Estante do Persona – Janeiro de 2022

Arte retangular de fundo lilás. Ao centro há uma estante branca com três prateleiras. A primeira prateleira é dividida ao meio, a segunda prateleira é dividida em três e a terceira prateleira é dividida em três. Na parte superior lê-se em preto 'estante'. na primeira prateleira lê-se em preto 'do persona', à direita nessa prateleira está a logo do Persona. Na segunda prateleira, ao meio, está a capa do livro “pessoas normais”. Na terceira prateleira, à direita, está o troféu com a logo do persona. Na parte inferior lê-se em branco 'janeiro de 2022'
O Estante de Persona abre 2022 ao lado de Sally Rooney e sua dupla de Pessoas normais (Foto: Reprodução/Arte: Henrique Marinhos/Texto de Abertura: Vitor Evangelista)

“Quem é que quer flores depois de morto?”

– J.D. Salinger

Começando 2022 com o pé direito, a primeira leitura do nosso Clube do Livro se materializou nos lamentos e nos sonhos que a irlandesa Sally Rooney colapsou e esmigalhou em Pessoas normais. Sucesso de crítica, público e aclamado pela voracidade dos acontecimentos e sentimentos escritos, a obra ganhou uma adaptação em formato de minissérie, pelo Hulu, alavancando a carreira de suas estrelas Daisy Edgar-Jones e Paul Mescal.

Sem muito acontecendo no mundo literário nesse começo de ciclo, o Clube do Livro do Persona discutiu as similaridades e as normalidades do livro com o mundo real. Encontrando poesia na ordinariedade que Roony imprime em seus personagens, relacionáveis à maioria dos jovens adultos que saíram da escola bambeando e chegaram à universidade perdidos da cabeça.

Pela visão de Marianne e Connell, nossa leitura foi guiada, com corações pulsantes doloridos e uma porção de opiniões contundentes sobre a conduta dos protagonistas. O resultado dessa experiência você encontra abaixo, com breves comentários sobre o Livro do Mês (que, assim como nossa citação de abertura, bebe da fonte criativa de J.D. Salinger), além das imperdíveis Dicas do Mês, remexendo os cantos da Literatura e chegando com tudo, para quem procura turbinar a meta de leitura para o ano que chegou.

Livro do Mês

Capa do livro Pessoas normais, da autora Sally Rooney. A capa é verde, tem o desenho de duas pessoas deitadas abraçadas dentro de uma lata de sardinha aberta. No topo da capa, lemos em preto: "O fenômeno literário da década" - The Guardian. Abaixo disso, em fonte branca e grande, lemos PESSOAS NORMAIS, e abaixo da imagem da lata de sardinha, lemos SALLY ROONEY.
Lançado em 2019 por aqui, a tradução para o português ficou a cargo de Débora Landsberg (Foto: Companhias das Letras)

Sally Rooney – Pessoas normais (264 páginas, Companhia das Letras)

Muito mais do que uma história de amor que ultrapassa espaço e tempo, Pessoas normais não se dobra a qualquer limitação que o destino possa vir a causar. Quando conhecemos Connell e Marianne, eles são estudantes do Ensino Médio, deslocados, cada um à sua maneira. Lá, era o garoto quem tomava a dianteira, fazendo a jovem de gato e sapato. Quando crescem e se aventuram pela faculdade, é Marianne o sujeito mandante do relacionamento, mesmo que ela insista em negar essa posição de poder.

Dessa forma, por vezes sutil, por vezes desbocada, Sally Rooney navega entre conversas mortas, sentimentos afogados e uma série de pequenos eventos que, em efeito dominó, não dão paz aos namorados imperfeitos da trama. Com inspirações no Ulysses de James Joyce e em Franny & Zooey de J.D. Salinger, a autora irlandesa não se preocupa em preencher lacunas temporais, dando forma a suas pessoas ordinárias nesse exato lugar de mundanidade. Connell e Marianne são identificáveis pois são avulsos, previsíveis, nada centrados e terrivelmente normais, como qualquer leitor que se sinta na mesma posição deles. Às vezes, a simplicidade se revela a morada mais agradável de todas. 


Dicas do Mês

Capa do livro Bartleby e companhia, do escritor Enrique Vila-Matas. Na imagem, há bem ao centro a fotografia de um enorme livro aberto, com as folhas do lado esquerdo dobradas de forma volumosa, pois são milhares de páginas. Ao fundo do local onde está esse livro aberto há um fundo branco. Fora do pequeno quadrado branco que está a fotografia do livro, está, na parte superior, escrito Bartleby e companhia em fonte de cor preta. Na parte direita, está escrito Companhia das Letras. Na parte inferior, abaixo da fotografia do livro, está escrito Enrique Vila-Matas em fonte de cor preta. Com exceção do quadrado central onde está a fotografia do livro aberto, todo o fundo é composto pela cor vermelha.
Com tradução de Josely Vianna Baptista e Maria Carolina de Araújo, Bartleby e companhia é uma explosão de originalidade, guiada pelo espanhol Enrique Vila-Matas (Foto: Companhia das Letras)

Enrique Vila-Matas – Bartleby e companhia (184 páginas, Companhia das Letras)

Romance? Coletânea de contos? Texto jornalístico? Ensaios? Crítica literária? Bartleby e companhia não segue nenhum gênero ou caminho absoluto, mas mistura todos eles. Borrando a linha que separa ficção de não-ficção, o escritor espanhol Enrique Vila-Matas cria uma obra única, na qual a literatura torna-se personagem através de um mosaico de obras e autores, esboçados e analisados quase sempre de forma irônica. Lançado em 2000, Bartleby y compañía (no título original) é dividido por 86 capítulos curtos – mais uma pequena introdução não numerada –, e parte da premissa de ser um livro do ‘não’. Vila-Matas escreve: “Todos nós conhecemos os bartlebys, seres em que habita uma profunda negação do mundo”. 

