O Filho de Mil Homens: uma prosa lírica dos afetos humanos

“Os seus olhos tinham um precipício. E ele estava quase a cair olhos adentro, no precipício infinito escavado para dentro de si mesmo. Um menino carregado de ausências e silêncios.”

Edição publicada pela Editora Biblioteca Azul, com ilustrações do Bloco Gráfico (Foto: Reprodução)

Vanessa Marques

O luso-angolano Valter Hugo Mãe é um dos romancistas mais prestigiados da atualidade. José Saramago, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura, referiu-se ao autor como um tsunami linguístico. De fato, a escrita de Mãe explora com maestria toda a potencialidade e beleza da língua portuguesa. O Filho de Mil Homens, publicado em 2011, é uma prosa poética dividida em vinte contos que se entrelaçam numa história comum. O enredo perpassa numa vila litorânea fictícia, de modo que o romance emana um tom enlevo de locus amoenus (do latim: “lugar ameno”). Nela, o pescador Crisóstomo, a enjeitada Isaura, o órfão Camilo e o delicado Antonino engatam suas trajetórias pessoais com lirismo e introspecção.

A cadência da narrativa sensível de Mãe conduz o leitor para um mergulho profundo no âmago de cada personagem. Crisóstomo é um homem que era só metade. Um pescador solitário que, chegando aos quarenta anos, assume a tristeza de sua vida e procura ser completo através de um filho. E o faz, portanto, porque deseja ser amado.

De acordo com Sartre, “aquele que ama só ama esperando a reciprocidade. As relações com o outro só existem porque quem ama dá ao outro o sentido de existência absoluto”. O personagem empenha uma busca pelo amor que é intrínseca à natureza humana. Sob essa ótica, a procura de Crisóstomo o leva ao menino Camilo, órfão de uma anã que encontra no velho pescador um refúgio e uma família.

Valter Hugo Mãe é o nome artístico de Valter Hugo Lemos (1971); curiosamente, foi num município português litorâneo chamado Vila do Conde onde o autor viveu parte de sua vida (Foto: Reprodução)

Durante os capítulos de abertura, os personagens encontram-se imersos num estado de desmedida melancolia. Em contraste com a angústia da solidão e do abismo existencial, destaca-se a sutileza da paisagem lúdica descrita por Mãe, em especial da casa de paredes azuis de Crisóstomo que se confunde com as cores do mar salgado. No interior do vilarejo, a jovem Isaura vive reclusa com sua mãe idosa. Desvirginada e abandonada pelo noivo antes do casamento, a personagem passará a enxergar o amor como uma fome bruta e sem prazer.

“Era uma mulher carregada de ausências e silêncios. Para dentro da Isaura era um sem fim e pouco do que tinha lhe servia para a felicidade. Para dentro da Isaura a Isaura caía.”

Isaura, tal qual a icônica Macabéa de Lispector, necessita e anseia pela conexão com outro (e, por conseguinte, com o mundo) para não perder-se em si. Todavia, já não poderia ser aceita por um pretendente, pois não era mais casta, de maneira que, para ela, só restava o amor dos infelizes. Essa crença a faz aceitar casar-se com Antonino, um homossexual que sofria com o escárnio da comunidade e pretendia, através de um casamento de aparências, manter-se dentro dos padrões conservadores da vila. O homem maricas, que padecia de paixões pelo seu sexo, havia sentido na pele que “à beleza dos homens correspondia a fúria, a bestial crueldade”. Após a cerimônia, contudo, Antonino desaparece e a moça experimenta novamente o abandono.

Coleção Valter Hugo Mãe publicada pela Editora Biblioteca Azul (Foto: Reprodução)

Esgotada, Isaura tenta descolar-se da sua realidade, que já se provava insuportável, buscando consolo no mar. A caminhada na praia a conduz ao encontro de Crisóstomo. O pescador já não era mais metade: tinha um filho. Mas naquela tarde desejou ser o dobro. É na posterior união dos dois que o romance apresenta uma felicidade sutil, construída com o possível, entre indivíduos que enfrentavam o pesar da solidão. Na obra de Mãe, aqueles que se encontravam isolados ou segregados se unem compondo uma família fraternal.

Diante do fracasso do matrimônio de faz-de-conta, Antonino, ao retornar para a trama, torna-se uma figura de amizade para Isaura. O homem que fora vítima da rejeição de sua mãe, Matilde, e do preconceito da comunidade, é acolhido e aceito por Isaura e Crisóstomo. Esse último, embora fizesse parte da lógica patriarcal daquele mundo interiorano, não o julga e aceita o rapaz. Encontrar um núcleo familiar de laços não sanguíneos, onde se expressa a empatia e o respeito, é fundamental para que Antonino compreenda a sua sexualidade e a aceite sem sofrimento.

O afeto, na obra de Mãe, é uma inesgotável fonte de energia psíquica, aquela que permite dar sentido ao caminho individual de cada personagem, que por si só não o faz, mas o constrói na interação com o outro. O romance imprime ao leitor uma catarse, ao transformar a desolação em regozijo e afeto. O amor dos infelizes triunfa deixando o sentimento de esperança. Assim, a sensibilidade e a genialidade poética de Valter Hugo Mãe nos presenteiam com uma das obras mais brilhantemente humanas da literatura contemporânea.

“Comia a dor como uma coisa estrebuchando, viva, como um animal que era preciso desfazer para as profundezas do espírito. Um monstro que já não lhe escaparia”.

Um comentário em “O Filho de Mil Homens: uma prosa lírica dos afetos humanos”

  1. Ler ess@ resenha/ensaio depois de ter lido o livro me despertou as mesmas emoções da leitura, e me fez racionalizar o sentimento de beleza que o livro desperta. Uma segunda catarse…

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