Quo Vadis, Aida? e a impotência perante um genocídio

Cena do filme Quo Vadis, Aida?. Nela vemos Aida, uma mulher branca, de olhos claros e cabelo castanho curto. Ela veste roupa azul claro e um crachá azul escuro. Ela está olhando fixamente para frente. Na sua frente há grades marrons. O fundo é desfocado em tons de azul.
A potente atuação de Jasna Djuricic nos coloca em movimento mesmo assistindo a tela estáticos no candidato da Bósnia ao Oscar 2021 (Foto: Condor Distribution)

Ana Júlia Trevisan

O que seria das premiações sem os filmes de guerra? Em 1971, Patton venceu a categoria de Melhor Filme do Oscar; em 1994 foi vez do genial A Lista de Schindler levar a estatueta, e em 1999 O Resgate do Soldado Ryan garantiu a indicação no prêmio mais importante da noite; já em 2018, dois filmes bateram ponto no tapete vermelho: Dunkirk e O Destino de uma Nação. Em 2020, o Globo de Ouro até tentou emplacar os soldados de 1917, mas não ficou nem com cheiro perto do imbatível Parasita. No atípico 2021, temos escassez nos filmes de confronto armado, mas Quo Vadis, Aida? vem pra cobrir essa lacuna e impactar a quem assiste. 

Baseado em fatos reais, a história se passa em Srebrenica, uma pequena cidade do leste da Bósnia e Herzegovina onde, em 1995, houve um massacre de civis. A produção faz um recorte focado nesse genocídio que ocorreu no município. Não há breve introdução ao assunto, somos colocados no meio da guerra e podemos esperar o pior, com famílias completas se refugiando na base da Organização das Nações Unidas, para escapar da ameaça de morte da Sérvia, que militarizava várias regiões do país.

A base da ONU construída pelos soldados holandeses é denominada zona segura e quando a cidade é invadida pelo general Ratko Mladic e suas tropas de assassinos, a zona vira refúgio de todo o povo que busca por abrigo. Não há sentimento que melhor defina a experiência desse longa do que angústia. Logo no início, acompanhamos rapidamente uma família precisando sair de sua casa em busca de segurança, momentos depois vemos um mar de gente na espera de adentrar a base, que já está com sua capacidade máxima.

Cena de Quo Vadis, Aida?. Nela Vemos Aida de costas. Ela veste uma camisa azul. Suas mãos estão na altura da boca. Ela fala com centenas de pessoas que estão ao fundo da foto de forma desfocada.
Estima-se que mais de 8 mil homens foram assassinados no massacre de Srebrenica (Foto: Condor Distribution)

Sem militares correndo por campos de trigo, o pulo do gato que traz o diferencial positivo para Quo Vadis, Aida?, é a criação de protagonistas fictícios para a dramaticidade da história ganhar um tom mais pessoal. Tradutora da ONU, trabalhando junto com os soldados holandeses, Aida é o coração e peça chave do filme, ela vê de perto a manobra dos sérvios se aproximando e teme um massacre. Aida é muito mais que uma professora que está servindo como tradutora, ela é esposa, com dois filhos jovens, e seu olhar exala a energia de quem, mesmo cansada, tem forças suficientes para fazer o possível e o impossível para proteger sua família.

Por conta da ambientação do longa, diálogos se tornam necessários para construção do roteiro, e não há como se esgueirar da agonia a cada nova conversa. São noites sem dormir por medo e preocupação e o ritmo do enredo não nos faz sentir o tempo passar. O único escape da dura realidade são os cigarros e outras drogas. Mas, infelizmente, a cena que foge a monotonia não funciona tão bem: o sonho chapada de Aida acabou sendo apenas desconexo do contexto por falta de desenvolvimento da trama, que volta a se manter fiel em sua dolorosa premissa.

Lutando para proteger sua família, Aida insiste para que seu marido seja testemunha das negociações entre holandeses e sérvios. O protagonismo feminino é indiscutível, a óptica constrói um sentimentalismo ainda maior em um drama brutal, vemos as esperanças se esvaindo e vivemos o longa através dos movimentos dela. É durante o encontro com Mladic que fica claro a armação de um grande plano genocida e o angustiante despreparo dos holandeses, que alarmantemente falham em proteger seus civis.

