The Present: o nacionalismo é uma doença

Cena do filme The Present. No centro da imagem, há uma garotinha branca, de cabelos castanhos, que usa um casaco vermelho. Ela está atrás de uma grade de metal e apoia uma das mãos na grade. Seu semblante é pensativo. Atrás dela, podemos ver do peito para baixo de um homem, que veste casaco azul e calças marrons. Ele está em uma fila.
The Present está concorrendo ao Oscar 2021 na categoria Melhor Curta-Metragem em Live Action (Foto: Philistine Films)

Jho Brunhara

São quatro da manhã. Você, palestino e morador da Cisjordânia, toma seu café, se arruma para o trabalho e começa uma jornada de três a quatro horas para chegar em uma obra de construção civil em Jerusalém, território atualmente controlado por Israel. Os 32km, que poderiam ser percorridos em 1h30, parecem ter o dobro da distância. Em certa parte do caminho, você precisa atravessar a fronteira, e, para isso, enfrentar um dos pontos de checagem de Israel. Nesse checkpoint, palestinos são tratados como se fossem animais. Caminham em túneis cercados por grades, abarrotados em centenas. Alguns escalam como podem, para fugir da multidão sufocante. Outros chegam a ser pisoteados, ou saem com uma costela quebrada

Ao fim do funil, a única passagem é por uma catraca torniquete. Depois, um detector de metal, onde se tira qualquer vestimenta solicitada considerada suspeita. E, então, finalmente, um militar israelense verifica seu documento de identidade e seu visto de trabalho. A permissão para trabalhar em construções só é dada para homens maiores de 23 anos, casados, e que possuam pelo menos um filho. Ocasionalmente, um soldado entediado pode te humilhar antes de autorizar sua entrada no país, por pura ‘graça’. Essa é a realidade enfrentada por 70 mil palestinos, que necessitam dos empregos depois da fronteira para sobreviver, diariamente. Todos os dias. 

Cena do filme The Present. A cena foi gravada no Checkpoint 300, um posto de checagem entre a Cisjordânia e Israel. Na imagem há um grande corredor em direção ao fundo da fotografia, cercado por paredes e grades. Muitas pessoas estão passando por esse corredor, de forma amontoada. Algumas pessoas atravessam escalando as grades no alto.
Checkpoint 300 (Foto: Philistine Films)

The Present (الهدية), curta-metragem dirigido pela britânico-palestina Farah Nabulsi, nos mostra um pouco dessa violência vivida pelo povo da Cisjordânia. No filme, acompanhamos a ida de um pai e sua filha até a cidade de Bethlehem, para que possam comprar itens básicos no mercado e adquirir uma nova geladeira de presente para a mãe. A trama, inicialmente simples, revela camadas assustadoras sobre a vida na região. Yusef (Saleh Bakri, o pai) e Yasmine (Maryam Kanj, a filha) enfrentam o horrível ponto de checagem, que tem cenas verdadeiras exibidas no começo do curta: Saleh divide a tela ao lado de palestinos reais, que estavam a caminho de Israel para trabalhar. 

No fim do checkpoint, pai e filha são humilhados e colocados em gaiolas até que seus documentos sejam conferidos. Finalmente liberados, caminham até a cidade de Bethlehem. Depois de adquirir a geladeira e as compras do supermercado, mais um problema: o carro que transportaria o eletrodoméstico da loja até Beitunia (onde moram) é impedido de passar. Yusef e Yasmine se veem com apenas uma saída: empurrar o item por todo o trajeto até a casa, com ajuda de um carrinho. Porém, antes, precisam novamente da autorização dos soldados no ponto de checagem. Mesmo nesse momento, exaustos, não encontram misericórdia das autoridades militares. A ficção, nesses casos, não vai tão mais longe quanto a realidade pode chegar, e novamente assistimos o abuso de poder e a humilhação, completamente gratuita. 

Cena do filme The Present. Pai e filha estão dentro de uma van, sentados lado a lado em dois bancos. O pai está a esquerda, e a filha pequena à direita, com a cabeça apoiada em seu braço. A menina está com semblante triste e o pai com semblante pensativo. Ambos olham para baixo, em diagonais contrárias.
O filme de Farah Nabulsi venceu o BAFTA de Melhor Curta-Metragem Britânico (Foto: Philistine Films)

O conflito Israel-Palestina é antigo, mas não tão velho quanto você, talvez, pense. Apesar da segunda diáspora judaica ter acontecido em 70 d.C., quem expulsou os judeus de Jerusalém foram os romanos, e os árabes pouco tem a ver com isso. O problema real começa no início do século 20, com o movimento sionista, e, posteriormente, o holocausto, influenciando o retorno de muitos judeus para a ‘terra prometida’ de Israel, que dividia a mesma localização com a Palestina histórica (naquele momento sob gestão britânica). 

