O Dilema das Redes aponta erros muito grandes para soluções moralistas

O documentário expõe que os problemas das redes sociais não são ilegais, e sim um método padrão desse esquema de negócio (Foto: Netflix/Reprodução)

Bruno Andrade

O documentário recém-lançado da Netflix, O Dilema das Redes, dirigido por Jeff Orlowski, se inicia com um questionamento a todos os personagens dessa história. “Qual é o problema?” parece ser a pergunta que guia os entrevistados e, embora todos apontem os erros com certa facilidade, não conseguem manter a mesma assertividade quando tentam apontar a solução do problema.

Uma das ideias centrais do filme é a de que veteranos das redes sociais (ex-funcionários do alto escalão da Google, Twitter, Facebook, Instagram e outras) estão, de fato, arrependidos pelo que elas se tornaram. Há um consenso entre os entrevistados de que as redes sociais são, hoje, um lugar inóspito movido a ódio. Entretanto, não parecem querer dizer que são um dos vilões dessa história e tentam, ao longo de toda a narrativa, manter a ideia de que são heróis, afirmando em alguns momentos que não existem culpados.

O formato do documentário já é conhecido. Há uma pequena parte ficcional, que serve como um suporte à parte real do filme. Esse trecho fictício poderia ser facilmente removido, e a ideia seria melhor transmitida sem ele, que tem atuações que, em determinados momentos, beiram o constrangedor e representam personagens estereotipados. Mesmo assim, cabe ressaltar que esse aparato ficcional acaba ajudando aqueles que não estão familiarizados ou nunca se questionaram sobre a importância exagerada das redes sociais atualmente. Os questionamentos levantados por pessoas que ajudaram a criar essas plataformas e suas visões sobre a situação de ódio generalizado são a parte mais importante dessa produção. 

Tristan Harris no Senado dos Estados Unidos em 2019  (Foto: Reprodução)

Iniciamos O Dilema das Redes acompanhando o idealista Tristan Harris, ex-designer de ética da Google, e aquele que parece ser o personagem principal do documentário. Ele se prepara para uma palestra sobre como propagar um uso mais consciente e ético nas redes. Próximo aos 15 minutos de exibição, Harris solta a máxima “se você não está pagando pelo produto, então você é o produto”. Na cena em que ele está no Senado norte-americano, é questionado sobre quem deveria ser responsabilizado pelo método de influenciar o público com o pretexto de mantê-los engajados, e sua resposta é que as plataformas devem ser pois, se aceitam propaganda política, devem proteger as eleições — ele estava testemunhando em uma audiência sobre tecnologia persuasiva e otimização para engajamento. A ideia de que somos os produtos das plataformas parece chocante em um primeiro momento, mas não está longe de ser algo esperado. 

Em outra cena do filme, o psicólogo Jonathan Haidt aponta que, entre 2011 e 2013, houve um aumento gigantesco em casos de depressão e ansiedade entre os adolescentes americanos. Coincidentemente ou não, o Facebook bateu um de seus recordes de lucro em 2013. Ele aponta ainda que a Geração Z, aquela que nasceu por volta de 1996, foi a que começou a utilizar as redes sociais durante a pré-adolescência e, como resultado, tornou-se uma geração mais ansiosa, frágil e deprimida. O Dilema das Redes acerta quando exemplifica o efeito nocivo das notificações em uma das personagens fictícias, que, em determinada cena, se recusa a ficar sem o celular durante a refeição. 

Algo muito debatido sobre o tema é que nós entregamos nosso tempo às redes e elas brigam entre si para consumir cada vez mais a nossa atenção. O problema é que, diferente do dinheiro, o tempo é um instrumento finito e impossível de se obter novamente,  é algo muito mais valioso que o dinheiro. Durante todo o documentário, ficamos apreensivos com a ideia de que somos manipulados e servimos à interesses de desconhecidos. O tempo que gastamos nas redes sociais, muitas vezes, faz parte de uma rotina e, pensando bem, faz com que o Grande Irmão de 1984 pareça terrivelmente real.

Tristan Harris, à esquerda, e Roger McNamee, investidor e um dos entrevistados do documentário, à direita; ambos com seus smartphones nas mãos (Foto: Reprodução)

Os algoritmos são apresentados como um dos grandes problemas. A parte ficcional de O Dilema das Redes apresenta três homens, que ficam em uma das milhares de salas que controlam o que deve aparecer na tela de cada usuário. Esse trecho é exagerado, uma tentativa de mostrar que, de fato, existem pessoas controlando o que você vê. Muito embora os algoritmos funcionem sozinhos, eles são programados por seres humanos. Alguns ativistas já debateram como eles propagam atitudes racistas nas redes, e como foram cruciais para a polarização política atual, além de ampliarem os discursos de ódio. Contudo, a plataforma mais utilizada hoje é o WhatsApp, que não trabalha com algoritmos e, mesmo assim, continua sendo uma grande aliada na manipulação política. É, de algum modo, um amplificador do conteúdo apresentado nas redes sociais, e demonstra que o problema vai muito além dos algoritmos. 

