Amor de Mãe e a ruptura da teledramaturgia brasileira

Cena da novela Amor de Mãe. Nela, vemos a família de dona Lurdes reunida no sofá da casa, sorrindo para a foto. À esquerda e atrás de todos, está Ryan, de cabelo descolorido e regata cinza. Abaixo dele, da esquerda à direita, vemos Camila, mulher negra vestindo roupa vermelha; Danilo, homem branco, de cabelos castanhos e camiseta cinza. Dona Lurdes está ao centro, sorrindo, de óculos com acessório que impede de cair, e cabelos pretos. Ao lado dela, estão Érica e Magno.
A produção de Manuela Dias chegou ao fim, mas deixa marcas eternas na televisão (Foto: Globo)

Vitória Silva

O meio cultural está em constante mutação. Com o passar dos anos, fomos alterando e desenvolvendo as nossas formas de consumir conteúdo, seja pelo meio impresso, radiofônico ou televisivo. Assim como os meios mudam, o seu público também muda. Temas que no século passado eram tratados com normalidade não são mais cabíveis nos dias atuais. Dessa forma, os produtos culturais foram recebendo novas vestimentas. Hoje, já sabemos que nem toda narrativa precisa ter uma mocinha que vai atrás do seu par romântico, assim como estereotipar personagens homossexuais não é (e nunca deveria ter sido) motivo de piada.

Essa revolução iria se estender, é claro, para o mundo das novelas. Uma das principais formas de entretenimento do público brasileiro, grande adepto do sofá. Com a ascensão dos streamings e a concorrência cada vez maior de seriados, a teledramaturgia precisou se modificar. Assistir histórias com desfechos sem pé nem cabeça já havia se tornado algo rotineiro, “coisa de novela”, como se o gênero tivesse que ser sinônimo de algo mal feito. Não dava para sustentar um público cada vez mais em busca de abordagens sérias e profundas com os mesmos temas batidos de sempre. 

E o meio novelesco sentiu essa necessidade de mudança. Temáticas relevantes passaram a ser cada vez mais trabalhadas no horário nobre, e algumas até provocaram discussões que se elevaram para o ambiente social, como o machismo abordado em O Outro Lado do Paraíso e a questão da transição de gênero em A Força do Querer. Recentemente, a reprise de Fina Estampa na Globo até causou certo espanto e repulsa, por uma abordagem já retrógrada e que se pautava apenas em um arco de vingança de uma personagem histérica e sem motivações. 

Foto de divulgação da novela Amor de Mãe. Nela, vemos as três protagonistas da novela paradas na rua, olhando com cara séria para a câmera. À esquerda, vemos Thelma, interpretada por Adriana Esteves. Ela é branca, de pele clara e cabelos escuros na altura dos ombros, veste camisa xadrez vermelha e calça jeans. Ao meio está Lourdes, papel de Regina Casé, mulher nordestina, de pele clara, cabelos pretos e óculos de grau com armação marrom claro. Ela usa um vestido amarelo e leva uma bolsa preta a tiracolo. À direita está Vitória, vivida por Tais Araújo, uma mulher negra, de cabelo preso num coque e terninho bege, usando camiseta preta de gola alta. Está de dia e podemos ver carros desfocados estacionados ao fundo.
Amor de Mãe marcou o nascimento dos estúdios MG4, o maior complexo de produção de conteúdo da América Latina (Foto: Globo)

Um dos lançamentos mais recentes da emissora veio para romper de vez com padrões novelescos até então impostos. Escrita e criada por Manuela Dias, Amor de Mãe já nasceu com altas expectativas. A autora foi a mesma que deu vida para a minissérie Ligações Perigosas e a grandiosa Justiça, que foi indicada ao Emmy Internacional. Manuela fez escola em como trabalhar narrativas realistas e com críticas sociais como pano de fundo, conseguindo entrelaça-las da maneira mais natural possível. Seu novo desafio era fazer o mesmo em um dos produtos principais da televisão: a novela das nove. 

Para isso, Dias decidiu contar sua história a partir de uma das figuras centrais da vida de qualquer brasileiro. Amor de Mãe envolve a narrativa de três matriarcas, de diferentes personalidades e classes sociais: Lurdes (Regina Casé), Vitória (Tais Araújo) e Thelma (Adriana Esteves). A carismática dona Lurdes é o grande laço que conecta todas elas. Mãe de cinco filhos e natural da cidade fictícia de Malaquitas, do Rio Grande do Norte, a empregada doméstica tem como motivação principal encontrar o filho do meio, Domênico, que foi vendido por seu ex-marido quando ainda era criança.

