Um pouco mais de Amor e Sorte vai bem em 2020

Gilda e Lúcia, mãe e filha quarentenadas (Foto: Reprodução)

Caroline Campos

2020 definitivamente não foi um ano fácil para o audiovisual brasileiro. Pela primeira vez em mais de 50 anos, as gravações das novelas da Rede Globo foram interrompidas, o que levou a emissora a reprisar obras já conhecidas pelo público. Mesmo com a retomada das gravações no último mês de agosto, só saberemos o desfecho dessas histórias em 2021 – Lurdes está mais perto de encontrar Domênico do que nós estamos da vacina. E é nesse contexto que surge Amor e Sorte, minissérie filmada de maneira 100% remota com atores e atrizes que dividem esse período de pandemia.

Ao som de Parabolicamará, de Gilberto Gil, acompanhamos quatro histórias independentes, com menos de meia hora de duração, que envolvem o amor nas mais diversas formas, todos baqueados pelo coronavírus e o isolamento social. Jorge Furtado foi quem idealizou o projeto, levando em conta as novas vivências e relações conflitantes proporcionadas pelo distanciamento e as possibilidades da tecnologia. Logo, não demorou muito para que os escolhidos surgissem: as veteranas Fernanda Montenegro e Fernanda Torres; os burlescos Lázaro Ramos e Taís Araújo; os românticos Emílio Dantas e Fabíula Nascimento; os artísticos Caio Blat e Luisa Arraes. 

O resultado foi curioso, encantador e divertido. O episódio inaugural é o único com 45 minutos e que não aborda um relacionamento romântico, mas, sim, uma hilária e profunda relação familiar. Fernanda Montenegro, a rainha inalcançável da atuação brasileira, é dona Gilda, mãe de Lúcia, interpretada por Fernanda Torres. Mãe e filha também na vida real, a dupla de Fernandas trouxe o melhor capítulo da temporada. Um embate entre personalidades distintas, Gilda e Lúcia, como foi batizado o episódio, emociona ao nos presentear com atuações tão sensíveis e reais das preocupações e discordâncias que temos com quem nos criou para a vida.

Fernanda e Fernandona, a realeza do audiovisual brasileiro (Foto: Globo)

Fernandona encarna o clássico meme do idoso teimoso que não quer ficar em casa, deixando sua filha, empresária ocupada e dedicada, arrancado os cabelos para manter a mãe no sítio. Depois de brigas calorosas sobre posicionamentos político-sociais, é anunciado o fim da quarentena, e Gilda faz de tudo para que Lúcia não descubra. A narrativa é facilmente identificável agora que nos isolamos com familiares, muitas vezes, tão diferentes de nós – o amor é posto à prova, mas, ainda, é o mesmo. O episódio foi dirigido por Andrucha Waddington, marido de Torres, e contou também com os filhos do casal na parte técnica. 

A qualidade segue uma ordem decrescente – as narrativas foram ficando mais fracas a cada semana. Mesmo assim, a série não se torna cansativa, já que os atores conseguem deixar seus personagens quarentenados ainda mais carismáticos no conforto de suas casas. Linha de Raciocínio é a segunda história da antologia, e consegue até que uma discussão entre Lázaro Ramos e Taís Araújo sobre panelaços, seja cativante. Cadu e Tabata brigam usando termos que poderiam ter saído diretamente das threads do Twitter: signos, relacionamento abusivo, toxicidade, questões ideológicas e até qualidade do sexo. 

Ao longo do capítulo, o casal joga diversas verdades um na cara do outro, mostrando como a quarentena ou fortalece um relacionamento ou o faz sucumbir. Taís Araújo está extremamente cômica com sua Tabata levemente desequilibrada – transita entre estar de saco cheio de manifestações políticas, falar que deseja matar o marido e, depois, até se maquiar para bater a panela na varanda. Esse foi, inclusive, o primeiro roteiro de Alexandre Machado sem sua parceira de vida e arte, Fernanda Young, que faleceu precocemente em agosto de 2019. O episódio conta com uma dedicatória a ela em sua cena final.

