Macbeth: ambição, sangue e fúria

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Eli Vagner Rodrigues

“A vida é uma história, contada por um idiota, cheia de som e fúria, sem sentido algum.” Macbeth, Cena V do Ato V.

A “peça amaldiçoada” de Shakespeare, lançada nos cinemas em 2015, chega ao Netflix como uma opção para quem deseja revisitar a tragédia mais sangrenta do bardo de Stratford-upon-Avon.  

Macbeth do diretor Justin Kurzel (Assassins Creed (2016), Snowtown (2011), The Turning (2013)), roteiro de Jacob Koskoff e Michael Lesslie, é mais uma adaptação para o cinema da peça inspirada nas “Crônicas da Inglaterra, Escócia e Irlanda”.

Chamada de “The Scottish Play” no mundo treatral anglófono, por causa de uma superstição que desaconselhava a pronunciar o nome da obra em voz alta, Macbeth é uma das peças recordistas em número de adaptações para cinema e TV, perdendo apenas para Hamlet. Kurzel apresenta o que, tecnicamente, é uma obrigação do cinema, a saber, a possibilidade de recriar obras de arte com imagens, cenografia e tratamento técnico superiores às produções anteriores. A versão de Kurzel tem méritos cenográficos, de locação, de figurino e sonorização que proporcionam uma experiência atualizada, satisfatória, o que é pouco pela expectativa que este tipo de produção cria.

Uma peça clássica sempre impõe limitações criativas, mas alguns diretores conseguiram imprimir identidade artística própria em suas adaptações. A obra de Kurzel não peca tecnicamente, mas também não excede em adaptações, outro perigo que, na maioria das vezes leva a recriações equivocadas.

Certamente o aspecto que atraiu a atenção do público e da crítica nesta nova versão foi o protagonismo do ator Michael Fassbender. No entanto, Fassbender não vai além de um Macbeth objetivo e previsível em sua atuação. As possibilidades dramáticas que se acentuam na segunda parte da tragédia, com os componentes da culpa, da loucura e da desesperada afirmação do poder pela violência, não são exploradas pelo ator como poderiam. A atuação da coadjuvante Marion Cotlard (Lady Macbeth) também fica aquém de personagem tão importante para a “escola da dramaturgia feminina”. O resultado é somente mais um Macbeth. O filme não apresenta uma característica marcante como um traço de originalidade de diretor ou dos atores, características que destacam, por exemplo, as versões de Roman Polanski e Orson Welles.

As inúmeras filmagens de Macbeth ao longo da história do cinema mostram grandes momentos e fracassos anunciados. Dentre as mais famosas destacam-se “Trono Manchado de Sangue” de Akira Kurosawa que adapta a peça de Shakespeare para o contexto do Japão medieval. A, já citada, adaptação de Roman Polanski de 1971, conta com as ótimas atuações de John Finch e Francesca Annis e figura como uma das melhores filmagens da obra.

A versão de Orson Welles foi cercada problemas. O diretor concordou em filmar Macbeth em três semanas ao custo de 700 000 dólares. O controverso diretor e ator se comprometeria ainda a arcar com custos adicionais de seu próprio bolso. Welles fez diversas adaptações mas o resultado, mesmo com baixo orçamento, não é uma tragédia, apesar do fracasso comercial.

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Orson Welles como Macbeth

Uma montagem que merece menção foi a realizada pela ”The Royal Shakespeare  Company” e traz Ian Mckeelen, hoje mais conhecido pelo papel de Gandalf em “O senhor dos Anéis”, e Judi Dench como Lady Macbeth. A experiência desta geração privilegiada de atores ingleses, Ian Mckeelen, Peter O’toole e Sir Lawrence Olivier com as montagens de várias peças de Shakespeare é memorável e se tornou referência para as novas produções.

A obra

Macbeth é a mais curta peça de Shakespeare, seu enredo é bastante simples, mas alguns detalhes escondem pontos chaves para sua interpretação. Ao findar heroica batalha, Macbeth recebe de três bruxas a predição de que seria rei e seu companheiro Banquo não teria a mesma sorte mas geraria reis. Imediatamente arrebatado pelo vaticínio envia a sua mulher a notícia. O rei, reconhecendo a vitória de Macbeth nomeia-o Barão de Glamis e anuncia que irá até sua propriedade comemorar a nomeação. Inicia-se a trama do casal para matar o rei para assumir o poder supremo. Lady Macbeth incita o marido relutante em consumar o assassinato. Em sua ânsia de poder questiona a masculinidade do marido afim de convencê-lo. Cometido o crime e simulada a culpa dos guardas do rei, Macbeth assume o trono. Inicia-se a segunda parte da obra. Nesta fase afloram a culpa e a loucura do casal. Macbeth tem alucinações e se entrega à uma luta violenta pela manutenção do poder, sua mulher enlouquece e, aparentemente, suicida-se. A loucura assassina do tirano se concentra na linha sucessória de seus oponentes. Ao final é vencido por Macduff e tem sua cabeça decepada.