Cena da novela Amor de Mãe. Nela, vemos Vitória e Paulo dentro de um carro. Ela é vivida por Tais Araújo, uma mulher negra que está no banco do passageiro, usando roupa amarela e tem o cabelo solto. Ele é vivido por Fabrício Boliveira, está no banco do motorista, desfocado, tem a pele negra, barba escura e usa óculos com armação transparente.
A primeira fase da novela contou com muitas participações especiais, entre elas, Fabrício Boliveira, Vera Holtz e Júlio Andrade (Foto: Globo)

A novela se inicia com ela contando sua história para a advogada Vitória Amorim, para quem iria trabalhar como babá logo depois. Ao contrário de Lurdes, a personagem de Tais Araújo ainda tinha o anseio de se tornar mãe, mas, além das dificuldades em engravidar, também havia perdido o seu primeiro bebê. Então, ela adota o menino Tiago (Pedro Guilherme Rodrigues), que chega para mudar suas percepções sobre a vida e seu olhar duro e frio sobre algumas questões.

Nesse início, Lurdes também conhece Thelma, que, logo no primeiro encontro, descobre que tem um aneurisma cerebral. Dona de um restaurante português no Bairro do Passeio, ela é mãe do jovem Danilo (Chay Suede). E nutre uma paixão completamente obsessiva e manipuladora em relação ao filho, que evidencia um forte sentimento de superproteção, especialmente pelo fato dele ter sobrevivido a um incêndio em sua casa quando ainda era criança, que tirou a vida de seu marido.

Com os três arcos principais construídos, as narrativas passam a se encontrar nos mais diversos aspectos. A questão ambiental é uma das temáticas centrais de Amor de Mãe, com as constantes tentativas de grupos ativistas em derrubarem Álvaro da Nóbrega (Irandhir Santos), dono da empresa de plástico PWA. Colocar um empresário corrupto e autor de diversos crimes ambientais como vilão principal é transpor para a tela a realidade que observamos todos os dias no noticiário. Entre suas ações ilícitas, o magnata é responsável por despejar dejetos de sua indústria na Baía de Guanabara. E tem como seu maior rival o ambientalista Davi Moretti (Vladimir Brichta), que mais tarde se relacionaria com Vitória. 

Cena da novela Amor de Mãe. Nela, vemos Magno, Lurdes, Sandro e Katia. Os personagens estão na prisão, em uma visita para Sandro. Da esquerda para a direita: Magno é vivido por Juliano Cazarré, um homem branco e forte, usando camisa preta. Lurdes, papel de Regina Casé, é uma mulher nordestina, de pele clara, cabelos pretos e óculos de grau com armação marrom claro. Ela usa um vestido amarelo e abraça Sandro, papel de Humberto Carrão, um homem branco, jovem, de cabelos rentes à cabeça e que veste uma camiseta clara. Katia é a personagem interpretada por Vera Holtz, uma mulher branca, de cabelos grisalhos e roupa preta. Ela é a única sentada na cena e segura a mão de Sandro.
Um easter egg interessante da novela é que o personagem Sandro, interpretado por Humberto Carrão, vez ou outra aparecia com a camiseta do Divino F. C., clube de futebol da novela Avenida Brasil que tinha o personagem de Murilo Benício como jogador (Foto: Globo)

Em meio a essa sinuca de bico, a advogada passa a enfrentar um dilema ético e moral, e a maternidade se mostra como a grande potência transformadora em sua vida. Se antes ela pautava suas atitudes apenas em formas de se favorecer e crescer profissionalmente, agora ela busca aquilo que possa servir de bom exemplo e motivo de orgulho para seus filhos. Com isso, decide romper o contrato com Álvaro, mesmo que custe perder todos os luxos e regalias da vida que costumava ter. Habituados com histórias de mulheres pobres que surpreendentemente conseguem enriquecer, passamos a assistir uma narrativa oposta. 

A precariedade do sistema educacional brasileiro também é uma das temáticas sociais incorporadas na trama. A partir das vivências de Camila (Jéssica Ellen), filha caçula de Lurdes, como professora de História do colégio público Luis Gama, são tratadas questões como a falta de investimento e apoio governamental. A personagem ainda protagoniza discursos com reflexões essenciais em suas aulas, e inicia a ocupação do colégio com seus alunos, um símbolo do movimento estudantil.

