Persona: 55 anos da obra-prima de Ingmar Bergman

Cena do filme Persona apresenta uma imagem em branco e preto de um menino de costas com a mão direita erguida sobre a foto de uma mulher branca, que toma conta de todo o plano.
Vanguardista, Ingmar Bergman inicia sua obra com sobreposições de imagens (Foto: AB Svensk Filmindustri)

Gabriel Gatti

A palavra persona, de origem grega, é usada para designar um papel social, como uma profissão, ou um personagem, no qual o indivíduo passa a interpretar uma realidade que não é a sua. No campo da representação, é possível empregá-la para designar uma máscara. Nesse contexto de transposição de personalidade, somos apresentados a Elisabet e Alma, duas mulheres que se fundem ao longo da trama dirigida por Ingmar Bergman em 1966.

Durante a produção de Persona, Ingmar Bergman já era um diretor aclamado pelos longas O Sétimo Selo e Morangos Silvestres, porém Persona surgiu em um momento diferenciado da vida do cineasta. Bergman estava se recuperando de uma grave pneumonia e colocou todo seu esforço na produção do roteiro, sem pensar se o resultado refletiria em um filme comercial. Após nove semanas, com o produto pronto, o diretor tinha em mãos o que viria a ser considerado a mais primorosa de suas realizações

Cena do filme Persona apresenta uma imagem em branco e preto de uma enfermeira branca de cabelos curtos loiros debruçada sobre uma paciente. Esta é uma mulher branca de cabelos longos, que está deitada em uma cama de hospital.
A narrativa se inicia de forma trivial e guia os telespectadores para as transformações lentas pelas quais as personagens sofrem ao longo da trama (Foto: AB Svensk Filmindustri)

Essa obra singular se inicia com um prelúdio experimental, em que somos apresentados a diversas cenas avulsas sobrepostas, como nos movimentos de vanguarda modernistas. Essa aclimatação ocorre para introduzir os telespectadores na vida de Elisabet (Liv Ullmann), uma atriz que deixa de falar após uma apresentação catastrófica, sem que houvesse nenhum motivo físico ou neurológico para isso. Desse modo, ela passa a viver internada em um hospital, onde recebe cuidados diários da enfermeira Alma (Bibi Andersson). 

Após um longo período de internação, a médica da atriz sugere que a paciente passe um tempo em descanso em sua casa de praia, sob os cuidados da enfermeira. A partir dessa situação, Elisabet e Alma viajam até o local, onde passam a conviver desprovidas de interação com o mundo exterior. Nesse contexto, a cuidadora vê sua paciente emudecida como uma confidente fiel. Aos poucos, os monólogos vão tornando as mulheres ainda mais próximas. Esse contraste perturbador entre o silêncio de uma, sobreposto com as confissões da outra vai formando um elo entre ambas, até suas personas fundirem em uma só

Cena do filme Persona apresenta uma imagem em branco e preto de duas mulheres brancas vestindo uma roupa. Uma delas tem cabelos curtos e loiros e está segurando uma caneca, a outra tem uma faixa que prende todo o cabelo para trás enquanto fuma um cigarro.
Com o tempo, o silêncio doentio de Elisabet passa a atormentar Alma (Foto: AB Svensk Filmindustri)

Essa história abstrata apresentada por Bergan torna o filme tão complexo e aberto a interpretações. Segundo o escritor Peter Cowie, “tudo o que se disser sobre Persona pode ser contradito, o oposto também será verdade”. Mas para que o trabalho resultasse nessa obra prima do Cinema, houve grande contribuição por parte da atuação das protagonistas. Liv Ullmann e Bibi Andersson envolvem os telespectadores no clima dualista e visceral explorado ao longo da película. Além disso, a direção de fotografia de Sven Nykvist foi genial para complementar o que estava proposto no roteiro. A todo momento, Elisabet e Alma são registradas sob a luz sem que ambas estejam iluminadas simultaneamente, dando destaque apenas para uma parte da persona que viria a se fundir, como se estivessem incompletas.

Essa obra tão complexa, que acabou sendo traduzida no Brasil para o lamentável título Quando Duas Mulheres Pecam, aborda uma questão psicológica muito singular, mas outros pontos da capacidade cognitiva humana foram amplamente trabalhados na cinematografia de Bergan. Liv Ullmann, que atuou pela primeira vez com o diretor em Persona, também protagonizou outros longas com temática emocional, como Face a Face, Sonata de Outono e o brilhante Cenas de um Casamento. Todos os filmes exploram as questões problemáticas das relações sociais, sejam elas entre familiares ou entre conhecidos.

Cena do filme Persona apresenta uma imagem em branco e preto de duas mulheres brancas.
De forma sútil e conceitual, ambas as personagens se fundem em uma só (Foto: AB Svensk Filmindustri)

Recheado de longas com viés psicológico, Ingmar Bergman construiu uma carreira brilhante no Cinema, com mais de 60 filmes lançados, repletos de análises comportamentais e psicológicas, tendo ele mesmo escrito a maioria dos roteiros. Além disso, o diretor também se destacou pelo seu trabalho no Teatro, resultando em quase 170 peças. Todas suas produções sempre refletiram sua personalidade, o que torna as obras ainda mais singulares e intimistas.

Com um filme extremamente sensorial que transformou a cinematografia de Bergman, Persona conta uma história com o uso do silêncio. Mesmo 55 anos depois de seu lançamento, nenhum outro diretor conseguiu trabalhar uma obra com tamanha profundidade. Mais importante do que a narrativa apresentada ao longo da película, é a experiência pela qual o cineasta nos insere. Com um uso genial da iluminação e a atuação hipnotizante de Ullmann e Andersson, Persona é uma das produções mais interessantes e essenciais da história do Cinema.

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