A existência humana e a consciência da morte prevalecem nos 65 anos de O Sétimo Selo

Cena do filme O Sétimo Selo. Na imagem em preto e branco, vemos um homem jovem, loiro, de cabelos curtos, e magro. Ele está vestindo um tipo de armadura de cavaleiro, feita com anéis de metal e uma capa preta jogada nos ombros. Ele sorri enquanto olha para o indivíduo na frente dele, e segura uma peça de jogo de xadrez na mão direita. À sua frente está a figura personificada da morte, com pele pálida, luvas pretas de couro, e uma capa que cobre todo o seu corpo, inclusive a cabeça, deixando somente o rosto à mostra. Ela está pensativa, olhando para o tabuleiro de xadrez a sua frente, e tem o braço direito dobrado, com a mão próxima do rosto. No tabuleiro de xadrez, as peças do homem são brancas, e da morte, pretas. Tem uma manta na estrutura que mantém o tabuleiro em cima, e ambos estão sentados, um de frente para o outro. Eles estão no campo, ao ar livre, com uma carroça e um cavalo alguns metros atrás, e duas pessoas sentadas próximas a carroça. Está de dia.
A Morte onipresente espreita soberana em um país arruinado pela peste negra (Foto: MUBI)

Sabrina G. Ferreira

Um filme do qual podemos analisar os anseios, as dúvidas e os medos de uma sociedade passada para tentarmos aprender por meio deles: essa é a definição de O Sétimo Selo (no original, em suéco, Det sjunde inseglet; e no inglês, The Seventh Seal). Do diretor sueco Ingmar Bergman (Morangos Silvestres e Persona), o nome faz referência à passagem do livro bíblico Apocalipse em que Deus tem sete selos nas mãos, e a abertura de cada um deles representa um desastre para a humanidade, sendo o último o irreversível fim dos tempos. Trata-se de uma obra que incomoda o espectador desde seu lançamento em 1957, principalmente quando nos colocamos no lugar dos personagens e no meio caótico em que eles vivem. 

A história se passa na Europa durante a Idade Média, num período em que a peste negra assolou o mundo, e matou dezenas de milhares de pessoas, provocando uma das maiores baixas populacionais já existentes. Assim, somos apresentados ao protagonista Antonius Block (Max von Sydow), um cavaleiro que lutou nas Cruzadas e está voltando para a casa com seu amigo e companheiro de batalha, o escudeiro Squire Jöns (Gunnar Björnstrand).

Cena do filme O Sétimo Selo. Na imagem em preto e branco, vemos um homem jovem, de cabelos loiros, pele branca, olhando para a frente enquanto o braço direito está levantado, com a mão apoiada na parede. Ele está vestindo uma armadura feita de anéis de metal, e uma roupa preta em cima, cobrindo o tronco do corpo. Atrás dele tem uma grade de metal, com uma pessoa de aparência pálida atrás, olhando para o homem. Eles estão em ambiente fechado e escuro.
O Sétimo Selo impressiona pelos elementos simbólicos e analogias óbvias (Foto: MUBI)

Em um momento de descanso para ambos, a Morte (Bengt Ekerot), elemento central da história, incorporada em uma figura pálida de roupas escuras, aparece para Block para o informar que seus momentos finais haviam chegado. A fim de ganhar tempo, o cavaleiro lhe faz uma proposta: pede que joguem uma partida de xadrez; se ela vencesse, ele iria sem protelar, mas do contrário, ele ganharia a liberdade. Intrigada com o desafio, a Morte aceita, e os duelos de xadrez tornam-se frequentes ao longo da trama. Bergman faz aqui um paralelo entre o jogo e o conflito morte versus existência, como se Deus estivesse movendo suas peças, e por consequência, movimentando nossas vidas. 

O medo de monstros e outras criaturas sobrenaturais é frequentemente abordado na obra. Se hoje a tecnologia proporciona um mundo todo mapeado, no passado as pessoas não se “conheciam”, e para que houvesse contato entre elas, era necessário viagens a cavalo ou caminhar por meses para chegar em poucas centenas de quilômetros, enfrentando o frio, a neve e a chuva. Por isso, os aldeões em geral não tinham outra escolha senão acreditar no que lhes era contado, e, dessa forma, a ameaça do desconhecido pairava, preconizando seus maiores temores. Foi assim que surgiram grande parte das criaturas assustadoras do imaginário medieval, nesse misto de mitologia, moralidade religiosa e ignorância, criando uma “coleção” de monstros que contribuíram na maneira da sociedade de pensar e ver o outro – e também os preconceitos.

“Falam de profecias e outros horrores.

[…] Ontem foram vistos mais de um sol no céu”.