O casal-maravilha dos estúdios Globo: Lázaro e Taís (Foto: Globo)

O que chama atenção da nova minissérie da Globo é o trabalho a distância que equipe e elenco produziram. Todos os equipamentos foram enviados para a casa dos atores, que tiveram que estudar não apenas seus textos, mas também as orientações da equipe técnica, que foi homenageada nos créditos de todos os quatro episódios. A direção de arte enviava arranjos de flores e jogos de cama para que fossem usados em cena, e escolhia os figurinos dos personagens através de videochamadas. Uma experiência nunca vista antes em telas nacionais.

O terceiro episódio, Territórios, fica a cargo de Fabíula Nascimento e Emílio Dantas, que interpretam Clara e Francisco, um casal que teve que passar pelo isolamento no momento que decidiram pelo divórcio. Ainda frustrados um com o outro, eles decidem dividir a casa com plásticos, desde a mesa de jantar até o sofá da sala. Essa iniciativa gerou a cena mais divertida e emblemática de toda a minissérie: o casal se beijando e iniciando uma relação sexual separados por uma cortina de plástico – o que, com certeza, todo casal já pensou em fazer em decorrência do coronavírus. 

Clara traiu Francisco, que também já havia a traído. As mágoas e arrependimentos que um possui pelo outro são uma grande nuvem de fumaça no relacionamento, mas a convivência forçada acaba relembrando momentos que nenhuma mentira consegue apagar, em cenas poéticas de lembranças ao som de Aqui e Agora, também do mestre Gilberto Gil. No entanto, o clima passivo-agressivo da nova rotina de Clara e Francisco nos faz gargalhar a todo momento que Francisco conta spoilers da série que antes assistiam juntos, para, depois, nos fazer derreter quando ele afirma que “se eu não dei certo com você, não vou dar com mais ninguém”. O episódio mais romântico de Amor e Sorte.

O simbólico plástico de Clara e Francisco (Foto: Reprodução)

O fechamento da minissérie foi responsabilidade de Caio Blat e Luisa Arraes com A Beleza Salvará o Mundo. O capítulo foi o mais maçante da temporada, mas ainda consegue tirar uns risos do telespectador. Manoel, engenheiro químico metido a cineasta, e Tereza, atriz consagrada, passam o final de semana juntos e offline, para depois descobrirem que o mundo resolveu entrar no apocalipse. Manoel vê a oportunidade de sua vida: gravar um filme com Tereza. Romeu e Julieta em tempos de Covid-19. Entre pesquisas e filmagens, no fim das contas, o casal recém-formado se apaixona e descobre a cura do vírus. 

O tempo foi mal aproveitado, o que gerou resistência em engolir o desfecho do episódio. As cenas dos bastidores do filme da dupla, batizado com o mesmo nome do capítulo, ainda convencem pela química que Blat e Arraes naturalmente possuem, mas, ainda assim, o episódio é o menos envolvente de toda a antologia. De qualquer forma, continua sendo um deleite assistir Blat e Arraes juntos, sendo ela a estrela de sua narrativa. Johnny Massaro, vizinho de apartamento dos dois, ainda conseguiu fazer uma ponta na obra como (ex) namorado de Tereza. 

“Todo filme de amor é de época” (Foto: Globo)

Amor e Sorte foi uma experiência bem sucedida para os estúdios Globo, que resolveu bater de frente com as dificuldades que o momento atual nos impôs. A combinação caminha lado a lado. Talvez, para sobreviver a quarentena, o amor tenha que vir em muito mais doses. No entanto, a antologia nos reafirma que, se existir, pode-se lutar por ele. De gafanhotos gigantes a queimadas sem controle, não há dúvidas de que nós precisamos ainda mais dos dois para sobrevivermos a 2020. No fim das contas, é como Fernanda Montenegro afirmou: “se houver amor, já é sorte; e se você tem sorte, já tem amor”.

 

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