Não Há Mal Algum: a tirania em 4 atos

Um dos filmes mais comentados de 2020 chega ao Brasil na 44ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (Foto: Divulgação Imprensa)

Caroline Campos e Raquel Dutra

A filmografia do diretor iraniano Mohammad Rasoulof não tem sido uma empreitada fácil. Em seus filmes, Rasoulof critica explicitamente o autoritarismo e a tirania que se apossaram de seu país, e isso já lhe rendeu alguns problemas com seu governo. Não seria diferente com Não Há Mal Algum (Sheytan Vojud Nadarad), seu longa mais recente que chega ao Brasil como uma das obras mais esperadas da 44ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. Com uma forte narrativa sobre as consequências de ser um executor de penas de morte no país, o filme venceu o Urso de Ouro, prêmio máximo do Festival de Berlim, mas o diretor não pôde agradecer presencialmente a honraria pois o governo do Irã não permitiu seu comparecimento à cerimônia por ter feito “propaganda contra o sistema”.

A construção da história foi diretamente influenciada pela condição do diretor diante do país. Em decorrência da censura, Rasoulof optou por dividir o filme em 4 curtas dirigidos sob nomes fictícios, para que a produção da obra se tornasse mais segura. Todos, entretanto, partem de uma mesma perspectiva: a de quem tem que escolher entre sujar as mãos em obediência ao Estado ou comprometer sua existência e liberdade na própria terra. O suspensa marcante complementa a contemporaneidade das histórias, que transformam o estereótipo de carrascos mascarados da Idade Medieval para cidadãos comuns dos dias de hoje.

O filme é resultado de uma colaboração entre Irã, Alemanha e República Tcheca (Foto: Divulgação Imprensa)

O primeiro deles já protagoniza o curta de maior impacto e tensão do filme. Ele é Heshmat (Ehsan Mirhosseini), um pai de família que vive normalmente seu dia até sair para trabalhar na madrugada. Com gestos mecânicos, o ator desenha o hábito que Heshmat adquiriu com seu dia-a-dia conflitante e também seus traumas, evidenciados em sua aparência morna, curvada e na dificuldade que seu personagem tem para dormir. Contrariando o caráter imediato das consequências que apertar o botão da execução de alguém revela, o texto de Mohammad Rasoulof demora a entregar a razão pela qual Heshmat está ali, fazendo-o apenas nas últimas cenas, de uma forma tão repentina e insensível que acaba por justificar a forma como o executor vive sua vida, lenta e inexpressivamente.

Logo em seguida, a banalidade que a execução assume no primeiro capítulo de Não Há Mal Algum é revertida bruscamente. Agora, nossa perspectiva está junto de um grupo de soldados que têm como serviço obrigatório realizar as execuções, focada em Pouya (Kaveh Ahangar), que vai concretizar a pena de morte do Estado pela primeira vez. Construindo um suspense tremendo, o jovem não cede à pressão da tirania sobre sua própria ética. Refletindo a coragem do personagem em resistir nas suas crenças, o diretor junta toda sua subversão para fazer jus a sua fama e inimizade com o governo iraniano, colocando o hino antifascista Bella Ciao para tocar ao fundo.

Impedido de sair do Irã pelo governo, quem recebeu o prêmio de Mohammad Rasoulof no Festival de Berlim foi sua filha Baran Rasoulof, que interpreta Darya no filme (Foto: Divulgação Imprensa)

Se nos primeiros atos Não Há Mal Algum contrasta suas perspectivas, nossas questões morais são ainda mais abaladas com as duas últimas histórias, que possuem caráteres complementares. Javad, o jovem soldado protagonista da terceira parte, consegue uma folga do serviço militar para pedir a namorada em casamento. No entanto, quando chega a casa de Na’na (Mahtab Servati), o clima não é de comemorações. Um ativista político, muito próximo da família, fora perseguido e executado pelo Estado. Até então, nada que Javad não esteja acostumado em relação ao seu país, já que “a lei é essa e temos que obedecê-la”. Todas as suas crenças são dissolvidas ao ver o rosto do homem em fotos e concluir que ele mesmo o matara. A força da cena está na atuação claustrofóbica de Mohammad Valizadegan. Sua crise de pânico e olhar desorientado substituem a atitude alegre e esperançosa do jovem que nos é apresentado. 

Ao longo da segunda metade do filme, percebemos que o assassinato desencadeia reflexos e consequências para além do ato em si. Não é só apenas um serviço obrigatório, mas uma atitude que afeta todos ao redor do executor, emocional e psicologicamente, inclusive a longo prazo. Enquanto Javad aceita realizar o que lhe é mandado, nós vemos em Bahram (Mohammad Seddighimehr), um dos personagens principais da última história, a luta contra a banalização da repressão estatal. Com uma personalidade contida e um pouco desanimada, ele e sua esposa recebem a sobrinha Darya em sua casa afastada da cidade. Pelas atitudes receosas de Bahram, a narrativa indica que o homem está tentando revelar um segredo para a jovem, relativo a momentos de 20 anos antes. Diferente de Javad, Bahram disse “não” e teve que lidar com as consequências de sua afronta. 

O diretor também foi premiado no Festival Cannes em 2011, 2013 e 2017, com Goodbye, Manuscripts Don’t Burn e A Man of Integrity, respectivamente (Foto: Reprodução)

Os personagens de Não Há Mal Algum são controlados pelo medo e marcados pela violência, abrigando o aspecto de maior impacto de todo o filme. Mesmo assistindo a história pela perspectiva de pessoas que estão ou estiveram na posição do executor e não do executado, a narrativa não depende inteiramente de seus personagens, já que as quatro partes formam um todo que versa muito mais sobre o tema e uma denúncia do que qualquer outra coisa. Isto é, um sistema tão desumano que também desumaniza quem é obrigado a se submeter a ele. Essa desumanização, por sua vez, nunca é contida nem finalizada em si mesma, mas sempre se desdobra em muitas outras destruições, reverberando na vida de quem a executa de formas profundas e permanentes. Poderosamente, o filme também ressoa a forma que o diretor encontrou para enfrentar a tirania: “seu poder é dizer não.” 

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