Cena de Quo Vadis, Aida?. Nela vemos dezenas de bósnios sentados no chão. Na frente a maioria são mulheres. Ao fundo, as pessoas da fotografia estão desfocadas.
Kathryne Bomberger lidera desde 2004 a Comissão Internacional de Pessoas Desaparecidas, identificando os mortos por meio de DNA (Foto: Condor Distribution)

Marco histórico na Bósnia, a tragédia deixa lembranças em muitos naturais do país, como Jasmila Zbanic, diretora de Quo Vadis, Aida? que fez o filme para seus conterrâneos. Ela, que já ganhou o Urso de Ouro por sua produção Em Segredo (2006), agora concorre a Melhor Filme Internacional. Além do Oscar, Quo Vadis, Aida? também marcou presença no BAFTA – termômetro britânico do tapete vermelho – presente nas categorias de Melhor Filme em Língua Não-Inglesa e Melhor Direção.

Não é a primeira vez que uma produção bósnia chega a premiação. Em 2002, o longa Terra de Ninguém fez o queridinho francês O Fabuloso Destino de Amélie Poulain comer poeira, levando a estatueta para o país. Esse ano, a pedra no caminho é o brilhante Druk – Mais uma Rodada, que além da categoria Internacional, garantiu uma vaga em Melhor Direção para Thomas Vinterberg. 

O casamento entre a direção de Jasmila Zbanic e a atuação de Jasna Djuricic é uma sucessão de acertos e merecia mais reconhecimento na premiação, no mínimo aumentando o número de mulheres no páreo de direção em 2021. E quando se trata de filme de guerra, diferente do insosso Greyhound – que concorre apenas em Melhor Som -, Quo Vadis, Aida? deixa o sabor amargo da revolta. O longa entra em sua mente e rouba seus pensamentos em fixação pelo roteiro.

Cena de Quo Vadis, Aida?. À direita temos Aida, uma mulher branca, de olhos claros e cabelo castanho na altura do ombro. Ela veste camisa azul claro. Em suas mãos estão um megafone nas cores branco e vermelho. À esquerda temos um homem branco, com cabelo raspado e de bigode. Ele veste roupa militar.
Com o crescimento do populismo, muitos tentam reescrever a história e negar o massacre; o filme é um grito forte de resistência na era da pós verdade (Foto: Condor Distribution)

Em tradução livre, o nome em latim do filme significa Para onde está indo, Aida?, e não poderia haver título mais fiel. Em meio a seu serviço, Aida nota o momento em que os soldados perdem o controle sobre o que fazer com a população e com os cidadãos, e começam a recuar na guerra. É desesperador ver toda a corrida da protagonista para defender sua família mas, no fim das contas, não ter poder nenhum, os homens já estavam sendo separados das mulheres e crianças, o massacre anunciado e o plano político sendo concluído.

Em um ano onde realmente aprendemos a valorizar e aplaudir profissionais da saúde, assistimos a montagem de pronto-socorro em meio a guerra. Mesmo sendo uma situação diferente de genocídios reais, é impossível não se identificar com diálogos sobre os planejamentos feitos para o futuro quando a tragédia terminar, e como estaria o fluxo da vida se tudo estivesse caminhando normalmente. Quo Vadis, Aida? dói em pontos diferentes.

A câmera, com um enquadramento sempre focado em seus personagens principais, traz um ar ainda mais rarefeito para a situação claustrofóbica, a produção é brutal sem derramar uma única gota de sangue. Há um corte temporal onde encontramos uma Aida envelhecida e enlutada, com a dor de não ter achado os corpos, uma aflição verdadeira da tragédia marcada pelos cadáveres das vítimas terem sido jogados em valas comuns e depois realocados para esconder as provas do crime. Nunca foi dito às famílias onde seus entes estão enterrados, e até os dias atuais se encontram restos mortais pela Bósnia.

A angústia de Quo Vadis, Aida? nos deixa sem respirar por longos minutos, que mais parecem horas. Um dos filmes mais pesados da temporada merece ser visto, digerido, pensado e repensado. O massacre de Srebrenica é considerado o pior da Europa, depois da Segunda Guerra Mundial. Os comandantes das forças sérvias foram condenados pelos crimes, e o ex-general Ratko Mladic está em prisão perpétua pelo genocídio. A Holanda também foi julgada como culpada parcial por não ter protegido seus civis. Os julgamentos aconteceram nos anos 2000, mostrando o quão frágil e recente é a história do país que ainda não pode sepultar de maneira digna seu povo.

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