O Mapeador de Ausências e a memória como preenchimento do vazio

Arte da capa do livro O Mapeador de Ausências. Na imagem, há um fundo vermelho, com a capa do livro ao centro da imagem, possuindo uma sombra de cor amarela. Na capa, há o desenho de uma mulher negra com diversos tecidos coloridos. Esses tecidos são de cor vermelha, azul, amarela, branca, rosa e verde. Ao centro, está escrito Mia Couto em fonte de cor branca, com a grafia do próprio autor, e abaixo escrito O Mapeador de ausências, também em fonte de cor branca. Acima do seu nome está o logo da editora Companhia das Letras. Na parte superior esquerda da imagem, há a ilustração de um olho com a íris de cor azul. Na parte inferior direita, está o símbolo do Time de Leitores da editora Companhia das Letras, composto por um círculo de cor azul escrito Grupo companhia das letras em fonte de cor branca, envolto de um círculo branco com os escritos Time de leitores 2021, em fonte de cor azul.
O Mapeador de Ausências, 11º romance de Mia Couto, traz o autor revisitando o próprio passado em meio aos paradoxos da colonização de Moçambique (Foto: Companhia das Letras/Arte: Jho Brunhara)

Bruno Andrade

“Nestes dias, caminhei pelos lugares da minha infância como quem passeia num pântano: pisando o chão com as pontas dos pés. Um passo em falso e corria o risco de me afundar em escuros abismos. Eis a minha doença: não me restam lembranças, tenho apenas sonhos. Sou um inventor de esquecimentos.”

Na icônica cena de Um bonde chamado Desejo (1947), escrita pelo dramaturgo norte-americano Tennessee Williams, a personagem Blanche DuBois entoa: “Eu não quero realidade. Eu quero magia”. Parece que essa afirmação espelha a carreira literária de Mia Couto, cuja diferença consiste em enxergar na existência toda a magia necessária para encarar a vida. Segundo o próprio escritor, “não há somente uma realidade, mas várias”. Como fruto da parceria com a editora Companhia das Letras, o Persona teve acesso a seu novo romance, O Mapeador de Ausências, participando de um evento exclusivo com o autor. A obra, publicada no início de setembro de 2021, traz como protagonista Diogo Santiago, poeta e professor universitário na cidade de Maputo, que parte em uma viagem física e metafísica à Beira, sua cidade natal. 

Em uma mistura de reportagem, romance e memórias, o livro carrega a típica voz poética do autor, apresentando a realidade como algo sempre questionável, na qual amigos tornam-se inimigos em uma guerra sem vencedores. Segundo Mia Couto, o livro partiu de uma ideia “muito sólida de regresso”, e aborda ao longo das páginas o paradoxo da colonização, questões de homofobia e problemas de infância e identidade. No primeiro capítulo, estamos situados em “Beira, 6 de março de 2019”. A cidade moçambicana, local em que Couto nasceu e viveu até seus dezoito anos, estava na iminência de um desastre. No dia 15 de março de 2019, o Ciclone Idai passou pela região e destruiu 90% da cidade, neste que ficou marcado como o maior desastre natural de Moçambique, deixando centenas de mortos e feridos. Através desse marco temporal, Diogo Santiago está, sem saber, correndo contra o tempo para reconstruir a história do seu passado.

“Quando me afasto, sinto os seus passos perseguindo-me e, já perto do elevador, a sua voz ecoa no corredor.

— Chama-se Idai.

— Quem? — pergunto.

— O ciclone — responde o porteiro. — Dizem que chega à cidade daqui a pouco mais de uma semana.

O homem anuncia o desastre com inesperado entusiasmo. Entendo a sua excitação. Aquele anônimo porteiro era, naquele momento, o mensageiro que Deus escolhera para anunciar o apocalipse.”

