal Albert Hall em 2020, e conta com um videoclipe dirigido pelo próprio Alex Turner. Nessa faixa, fortes influências do jazz e pop sinfônico trazem um certo contraste ao rock espacial explorado em Tranquility Base e, dessa vez, a letra mostra um Turner mais pessoal e introspectivo, abordando temas de um relacionamento que está chegando ao fim e de uma dificuldade em lidar com as próprias emoções.

Para o projeto, o grupo conta com seu produtor de longa data James Ford, que proporcionou arranjos sofisticados e luxuosos reminiscentes da década de 1960, mas não banais o suficiente para soarem datados. Aqui, é apresentada uma sonoridade mais palpável e definida — no entanto, ampla —, sem um uso intenso de efeitos e distorções, com a orquestra tendo um papel bem maior em relação aos trabalhos anteriores da banda. Violões dedilhados (presentes na faixa-título, assim como em Mr Schwartz), pianos elétricos e a bateria com um timbre mais seco também compõem a paleta geral do disco, junto com uma produção saborosa e firme.

A sonoridade se mantém ao decorrer do álbum, com exceção da espreitadora Sculptures Of Anything Goes, outra pérola, que foge completamente do arsenal sonoro presente no resto das canções, trazendo uma nova face não só para o disco, como também para o grupo em geral. A faixa conta com uma imersão total em um ambiente eletrônico e semi-industrial, repleto de sintetizadores e quase isento da habitual guitarra. Aqui é também presente uma letra que expressa os sentimentos de Turner em relação à reação divisiva do público às mudanças pelas quais a banda passou ao longo dos anos, tudo isso em palavras direcionadas ao próprio ouvinte. Essa estética inédita reforça a audácia do grupo de se reinventar, ao mesmo tempo em que mantém uma identidade própria, além de se mostrar ciente das críticas e do quanto essa recepção mal importa (e mal deve importar) para a satisfação de um artista com a sua obra.

Em The Car, a banda traça seu próprio caminho, sem comprometer a própria integridade artística (Foto: Zackery Michael)

É evidente que, nesse disco, o Arctic Monkeys propõe novamente um retorno às décadas de 1960 e 1970, assim como fizeram em Tranquility Base quatro anos antes. Enquanto que no álbum anterior eles prezaram pela adoção de um som psicodélico e reverberante, em The Car a banda inglesa direcionou seu foco para uma abordagem predominantemente mais contida em termos melódicos e dinâmicos nas canções, vestindo fortes influências do soul e do funk, por exemplo. No entanto, por mais que o grupo incorpore essa estética de corpo e alma, não traz muitas novidades em relação ao que já foi feito dentro do gênero: os arranjos se limitam a instrumentos e efeitos setentistas, além das músicas seguirem uma estrutura tradicional do estilo que a banda emula nesse projeto.

Ainda assim, essa nova etapa sonora do quarteto funciona nos dias de hoje e mostra maturidade dentro da evolução ao longo dos anos. Em comparação a discos mais antigos do Arctic Monkeys, The Car apresenta maior sofisticação e sensibilidade nas composições e no ritmo da obra em si, deixando claro o quanto cada membro aperfeiçoou a musicalidade em seus instrumentos no decorrer da discografia da banda, com destaque à performance vocal e lírica de Turner. Nesse último álbum, o vocalista preza — assim como em trabalhos anteriores — pelo forte uso de metáforas e referências específicas à cultura pop. Porém, aqui há uma ênfase maior em observações a respeito de seu próprio grupo e à sua trajetória em um tom reflexivo, casando com a estética instrumental das canções.

Além da voz de Turner, quem também brilha em The Car é a bateria de Matt Helders (Foto: Jo Hale/Redferns)

É comum para o Arctic Monkeys que suas músicas tomem uma nova forma e vitalidade quando tocadas ao vivo, no contexto de uma performance geralmente de grande porte, em que há uma troca efervescente de energia entre os músicos e o público. Por mais que isso seja o usual para as mais frenéticas do catálogo da banda — como a trovejante Brianstorm, tocada normalmente no início das apresentações —, esse fenômeno também se aplica à nova era do grupo. É o caso de Body Paint, mais um destaque de The Car, que quando performada em shows recentes, decola até as alturas e ganha mais vida (e duração), mostrando que a banda ainda mantém o ímpeto e ânimo que os fãs sempre puderam presenciar quando fossem vê-los ao vivo.

Para quem acompanha o trabalho do grupo há muitos anos e está acostumado ao som mais enérgico e explosivo de álbuns como Favourite Worst Nightmare, o novo disco pode parecer entediante e sem inspiração de início. Na verdade, a beleza aqui não está necessariamente em refrões grudentos ou momentos dignos de pirotecnia exorbitante nos shows (ainda que ambos existam em doses menores nesse projeto), mas sim em uma expressão sincera e verdadeira com a própria identidade artística dos músicos, mesmo que isso signifique se distanciar daquilo que os levou até onde estão hoje. Desse jeito, The Car é um álbum que retribui tempo investido nele, além de representar amadurecimento e uma etapa importante na estrada que a banda percorre há mais de 20 anos.

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