– Jöns

Cena do filme O Sétimo Selo. Na imagem em preto e branco, vemos à direita um homem jovem sentado, de cabelos loiros, pele branca, olhando para a frente. Ele está vestindo uma armadura feita com anéis de metal, e uma roupa preta cobrindo o tronco do corpo. Está com as mãos cruzadas. Ao lado dele está uma moça loira, jovem, também sentada, de cabelos presos em forma de coque, vestindo um vestido leve de verão. Ela está olhando para ele e está sorrindo, enquanto segura uma tigela na mão direita. Atrás da moça há um homem jovem, de cabelos castanhos curtos, segurando um tipo de violão antigo, enquanto sorri, olhando para o lado esquerdo. Atrás dele tem uma carroça coberta com lona. Eles estão em ambiente externo, no campo, e está de dia.
O Sétimo Selo foi exibido na mostra Cannes Classics em 2018 em uma homenagem ao centenário de Ingmar Bergman (Foto: MUBI)

Enquanto Block e Jöns seguem por trilhas isoladas, eles param em um vilarejo local, e encontram uma família de artistas circenses, composta por Mia (Bibi Andersson) e Jof (Nils Poppe). O casal é religioso, e se configura no estigma de uma santa família feliz que acabou de gerar um primogênito. Jof tem constantes visões espirituais, mas não consegue convencer Mia da veracidade delas. Há também o núcleo de personagens secundários, composto pelo colega de espetáculo do casal, Jonas Skat (Erik Strandmark), que representa uma figura mais profana e cômica, um homem cuja esposa o traiu (posteriormente essa mulher adúltera também junta-se a eles), e uma camponesa que estava prestes a ser violentada, é salva por Jöns, e coagida a seguir com ele. 

Além destes, há também pessoas hostis e gananciosas, como é o caso de Raval (Bertil Anderberg), que comete roubos (principalmente dos bens de pessoas mortas em decorrência da peste negra), e intimida Jof em uma taverna, fazendo-o imitar um urso, caso contrário, seria queimado vivo. O detalhe é que essa cena ocorre em meio a várias pessoas, também presentes no estabelecimento, que assistem o “espetáculo”, rindo e incitando a violência. O diretor/roteirista vê neles a justificativa para uma sociedade ser castigada pela peste, e mais tarde, todos os indivíduos, pecadores e não pecadores, inocentes e culpados, se encontrarão. 

Entretanto, apesar da dificuldade em nos colocarmos no lugar dessas pessoas em vista das diferenças existentes em uma sociedade regida pelo medo e por dogmas impostos pela Igreja Católica, é possível adquirir simpatia por elas. É justamente isso que Bergman demonstra querer, expondo o quão imperfeitas essas pessoas são, mas ainda assim, não deixam de ser só indivíduos comuns, que reagem de formas diferentes em situações de pânico. Existe um conflito entre Luz e Razão na Idade Média que dissocia os Homens como bons ou maus, sem cogitar na dualidade que há em cada um deles. Esse conflito permanece até hoje, já que a vida está ligada à morte, e sempre haverá questionamentos, como: “Deus existe?”, ou “O que é esse vazio interior que sentimos?”.

Cena do filme O Sétimo Selo. Na imagem em preto e branco, vemos uma mulher jovem à esquerda jovem. Ela veste uma roupa de duas cores, com o corpo totalmente coberto, inclusive a cabeça, mantendo somente o rosto para fora, e usando uma corrente de metal no pescoço, com um pingente redondo. Ela tem pele clara, é loira, e está maquiada de modo exagerado, com dois círculos de blush nas bochechas. Ela está olhando para frente. Um pouco atrás dela há um homem jovem, de pele clara, maquiado de forma exagerada, com o rosto pintado de branco. Ele está olhando para a frente, com aparência de espanto. Ele está vestindo uma roupa de duas cores também, cobrindo o corpo todo, inclusive a cabeça, mantendo só o rosto à mostra. Sobre sua cabeça, colado ao capuz, há dois chifres pontiagudos de madeira. Atrás deles há uma cortina com alguns desenhos estampados. Está de dia.
O casal de atores Mia e Jof representam a pureza e a inocência (Foto: MUBI)

Em outra passagem, há fortes críticas ao catolicismo. O que de início se tratava de uma alegre apresentação dos artistas Jof, Mia e Skat para divertir o público de um vilarejo, logo se contrasta com uma procissão de padres seguidos por fiéis carregando cruzes, se autoflagelando, e cantando um hino em meio a choros e lamentações. É a alegria e a diversão que nos faz esquecer os problemas da vida, e em seguida, o sofrimento na busca pelo perdão divino para o castigo da peste bubônica. Essa é, sem dúvida, a cena mais impactante do filme. 