O livro mescla passagens em primeira pessoa de Diogo Santiago com excertos de diários da juventude e papéis da repressão política do país. Esses documentos servem para mapear a história de seus antepassados, principalmente de seu pai. Aos que já conhecem os trabalhos do escritor moçambicano, essa característica é muito bem explorada em seu romance de 1992, Terra Sonâmbula, no qual lemos de forma intercalada a travessia do velho Tuahir e do jovem Muidinga — em uma Moçambique despedaçada depois da guerra, e por esse motivo uma ‘terra sonâmbula’ — com as leituras dos cadernos de Kindzu. Novamente, percebemos a visão de Couto sobre as diversas realidades expostas de forma clara em sua própria obra, considerando que esse jogo literário pretende mostrar as diferentes verdades possíveis sobre o mesmo fato.

Diogo Santiago decide retornar à Beira depois de muitos anos, a conselho de seu médico, que recomenda a viagem para “te libertares dos fantasmas da infância”. O personagem vem sofrendo com depressão e insônia, e, segundo o diagnóstico, talvez a viagem pudesse acalmar os motivos que levavam à tristeza e inquietação. Dessa forma, o regresso à cidade natal é também o regresso à infância e as marcas de uma ausência permanente — do pai e dos amigos mortos na ditadura —, cujas lembranças foram dominadas pelo colonialismo, visto que, na época de juventude de Santiago, Moçambique ainda era colônia de Portugal. Talvez uma das obras mais metalinguísticas de Mia Couto, O Mapeador de Ausências brinca com o leitor desde o início, deixando o escritor facilmente reconhecível nas falas do personagem, como no trecho em que recebe a documentação sobre seu avô, e sentencia: “esses papéis vão fazer parte do meu próximo livro”

Fotografia do escritor moçambicano Mia Couto. Ele é um homem branco, veste camiseta de cor cinza, possui cabelos e barba grisalha, olhos azuis e utiliza um óculos com lentes transparentes e hastes de cor preta. Ele está olhando diretamente para a câmera, com o braço direito apoiado em uma estante de cor marrom, repleta de livros enfileirados.
Mia Couto é biólogo de formação, mas iniciou sua carreira oficialmente como jornalista; seu primeiro livro, uma coleção de poemas intitulada Raiz de Orvalho, foi publicado em 1983 (Foto: Rafael Arbex)

Em decorrência do desastre natural, que destruiu a cidade natal de Couto, a ideia de que a infância poderia ser perdida torna-se presente, e é retratada na obra. Como uma rápida comparação, se pensarmos em A Peste, de Albert Camus, enxergamos a epidemia de cólera como coadjuvante, ou, melhor, como um pano de fundo para a história. Contudo, o romance do moçambicano aponta a catástrofe como uma espécie de personagem, auxiliando no desenrolar da trama — e isso não ocorre por acaso, visto que o autor começou a escrever o livro em 2018, sob a perspectiva da memória e do regresso, e então teve a notícia do Ciclone, que atravessou a obra já iniciada. Tanto A Peste quanto O Mapeador de Ausências mantém a alegoria presente, pois ‘a peste’ ditada por Camus é uma referência à Europa sitiada por nazistas, enquanto a obra do moçambicano trata-se da busca pelo passado, através da procura de algo fragmentado e possivelmente inexistente, em um país que também estava sob domínio de um regime ditatorial, sendo essa, justamente, a herança colonial que o fragmentou.

Entretanto, a figura central do romance é o pai de Diogo (ou o pai de Couto), Adriano Santiago, um jornalista e também poeta, falecido há pouco tempo. Ele se torna inimigo do Estado quando reporta um assassinato em massa cometido pelo regime, que ficou conhecido como Massacre de Inhaminga. A presença dos ancestrais de Adriano servem como elementos para entender esse personagem misterioso, auxiliando no quebra-cabeças que é o seu passado. Com a própria vida atravessada por repressões políticas — o pai de Mia Couto foi detido pela PIDE, polícia política da ditadura portuguesa —, o escritor constrói por meio de simbologias e metáforas fantasiosas as pegadas desse indivíduo silencioso. Como qualquer reconstrução que parta da memória, essa é uma guerra perdida desde o início, mas nem por isso menos poética. 