Quando Tim Kendall, ex-presidente do Pinterest e ex-diretor de monetização do Facebook, diz, em sua fala inicial, que essas ferramentas trouxeram coisas maravilhosas para o mundo, seria sincero afirmar que sua colocação traz uma ideia muito triunfalista das redes sociais. Os benefícios listados por Kendall, como a aproximação de familiares distantes, são resultados do uso natural da internet. Essa qualidade já foi muito explorada pelo antigo MSN Messenger, por exemplo, e uma das ideias do uso da internet é justamente a de aproximar pessoas. Embora as redes sociais também realizem isso, o mérito não deve ser somente delas, como ele tenta listar. O que é possível concordar, mesmo que por razões contrárias, é o fato de que elas trouxeram mudanças significativas para a sociedade, já que deixaram de ser simples ferramentas de aproximação e transformaram-se em plataformas de manipulação. De alguma maneira, sequestraram a internet.

O Dilema das Redes, em algumas partes, mantém o tom assustador que lembra as previsões distópicas de Black Mirror, e nos deixa com uma sensação de que algo muito errado está acontecendo enquanto não fazemos nada para mudar. Cada pessoa tem sua própria realidade e seus próprios fatos, já que a linha do tempo do Facebook ou a timeline do Twitter, por exemplo, são adaptadas individualmente. Em uma das cenas, Justin Rosenstein, criador do botão like do Facebook, argumenta que essa é uma das fontes das discussões nas redes sociais, já que temos a ilusão de que todos estão vendo a mesma coisa que nós. São diversas verdades criadas para prender a atenção dos usuários. 

Mark Zuckerberg no depoimento feito no Senado estadunidense em 2018 (Foto: Reprodução)

Durante a exibição da cena de Mark Zuckerberg no Senado norte-americano, em decorrência  da polêmica envolvendo a Cambridge Analytica, ele sugere que a solução à longo prazo seria criar ferramentas de inteligência artificial que resolvem problemas que pessoas reais não conseguem. Em seguida, a cientista de dados  Cathy O’Neil, autora do livro Weapons of Math Destruction (2016), revela que isso não passa de uma mentira, já que a inteligência artificial não pode resolver os problemas apresentados por não conseguir distinguir o que é a verdade. É mais uma das esfarrapadas desculpas para não perderem seus usuários, ou melhor, seus produtos.

O cientista da computação Jaron Lanier, um dos entrevistados do documentário e considerado o pai da realidade virtual, inicia seu livro Dez Argumentos Para Você Deletar Agora Suas Redes Sociais (2018) com a ideia de que as pessoas estão perdendo seu livre-arbítrio. Ele argumenta que a espionagem maciça e a manipulação constante foram aceitas na sociedade com normalidade. Seu ponto fica evidenciado quando pensamos nas propagandas que vemos ao longo do dia, sempre direcionadas para nós com produtos de nosso interesse. Quantas vezes já nos deparamos com aquela situação de pesquisar algo muito específico e, pouco depois, receber uma propaganda exatamente sobre aquilo? 

Quando um dos personagens da parte fictícia do filme decide ficar sem o celular, o aplicativo envia uma notificação dizendo que sua ex-namorada está em um relacionamento (Foto: Reprodução)

Entre a metade e o final do documentário, seu desfecho fica previsível. Os empresários do Vale do Silício, arrependidos, tentam estabelecer algum tipo de valor moral acima de qualquer tecnologia. Ninguém é responsabilizado  pelos danos causados à sociedade. Um tom moralista paira no ar, como se fosse possível preencher esse problema com a força de vontade individual. Talvez a frase mais moralista venha de Aza Raskin, ele e Tristan Harris são fundadores do Center For Humane Technology, lugar onde pretendem reverter a degradação humana e realinhar a tecnologia com a humanidade. Raskin dá sua declaração final dizendo que “o Vale do Silício partiu de uma ideia de tecnologia humanizada”. Pensando bem, é mais provável que tenha sido motivada pela questão financeira, já que as empresas de tecnologia são as mais ricas e lucrativas da história da humanidade.  

Ao longo dos 89 minutos de O Dilema das Redes, fica evidente que essa é uma questão muito acima da vontade populacional. Mesmo que, por algum tipo de iluminação divina, os grandes magnatas das redes queiram se redimir construindo algo mais ético e destruindo esse método tão lucrativo por um bem maior, outros surgirão e tomarão seus lugares. O problema, de algum modo, é a forma como as redes sociais interagem com a vida offline, tentando de alguma forma suprimi-la. Essa é uma questão que não foi planejada nem mesmo por esses empresários, que hoje aparecem como vítimas daquilo que criaram. 

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