Mank é uma viagem problemática por Cidadão Kane

A imagem está em preto e branco. À esquerda, Amanda Seyfried segura um cigarro na mão direita. Ela veste um vestido e um casaco por cima. À direita, Gary Oldman veste um paletó. Ambos estão encostado em um poste de madeira e se encaram.
O diretor David Fincher nunca ganhou um Oscar por seus filmes (Foto: Netflix)

Caroline Campos

Se propor a fazer um longa que destrincha os bastidores do que hoje é considerado o maior filme da história do cinema não é um projeto fácil. Conhecendo a filmografia de David Fincher, pode-se dizer que é o exato tipo de trabalho que ele gostaria de se aventurar e assumir – e, de fato, foi o que ele fez. Mank, que se dispõe a nos mostrar a verdade por trás do roteiro de Cidadão Kane, filme de 1941 dirigido por Orson Welles, chegou na Netflix no último mês do fatídico ano de 2020, para tentar, talvez, fechar com chave de ouro os 365 dias mais loucos da sétima arte.

O personagem-título interpretado por Gary Oldman é Herman J. Mankiewicz, aclamado roteirista de Hollywood que, pelos olhos do longa de Fincher, escreveu sozinho Cidadão Kane. A história é escrita pelo pai do cineasta, Jack Fincher, um jornalista apaixonado por cinema que faleceu em 2003. Assim surgiu Mank, que foca no relacionamento do roteirista com as arapucas políticas que cercavam a fábrica de sonhos hollywoodiana, assim como o magnata da mídia William Randolph Hearst, inspiração para Charles Foster Kane, protagonista do filme de 41.

A foto está em preto e branco. Gary Oldman está em seu centro, usando um paletó e apontando o dedo esquerdo a frente. À esquerda, há duas pessoas o encarando. Ele está em frente a uma mesa, com diversos talheres, pratos e copos em cima. Acima dele, há um lustre.
Gary Oldman venceu o Oscar de Melhor Ator por sua atuação em O Destino de Uma Nação (Foto: Netflix)

A construção do personagem de Oldman nada difere de outras interpretações que vemos por aí sobre estrelas dependentes do álcool que já foram retratadas em tela – mau humor e arrogância, quedas constantes e a cena clássica do monólogo alcoolizado do protagonista. Mesmo com a fórmula já batida, o talento de Oldman consegue dar um ar carismático ainda que desconfortável para Mank, prendendo a atenção do espectador durante os (longos) 132 minutos de produção.

O que chama atenção no longa é a figura de Orson Welles, interpretado por Tom Burke, e a aparente vilania com que ele é retratado. Welles foi um dos nomes mais influentes da Era de Ouro do cinema, no entanto, sua figura está sempre submersa em sombras, falando pelo telefone quase que secretamente e, em seu encontro com Mank, a beira de um surto de fúria em cima dos créditos do roteiro de seu filme. Inclusive, a semelhança da voz de Burke com a de Welles, extremamente marcante desde sua época de rádio, é absurda. Em alguns momentos, é impossível não questionar se não se trata de uma dublagem.

A imagem está em preto e branco. Lily Collins, à esquerda, está sentada em cima de uma cama. Ela veste um vestido simples com mangas. À direita, Gary Oldman está deitado na cama usando pijamas de mangas compridas. A cama está cheia de papéis e de fundo há o ambiente de um quarto, com uma porta para um corredor. Collins e Oldman brindam, cada um com um copo em mãos.
Rita Alexander, interpretada por Collins, foi uma das fontes de Pauline Kael para seu artigo “Criando Kane” (Foto: Netflix)

E a confusão que envolve as duas figuras centrais do filme é o que mais incomoda durante a produção de Fincher. Afinal, Orson Welles participou ou não da criação de Cidadão Kane? Bater na tecla que Mankiewicz escreveu sozinho o filme é uma ideia falsa. Apesar de acusações e diversos artigos publicados por envolvidos, a obra, que até hoje mantém sua hegemonia quando se trata de narrativa, é o que é por conta de Orson Welles e suas revisões e mudanças. A veracidade de Mank só pode ser afirmada se você entender o filme como o ponto de vista – e apenas o ponto de vista – do roteirista. Cidadão Kane é produto de ambas as mentes.

Além disso, a sacada da construção narrativa de David Fincher é impressionante. O cineasta quebra a linearidade da história do mesmo jeito que o longa de 41 realizou, contando os acontecimentos através de flashbacks que divertem, mas também cortam um pouco a empolgação em certos momentos. Mank se escora na sua metalinguagem, mas visa um público restrito no meio da quantidade de referências e figuras importantes da produção cinematográfica dos anos 40, assim como suas respectivas desavenças e a forma com que o cinema pode manipular a opinião pública.

A imagem está em preto e branco. Vemos uma mesa com um balde com champagne dentro. Ao redor dela, três mulheres olham para a figura de Gary Oldman, que sorri. De fundo, temos outras mesas e casais dançando. Ao redor, vemos um microfone e uma câmera de filmagem, indicando os bastidores.
David Fincher usa recursos para retomar o passado, incluindo sons propositalmente arranhados e marcas de cigarro na projeção (Foto: Netflix)

Os coadjuvantes contribuem bastante para que o longa não se torne maçante demais. Charles Dance, que há alguns anos dava vida ao ambicioso Tywin Lannister em Game of Thrones (2011 – 2019), interpreta W.R. Hearst com quase a mesma frieza do patriarca Lannister. Sua companheira é a atriz Marion Davies, que, através de Amanda Seyfried, é responsável pelas melhores interações com Oldman. Seyfried é sutil e graciosa, com uma Davies que, apesar da inteligência e sagacidade, é vista como ingênua pelos que a cercam – suas chances no Oscar são altas.

No entanto, apenas Seyfried tem algum tipo de destaque entre o elenco feminino. Lily Collins e Tuppence Middleton cumprem somente tempo de tela, com aprofundamentos tão mínimos que passam completamente batidas. Collins interpreta Rita Alexander, secretária de Mank, e Middleton é responsável pela pobre Sarah, esposa do protagonista que poderia, no mínimo, receber um prêmio pela paciência que demonstra ao longo do filme. A tentativa em dar uma carga dramática a Rita através do arco sobre seu marido é completamente descartável, apenas reforçando a falta de interesse do diretor nas personagens.

A imagem está em preto e branco. Charles Dance senta na parte de trás de um veículo do estúdio MGM. À frente, dois homens o acompanham, junto com uma grande câmera de filmagem.
Charles Dance também participa de The Crown como Lorde Mountbatten (Foto: Netflix)

No fim das contas, Mank não traz nada de novo, apenas reacende a velha discussão acerca dos bastidores de Cidadão Kane, que recebeu um Oscar de Melhor Roteiro em 1942 – nem Welles nem Mankiewicz atenderam à cerimônia. Com uma fotografia em preto e branco caótica e mal usada, é decepcionante associar a figura que dirigiu Se7en e Garota Exemplar a um filme tão regular feito para Hollywood se sentir prestigiada. Se o filme será lembrado ou não em grandes premiações, resta esperar. Mas, pelo menos, podemos agradecer que 2020 chegou ao fim.

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