Sob o mesmo ponto de vista, é importante citar a conduta de Block, que questionava a fé e, consequentemente, a Igreja Católica. Tal atitude se mostra contrária à sociedade medieval, e à Igreja que intervinha, difundia ideias de forma dogmática e temerosa, fazendo as pessoas crerem na vida eterna e em Deus como única salvação. No entanto, próximo ao desfecho, ao deparar-se com a Morte silenciosa à sua frente, Block conclui que, de fato, não há como fugir, e se ajoelha, pedindo aos céus por uma salvação. Isso reforça como o ser humano, em momentos de desespero, sempre recorre à fé.

Cena do filme O Sétimo Selo. Na imagem em preto e branco, vemos uma mulher branca à esquerda. Ela tem cabelos escuros, amarrados em forma de coque, e só é possível ver a cabeça e o pescoço dela. Ela olha para a frente. Ao lado dela, um pouco atrás, há outra mulher jovem, de pele e olhos claros e cabelos loiros escuros, lisos, soltos sobre os ombros. Ela veste uma roupa escura e também está olhando para a frente, enquanto lágrimas escorrem pelo seu rosto. Um pouco atrás dela, no lado direito, está um homem. Ele tem pele clara, cabelos bem curtos raspados e barba por fazer. Ele veste uma roupa escura, tem uma cicatriz no rosto, próximo ao olho esquerdo, que vai até os cabelos. Ele também está olhando para a frente. Atrás dessas três pessoas há um homem jovem, de cabelos loiros e curtos, vestindo uma roupa preta e uma armadura de cavaleiro, feita com anéis de metal. Ele está olhando para cima, com os braços levantados e as mãos à frente do rosto, em forma de prece. Ao lado dele há uma janela com uma luz solar forte entrando no cômodo. Eles estão em ambiente interno, e está de dia.
A obra de Bergman expõe o desejo humano de driblar a morte por meio da imortalidade, mesmo quando essa é o mais terrível dos destinos (Foto: MUBI)

Próximo ao fim de O Sétimo Selo, Block reencontra sua esposa, e enquanto o casal está reunido na sala com outros personagens, a Morte adentra a casa. Sem possibilidade de escapar, todos aceitam o fim passivamente, menos o protagonista, que se entrega à uma última oração desesperada, em busca de respostas da existência de um Deus, ou de tranquilidade, em vista do destino inevitável; mas não obtém nada além do silêncio.

O mais surpreendente nesse desfecho é sabermos que a família de artistas, Mia, Jof e seu filho pequeno, foram os únicos que conseguiram driblar a Morte. Jof, quase sempre apalermado e de mente fantasiosa, na verdade era o único ali, com exceção de Block, que conseguiu ver a figura da Morte e fugir a tempo à noite, em meio à tempestade, salvando sua família de um final trágico. Para o diretor, eles representam a importância da Arte, incorporada na pura e ingênua família que vive por ela e para levá-la às pessoas. Fica aqui a reflexão de que talvez nossa única esperança seja mesmo a Arte como cura e salvação dos homens.

Cena do filme O Sétimo Selo. Na imagem em preto e branco, vemos sete pessoas andando em fila, unidas com as mãos. Eles estão um pouco distantes, sendo difícil de identificar detalhes. Em frente, há um indivíduo com capa e capuz preto, segurando uma foice em uma das mão. De mão dada com ele há outra pessoa, aparentemente um homem, com roupas escuras. Ao lado há uma mulher de vestido claro, também de mãos dadas com outro homem, loiro, de roupas aparentemente escuras. Ao lado dele, de mãos dadas com ele, há outro homem de costas, usando uma roupa de frio, e de mãos dadas com uma mulher, de roupa escura e capuz sobre a cabeça. Ao lado dela (também de mão dada com ela) há um homem de costas para ela, segurando algo que parece ser um instrumento musical em uma das mãos. Ele está de costas para o grupo. Eles estão em ambiente externo, no campo, com somente uma grama baixa aparecendo sobre seus pés, e um céu claro. Está de dia.
Não há preferidos, pois, no fim, a dança da morte chega para todos (Foto: MUBI)

No final, eis que a Morte anda de mãos dadas, conduzindo Block e todos que estavam ali presentes em sua casa, em fila única, realizando uma dança da morte. Esse conceito foi aplicado pela Igreja na Idade Média em pinturas de capelas para recordar a população: “Lembre-se de que vai morrer”. Assim, todos saberiam que deveriam obedecer aos dogmas impostos pela Igreja para alcançar a redenção eterna. 

Por fim, é importante reforçar que O Sétimo Selo, vencedor do Prêmio Especial do Júri no Festival de Cannes em 1957, mesmo após 65 anos de seu lançamento no seu país de origem, a Suécia, continua sendo atual na sua defesa da Arte como antídoto à intolerância religiosa em tempos apocalípticos – sejam os da peste negra, de guerra, ou de pandemia, como vivemos no presente. A mensagem deixada por Bergman, com toda sua arte, é que devemos sempre ter esperança, ou um vislumbre de salvação, e isso é o estar aqui, vivendo. Disso, temos conhecimento, já do “Além”, nada sabemos.

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