Fotografia em preto e branco de Fernando Couto, Mário Machungo e Joaquim Chiassano. À esquerda, há a fotografia de Fernando Couto olhando para o seu lado esquerdo. Ele é um homem branco, possui cabelos pretos penteados para trás. Ele veste camisa branca e utiliza óculos com lentes transparentes e hastes de cor preta. À direita, há uma outra foto em que Mário Machungo está sentado, com Joaquim Chissano sentado à sua esquerda, que está conversando com Fernando Couto, também sentado à esquerda de Joaquim. Mário é um homem negro, possui cabelos pretos e veste camisa xadrez branca e cinza e um casaco de cor cinza. Joaquim é também um homem negro, possui cabelos pretos e um cavanhaque de cor preta. Ele veste uma camisa branca, com listras cinzas, e uma gravata de cor preta com quadrados de cor cinza. Nessa foto, Fernando Couto está com a mesma roupa que a anterior, porém virado à direita e conversando com Joaquim Chissano.
Fernando Couto, o pai de Mia, foi uma personalidade influente em Moçambique, atuando como poeta e jornalista; na foto, ele entrevista Mário Machungo e Joaquim Chissano (Foto: Fundação Fernando Leite Couto)

Dividido por capítulos intercalados, O Mapeador de Ausências possui pelo menos cinco camadas. A primeira refere-se a Diogo Santiago em 2019, caminhando por uma Moçambique que ainda tentar consolidar seus laços como nação; a segunda são os documentos sobre seu pai, que datam de 1973 e auxiliam na composição do imaginário sobre o passado violento do país, marcado pela ditadura militar e a Guerra Civil; a terceira retrata o Ciclone Idai e os seus efeitos imediatos no imaginário social, visto por uma parcela da população como um castigo divino. 

A quarta história é a da personagem Liana Campos, coadjuvante nessa trama e “neta de um fascista”, sendo o elo que conecta a documentação dos ancestrais de Santiago com o próprio. A personagem também está tentando resgatar um passado, cujo objetivo é encontrar sua mãe. Por fim, a quinta camada é a da autoficção, pois, de forma ficcionalizada (como descrito na nota do autor), Couto reconstrói o seu próprio passado, transmitindo nas páginas a falta de seu pai — o nome do livro é uma homenagem a esse “personagem ausente” —, e os traços fantásticos acompanham toda a história, trazendo referências místicas às memórias, às vontades divinas e ao mar.

Um dos personagens mais belos construídos na obra é Sandro Santiago, apresentado inicialmente como o primo de Diogo. Ele é um combatente militar e, por ser homossexual, recebe diversas ofensas e violências durante seu período no exército, demonstrando sua enorme complexidade quando tenta entender os motivos da guerra. Para ele, os soldados são “apenas o gatilho vivo de mandadores sem rosto”. Sandro possui um passado ofuscado, e suas origens são também um mistério até a metade do livro. Mas, o que Diogo Santiago desconfia, e acaba por receber a confirmação, é que ambos eram irmãos de mães diferentes. “Sandro era do meu sangue. E como não existem parentescos por metade, ele era meu irmão, o meu único irmão.”