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O que faz de Macbeth, uma grande obra da literatura e do teatro é a síntese de elementos essenciais a um texto clássico. Em Macbeth os anseios humanos mais básicos, e suas respectivas frustrações, estão presentes. A relação sempre dúbia com o sobrenatural, a dúvida sobre o lado sombrio das predições e dos oráculos, a ânsia pelo poder e a usurpação violenta como elementos da política, a culpa como mecanismo da loucura e do delírio. Estes elementos colocam Macbeth ao lado de Rei Lear, Hamlet e Otelo como as maiores tragédias do teatro. Em Macbeth, mesmo as relações de poder mais elementares são expostas em sua crueza mais realista. As relações de poder, perpassam as formas e os objetos do desejo humano. Em Macbeth dois núcleos temáticos se desenvolvem, a trama sobre o poder e a justiça, sua legitimidade diante da usurpação do trono e uma trama interna, característica da psicologia de um casamento, um tecido de influência, desejo e loucura do casal assassino. Shakespeare explora, na mesma trama, as duas esferas das relações de poder, o público e o privado.   

No núcleo da intimidade, a influência de Lady Macbeth sobre a consumação do ato de traição é fundamental na peça. Lady Macbeth exige o ato do assassinato do rei como um feito de coragem de seu marido, em sua ânsia não considera a transgressão do ato. O problema ético envolvido no regicídio é secundário em relação ao desejo.

Venham espíritos

Que instilam os pensamentos assassinos,

dessexuai-me,

Cumulem-me da cabeça aos pés

Com a mais horrível crueldade!

Possuam os meus seios

E façam amargo o meu leite

(Ato I, Cena V)

Depois do ato consumado, Lady Macbeth não suporta as consequências, mas até alcançar seu desejo atua como um demônio a tentar Macbeth, imagem que alguns críticos associam ao mito do pecado original e a figura de Eva, interpretação tão inatual quanto dispensável. A ideia de ter o marido na mais alta posição de poder cega totalmente a futura rainha para o aspecto moral. Macbeth é hesitante, Lady Macbeth é pura determinação.  

A controversa figura de Lady Macbeth e sua complexidade dramática foi objeto de célebres estudos dos quais se destacam os de Freud, Harold Bloom e A. C. Bradley.  

Para Freud, Lady Macbeth, ao se “dessexuar” em função de seus intentos homicidas, esquece-se que a sua feminilidade teria um papel-chave na perpetuação de sua linhagem, o “de preservar a finalidade de sua ambição, lançada através de um crime” escreve Freud em “Alguns Tipos de Caráter Encontrados no Trabalho Psicanalítico.” Obras Completas (Vol. XIV, pp.349-377). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1916).

Neste estudo Freud sustenta que da mesma forma em que as pessoas ficam neuróticas devido à frustração de seus desejos libidinais, existem casos de pessoas que adoecem quando um desejo muito ansiado se realiza. A intervenção da repressão moral, de um superego regulador, frustra a fruição do objeto alcançado. Em Lady Macbeth, como também em seu marido, a loucura e o delírio tomam conta da consciência após a transgressão fatal. A mulher, (esta é uma interpretação de Freud), volta a sua origem de fragilidade e sucumbe ao suicídio, o homem afirma sua loucura na violência desmedida.

Uma abordagem histórico-literária ajuda esclarecer alguns aspectos envolvidos na interpretação de Freud. A peça teria sido escrita por encomenda para o rei Jaime I, que unificou as coroas da Escócia e Inglaterra, justamente devido à infertilidade da rainha Elisabeth. A ascensão de Jaime I foi como uma demonstração da maldição da esterilidade e das bênçãos da geração contínua e a ação de Macbeth baseia-se nesse mesmo contraste.

A questão da fertilidade se torna fundamental para a interpretação freudiana. A ação violenta, não esperada de uma natureza feminina, seria gerada por sua esterilidade, outra condição não-natural. É preciso notar que Shakespeare mobiliza concepções de masculinidade e feminilidade, assim como de resto, de moral e honra, diferentes do que concebemos hoje.

A punição pela transgressão moral seria a própria esterilidade que torna sem sentido a ambição motivadora do ato do assassinato do rei. O poder não pode ser perpetuado pelo casal regicida, uma vez que eles não têm filhos e a mulher se “assexuou” por exigência de seu espírito assassino.

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O ato de transgressão institui a ilegitimidade do poder. E é em torno deste tema que gira a segunda parte da peça. Um poder ilegítimo não se sustenta. Um poder originado na violência, terá um futuro violento. Macbeth usurpou o trono, seu ato fundamental instala um estado de Hybris. Esta condição seria provocada por tudo aquilo que, nos atos humanos passa da medida (moral, costume, cultura), caracterizando um descomedimento, um excesso do que é permitido aos humanos. Essa transgressão nasce de uma confiança excessiva, um orgulho exagerado, uma presunção, uma arrogância ou insolência contra os deuses e a sociedade. Toda esta soberba nasce dos desejos. A arrogância de um homem, para os gregos, acaba sempre sendo punida. A Hybris representa, ainda, um desprezo pelos direitos dos outros e principalmente à falta de controle sobre os próprios impulsos. A situação é provocada por um sentimento violento inspirado pelas paixões humanas. O que aqui se denomina como paixões humanas é determinado, em última instância, pela ação dos desejos.

Ao final, a obra aponta para o fato de que toda a ética está fundamentada no cálculo do que se deseja. O ensinamento trágico é evidentemente moral e afirma uma concepção fundamental de todo código de conduta civilizatório: algumas coisas que, inevitavelmente desejamos, devemos temer executá-las. Em Macbeth, Shakespeare não foge a esta lógica e aponta claramente para o maior perigo que assombra o homem, seu próprio desejo.

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