Cena da novela Amor de Mãe. Nela, vemos Lurdes e Camila na formatura da jovem. Camila, uma jovem negra, está de beca azul marinho e abraça sua mãe Lurdes, que segura o canudo de formatura da filha com felicidade. Ao redor delas, vemos uma porção de formandos com sorrisos nos rostos.
As temáticas tratadas em Amor de Mãe se cruzam com a realidade em diversos momentos; questões raciais são trazidas à tona pelas personagens de Jéssica Ellen e Tais Araújo (Foto: Globo)

Assim como toda novela costuma se adaptar aos acontecimentos do cotidiano, Amor de Mãe teve que se moldar para um cenário inesperado. Com a pandemia de covid-19, as gravações foram interrompidas, e retornaram apenas no segundo semestre de 2020. Diante desse novo contexto, Manuela Dias repensou o roteiro da segunda fase de sua produção, trazendo a crise sanitária para o universo de seus personagens, algo já adotado por outras produções da Globo. Além de ser importante tratar sobre o assunto no meio midiático, foi uma ótima maneira de adotar protocolos de distanciamento nas cenas de forma natural.

Aproveitando o seu núcleo de profissionais da saúde, a obra ainda conseguiu retratar a rotina difícil daqueles que trabalham dentro dos hospitais. No entanto, com um vírus que tem um comportamento incerto tanto para a ciência quanto para a sociedade, a novela não foi isenta de erros. Desde a adoção de protocolos incorretos, até beijos em acrílico e o desuso de máscaras em momentos oportunos. Ainda é uma realidade arriscada de ser retratada rigidamente na ficção, mas talvez a falta de alguns cuidados também tenha sido um bom exemplo para demonstrar o descaso da população brasileira diante desse cenário tão agravante.

Cena da novela Amor de Mãe. Nela, vemos Érica, papel de Nanda Costa, lavando máscaras. Ela está no fundo da imagem, enquanto em primeiro planos vemos 3 máscaras desfocadas, secando num varal. Érica é branca, tem cabelos curtos acima dos ombros e veste um camisetão branco com estampa, além de usar uma máscara branca. Ao lado dela, vemos uma bacia vermelha.
Manuela ainda conseguiu incluir alguns novos hábitos criados pela pandemia, como a cultura ascendente das lives e chamadas de vídeo; é impossível não se identificar com dona Lurdes reclamando enquanto higieniza as compras do mercado (Foto: Globo)

Em meio a todo esse contexto pandêmico, a segunda fase da trama deu continuidade para a narrativa de Lurdes em busca de Domênico, que descobre a verdadeira identidade do menino e passa a, involuntariamente, ter Thelma como sua principal inimiga. A obsessão em fazer de tudo para não perder seu filho atinge níveis cada vez mais doentios e criminosos, com a entrega de cenas que só Adriana Esteves seria capaz de realizar. Em conjunto, Danilo volta a questionar a identidade de sua mãe biológica, indicando para um caminho que mais tarde vai se cruzar. 

Nesse desenrolar, os demais núcleos da novela pareceram apenas agir para sustentar a narrativa principal. Enquanto alguns ficaram patinando sob a mesma história, outros personagens tiveram destinos previsíveis e de fácil solução. Com um arco já quase resolvido na primeira fase, Vitória se envolve em tramas que não vem a acrescentar nada diretamente, como o retorno inesperado de sua mãe, interpretada pela atriz Eliane Giardini. Por outro lado, Penha (Clarissa Pinheiro) e Leila (Arieta Côrrea), que no início eram figuras pouco significativas, têm a melhor evolução como personagens, além de ganharem um arco de redenção essencial ao encerramento da trama.

Cena da novela Amor de Mãe. Nela vemos a personagem Jane, interpreta por Isabel Teixeira. Ela é uma mulher branca de cabelos cacheados e grisalhos, e olhos claros. Jane usa óculos de grau e veste uma blusa de manga comprida com listras verdes, azuis, brancas e amarelas. Ela está com a mão esquerda segurando o lado esquerdo do óculos.
Um ponto alto da produção foi trazer rostos incomuns para a telinha, além das brilhantes Arieta e Clarissa, conhecemos Isabel Teixeira, que interpretou Jane, em seu papel de estreia no mundo das novelas, apesar de já acumular anos de carreira nos palcos (Foto: Globo)

A reta final de Amor de Mãe ainda contou com uma sucessão de acontecimentos trágicos, e bem difíceis de serem digeridos em meio a triste realidade que nos assola. Talvez a brusca redução de capítulos tenha condensado todas as catástrofes de uma vez só, e o surgimento de um equilíbrio foi imprescindível. Assim, emergiram alívios cômicos como a princesa unicórnio, protagonizada por Durval – o que com certeza não é uma reclamação, pois Enrique Díaz é genial em tudo que se propõe -, e a investida cada vez maior na construção de pares românticos, um clichê do qual não foi possível se isentar.