Conflitos borbulharam por décadas, até que em 1947 a ONU tentou implementar a criação do Estado de Israel e do Estado da Palestina, dividindo o território em duas partes. Israel declarou independência e anexou os territórios definidos pela Partilha. A Liga Árabe, que não concordava com o acordo pois via como uma injustiça com a Palestina, declarou guerra. Israel venceu o conflito, manteve os territórios, e, posteriormente, avançou com suas fronteiras em novas ações militares até alcançarmos o cenário atual, em que a Palestina ainda não é reconhecida como um país. 

Onde quero chegar com tudo isso: apesar de Jerusalém ser uma cidade muito importante para o islamismo, judaísmo e cristianismo, a religião não é o motivo do conflito entre Israel e a Palestina. Judeus e muçulmanos convivem na região há séculos, e sempre dividiram o espaço geográfico. O caos se origina da necessidade de se ocupar e delimitar territórios, de se estabelecer nações soberanas. E claro, da ideia de jerico da ONU em aprovar um projeto sem que ambos os lados estivessem de acordo. 

Peça gráfica em formato de 4 mapas. No primeiro mapa, vemos o território Palestino em 1946, com a porção verde (representando os palestinos) ocupando quase a totalidade do mapa. Na costa superior oeste, podemos ver alguns fragmentos de território em posse judaica. O segundo mapa mostra uma representação do Plano de Partilha da ONU de 1947, que ofereceria 54% do território total anterior para Israel, e o restante para a Palestina, com Jerusalém sendo uma cidade de gestão internacional. No terceiro mapa, vemos como a divisão estava em 1967, com Israel ocupando quase a totalidade do território. Apenas a Faixa de Gaza, na costa inferior oeste, e a Cisjordânia, no centro-leste, pertencem à Palestina. No quarto mapa, vemos a divisão atual, em que a Faixa de Gaza e a Cisjordânia estão ainda mais fragmentadas, representando apenas 'manchas' no território total.
A Palestina é, atualmente, composta pela Faixa de Gaza (porção verde próxima ao oceano) e pela Cisjordânia (‘ilhas’ em verde) [Foto: Reprodução]
No presente, estamos caminhando para relações cada vez piores. Sediados na Faixa de Gaza, o Hamas, grupo terrorista palestino, assassina israelenses e controla a região pelo medo. Já no país ao lado, Israel usa da força militar para bombardear zonas urbanas em Gaza, e na tentativa de exterminar o Hamas, mata muitos civis palestinos. É fato: a dor das mortes de civis israelenses é imensurável, mas a quantidade de palestinos que morreram em investidas de Israel é muito superior. 

The Present escancara um dos piores comportamentos da humanidade: o nacionalismo. Conflitos por território e soberania sempre existiram, e nem por isso eles são justificáveis como parte da natureza humana, ainda mais quando geram uma quantidade gigantesca de mortos, feridos e refugiados. Esse não é um texto que vai dizer quem está certo entre Israel e Palestina, já que ambos os lados sofreram e ainda sofrem. Igualmente, não podemos confundir as ações dos Estados como culpa dos civis. O ponto em comum aqui é mostrar que o sentimento de nacionalismo é uma doença. Ele afasta, segrega e gera conflitos. Bordas imaginárias deveriam apenas auxiliar na administração, e não deveriam funcionar como limites de impérios. O pertencimento a uma nação não deveria desumanizar outra, não deveria humilhar, oprimir, reduzir ou exterminar outro povo. 

Cena do filme The Present. Nela, vemos o pai, Yusef, apoiado em uma grade com as mãos e a testa. Ele está de olhos fechados olhando para baixo. A câmera está do outro lado da grade. Ele veste uma camiseta preta e é um homem branco.
Enquanto as acrobacias políticas se alastram por décadas, os civis sofrem (Foto: Philistine Films)

O curta-metragem de Farah Nabulsi é a primeira produção palestina a ser indicada na categoria Melhor Curta-Metragem em Live Action no Oscar, e concorre em 2021. É muito provável que não ganhe, mas apenas a indicação na maior premiação do mundo já vale a atenção para um assunto que ainda é extremamente relevante e acontece no mesmo planeta que residimos, com pessoas iguais a nós, civis que apenas querem viver vidas normais com a liberdade que todos têm direito. 

A solução para o conflito entre Israel e Palestina fica mais difícil a cada dia, mas a paz e um acordo que seja verdadeiramente justo ainda não é impossível. The Present mostra um mundo aparentemente insolúvel para os adultos, mas deposita uma fé sutil nas crianças, quando Yasmine toma uma decisão arriscada e importante no fim do curta. A esperança nos tempos que vivemos é uma chama moribunda, mas que ainda está acesa, com muito esforço. 

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