Capa do livro O Mapeador de Ausências. Na imagem, Há o desenho de uma mulher negra com diversos tecidos coloridos. Esses tecidos são de cor vermelha, azul, amarela, branca, rosa e verde. Ao centro, está escrito Mia Couto em fonte de cor branca, com a grafia do próprio autor, e abaixo escrito O Mapeador de ausências, também em fonte de cor branca. Acima do seu nome está o logo da editora Companhia das Letras.
A arte da capa faz alusão às diversas camadas no enredo do livro (Foto: Alceu Chiesorin Nunes/Companhia das Letras)

Virginia Santiago, mãe de Diogo e esposa de Adriano, é também memorável. Ela demonstra a força e a inteligência, lidando com maestria com os devaneios do marido, da mesma forma que consegue driblar os questionamentos dos agentes da PIDE. Todavia, através dos trechos do diário de Diogo, vemos a maneira como Virginia foi sendo deixada de lado, e, lentamente, entregue à solidão. Mas, como é recorrente na obra de Mia Couto, nada é de fato assertivo, apenas sugerido para que nossa imaginação complete o contexto. Apesar de O Mapeador de Ausências apresentar o protagonista como um ser empático, colocando-se, desde a infância, no lugar dos outros, percebemos sua dificuldade em enxergar através dos olhos do pai, justamente por suas posições machistas e homofóbicas. 

“Lembras-te de o teu pai proibir que tu e o Sandro dormissem no mesmo quarto?

— Não metas o Diogo nesse assunto — apressou-se a ordenar o meu pai.

— Deixa falar, Adriano — proclamou a mãe. — Esse teu pai, que se diz todo moderno, nunca aceitou que o nosso Sandro fosse diferente.

— Apenas disse que o rapaz era doente — interrompeu o meu pai.

— Doente és tu, Adriano Santiago. E eu estou cansada de ser a tua cura.”

Algo extremamente poderoso em O Mapeador de Ausências é a enorme facilidade com que o moçambicano constrói diálogos fidedignos e convincentes. Particularmente, um dos problemas em se ler obras literárias é encontrar diálogos rasos e entreguistas, que dizem exatamente aquilo que o autor precisa para prosseguir a história, e não o que caberia na boca do personagem. Como um dos herdeiros mais ricos da obra de João Guimarães Rosa, Mia Couto estabelece diálogos poéticos e ainda assim verdadeiros, que mantêm a oralidade como o ponto alto de suas obras. Segundo o próprio escritor, seus trabalhos são iniciados com a construção dos personagens, e somente depois pensa-se na construção da trama.

Na epígrafe do livro, lemos um haikai de Jorge Luis Borges, no qual o autor escreve: “É um império/aquela luz que se apaga/ou é um vagalume?”. Essas três sentenças elucidam o percurso de Diogo Santiago, em que qualquer vestígio do passado ganha proporções gigantescas em decorrência do tempo. A magia dos textos literários de Couto é compreender a realidade como algo fantástico, passível de paradoxos e caminhos conflitantes. 

Fotografia em preto e branco de Mia Couto no ano de 1974. Na foto, Couto está de braços cruzados conversando com outro homem, cercado por outros dois homens brancos e outros dois homens negros. Couto é um homem branco e possui cabelos lisos à altura do ombro. Ele veste uma jaqueta de cor cinza e está utilizando um óculos com lentes transparentes e hastes de cor preta. O homem à sua frente é branco, possui cabelos ralos de cor preta e barba de cor preta. Ele veste uma calça branca e uma camisa com bolsos frontais, de cor cinza.
Como jornalista, Mia Couto (à esquerda) cobriu, em 1974, a viagem de Samora Machel, líder da revolução moçambicana e ex-presidente de Moçambique [Foto: Jornal Expresso]
Mas aqui, agora, vamos supor que chegamos ao final. Que O Mapeador de Ausências tenha sido resenhado, que todos os elementos pertinentes foram abordados e que você compreendeu os pontos altos deste ambicioso projeto. Como as várias camadas do livro, esse texto também possui diversas interpretações, bem como as diversas realidades possíveis de leitura. Em algumas você leu e gostou, em outras você sequer chegou ao final dele. O importante, de qualquer modo, é saber que o texto estará aqui, e que, principalmente, muitos não chegarão até ele. Fomos construídos através de faltas permanentes, e, ao fechar o livro, só podemos ter a certeza de que todas as ausências se tornam presenças.

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