Além da troca frequente de casais, outros acabaram surgindo inesperadamente, e em muitos momentos se tornaram a única motivação dos personagens. Érica (Nanda Costa) acaba se apaixonando por Davi, acompanhando a recuperação do mesmo após sofrer um atentado a mando de Álvaro. No mesmo passo que Lídia (Malu Galli) e Magno (Juliano Cazarré) se encontram e se unem para conseguirem curar a doença da filha Brenda (Clara Galinari). Enquanto Ryan (Thiago Martins) reata com a tenista Marina (Erika Januza), e protagonizam um enredo raso e banal sobre a cultura do cancelamento.  

Cena da novela Amor de Mãe. Nela vemos os personagens Lurdes, interpretada por Regina Casé, e Danilo, interpretado por Chay Suede, se abraçando em frente a um matagal na estrada. Lurdes é uma mulher branca, de cabelos escuros e compridos; ela veste uma blusa marrom de mangas compridas e usa óculos de grau. Danilo é um homem branco, de cabelos castanhos claros e cacheados; ele veste uma camiseta branca.
O encontro entre mãe e filho foi a última cena gravada da novela, e Regina Casé e Chay Suede ficaram dias sem se ver para conseguirem entregar toda a tensão necessária  (Foto: Globo)

O encontro mais aguardado da televisão nos últimos tempos demorou, demorou muito, mas finalmente aconteceu. Após sucessivas, e até arrastadas, tentativas de fugir da prisão criada por Thelma, Lurdes conseguiu encontrar seu filho Domênico. Uma cena que não precisa ser poupada de elogios, não somente pela entrega da atuação de Regina Casé e Chay Suede, mas por todo simbolismo que ela carrega. É o marco e representatividade da força materna. Uma verdadeira homenagem a todas as mães.

E se por um lado comemoramos a morte do cruel Álvaro da Nóbrega, encerrando de vez seu duelo com Raul (Murilo Benício), o fim da antagonista Thelma foi um tanto reflexivo. Mesmo com todas as atrocidades cometidas pela personagem, é questionável pensar que sua única motivação sempre foi o bem e o amor de seu filho, por mais excessiva que fosse. Após ter o aneurisma estourado, ela consegue encerrar sua trajetória com aquilo que se dedicou a vida inteira. Morreu sendo chamada de mãe.

Assim, o laço criado pelas três protagonistas se finaliza de fato, e consolida os diversos papéis maternos explorados ao longo dos 125 capítulos de Amor de Mãe. Lurdes finalmente tem sua família completa, após anos de luta, com seus cinco filhos reunidos. Vitória se vê na posição de matriarca e profissional que sempre almejou, ao lado do seu marido Raul e seus três filhos. Sua irmã, Natália (Clarissa Kiste), deixa de ser mãe solo ao reatar seu casamento com Durval, enquanto, no mesmo páreo, Miranda (Débora Lamm) inicia um segundo relacionamento, após o divórcio com Matias (Milhem Cortaz). Por fim, Betina (Isis Valverde) está prestes a iniciar a vida materna ao lado de Sandro. 

Cena da novela Amor de Mãe. Na imagem, as personagens Lurdes, Thelma e Vitória estão em uma sala do hospital. Lurdes, interpretada por Regina Casé, está ao lado esquerdo; ela é uma mulher branca, de cabelos compridos escuros, e veste um vestido florido e usa uma bolsa. Ao centro, está Thelma, interpretada por Adriana Esteves, internada em uma cama de hospital. Ela é uma mulher branca, de cabelos castanhos e está com avental de hospital. Ao lado direito, está Vitória, interpretada por Tais Araújo. Ela é uma mulher negra, com cabelos presos em um coque baixo; ela veste uma blusa branca de gola alta, um colete e calça brancos.
“Ser mãe é uma força muito estranha, meu filho” (Foto: Globo)

Manuela Dias não reinventou a roda ao trazer como narrativa principal a busca de uma mãe pelo seu filho perdido, algo já trabalhado por inúmeras vezes em telenovelas, como vimos de forma similar em A Favorita, por exemplo. Sua inovação se dá pelo tratamento que ela atribuiu para um tema tão complexo e controverso, que é o Amor de Mãe. E fez isso sob o olhar brilhante e cinematográfico de José Luiz Villamarim, que assumiu a direção artística da obra. Dias errou e acertou, como todas novelas e produções fazem, mas proporcionou momentos impactantes que poucos conseguem atingir. Que a autora continue a contar belas histórias, que nos façam entreter, refletir e também emocionar.

Amor de Mãe é um verdadeiro divisor de águas na teledramaturgia brasileira. Com uma nova estética novelesca, a produção conseguiu entregar uma narrativa profunda e que traz temas importantes para a plataforma mais popular que qualquer Netflix, que é a televisão. E ainda nos presenteou com uma das personagens mais queridas da história das novelas. Dona Lurdes e sua família já deixam profundas saudades. 

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