O título é uma referência direta a outro Bartleby – Bartleby, o escrivão, de Herman Melville –, cuja fama consiste justamente em sua negação da vida, sendo um exímio personagem do ‘não’. Desde o início de Bartleby e companhia, porém, o narrador-protagonista de Vila-Matas nega a escrita (de forma paradoxal, opõe-se contra ela escrevendo), criando um catálogo de escritores que optaram pelo silêncio – J.D. Salinger, Robert Walser, Franz Kafka, entre outros –, e tem como intuito escrever um diário, composto por diversas notas de rodapé, que serão a estrutura do livro, embora possamos classificá-las como capítulos. É interessante vislumbrar na narrativa de Vila-Matas esse mosaico perfeito, no qual a compreensão se dá mesmo que os inícios dessas notas (ou capítulos) sejam continuações de um texto inexistente, imaginário. 

Essa ironia fina do autor mistura-se, também, com a graça de alguns contos do argentino Jorge Luis Borges – personalidade que não escapa dos pastiches literários do escritor espanhol –, e não perde em nada no quesito imaginação e desenvoltura no jogo literário. A bem da verdade, Enrique Vila-Matas é um dos melhores autores contemporâneos quando se trata de jogo com a literatura, captando como ninguém a crise pós-moderna em que se supõe que não existem mais ideias originais; por esta razão, o livro é repleto de referências. Trazida ao Brasil através da finada editora Cosac & Naify, a obra de Enrique Vila-Matas está atualmente sendo reeditada pela Companhia das Letras; Bartleby e companhia foi reeditado no começo de 2021. – Bruno Andrade


Capa do livro Um Teto Todo Seu. O fundo da capa é uma parede rosa e, na parte debaixo, o batente branco e o chão de uma sala. Na parte superior central da capa, vemos uma linha com as palavras “Virginia Woolf” em branco e “Um teto todo seu” em preto. Logo abaixo, no centro, vemos um espelho com moldura branca de flores e um abajur com a luminária decorada em estampas marrons, laranjas e brancas. Abaixo, do lado esquerdo, vemos uma mesa de cabeceira de madeira clara, com um relógio, um vaso com flores rosadas, um caderno preto e uma xícara branca e laranja apoiadas nele. As palavras “Posfácio”, em preto, e “Noemi Jaffe”, em branco, estão dispostas logo acima dele. Ao centro da capa, vemos uma poltrona de madeira escura, com o assento laranja claro e uma almofada listrada marrom, laranja e branca. Do lado direito, vemos o cabo do abajur, de madeira clara. No chão, vemos um tapete marrom escuro cobrindo todo o piso e duas almofadas estampadas jogadas no chão, ao pé da poltrona. No canto inferior direito, vemos a palavra “TORDESILHAS” em uma letra estilizada em branco, escrita na vertical.
“Eu me arriscaria a supor que Anônimo, que escreveu tantos poemas sem assiná-los, foi muitas vezes uma mulher” (Foto: Tordesilhas)

Virginia Woolf – Um teto todo seu (192 páginas, Tordesilhas)

Um dos trabalhos mais reconhecidos de Virginia Woolf, Um teto todo seu vira e mexe ganha novas edições. O livro foi publicado em 1929 e, quase um século depois, se mantém pertinente e atemporal nas reflexões acerca das condições sociais da mulher e sua influência na Literatura, levantadas pela autora sob um alter-ego ficcional. A obra se baseia em palestras de Woolf em faculdades na Inglaterra. No formato de um ensaio, e como se discursasse para uma plateia, a personagem Mary se questiona sobre qual o lugar ocupado pela mulher, sua situação e qual o contexto para isso. 

Com a maestria de sempre, Virginia Woolf não se prende a uma só linha de pensamento, e seu fluxo engaja o leitor nas mais diversas situações. Ela nos conduz à época de Shakespeare, para se questionar o porquê da hipotética irmã do dramaturgo, tão talentosa quanto ele, não ter feito o mesmo sucesso; para as universidades e núcleos em comum dos escritores, em que as autoras são a minoria e vistas como uma anomalia; e até dentro de casa, para lembrar do motivo pelo qual elas já começam em desvantagem, em primeiro lugar. A resposta? Elas necessitam de um teto todo seu. 

Com foco na Literatura de ficção, Um teto todo seu explora a condição social a qual as mulheres são renegadas, o de tarefas domésticas, submissão e falta de controle sobre a própria produção, que as impõe limitações – ou de escrever, ou de publicar, ou de serem reconhecidas por seus trabalhos. Fato é: não se trata das autoras produzirem menos porque não têm capacidade, mas sim porque estão incumbidas de outras obrigações, forçadas a elas. Como a famosa citação de Virginia Woolf ecoa, “uma mulher precisa ter dinheiro e um teto todo seu, um espaço próprio, se quiser escrever ficção.Vitória Lopes Gomez


Capa do livro Conversas entre amigos. A capa é cor verde-água e mostra o desenho de duas mulheres brancas de costas, fumando. A primeira tem cabelos compridos escuros e soltos, está de costas, usa uma blusa bege e segura um cigarro aceso na mão esquerda. A outra está de costas, mas com a cabeça virada para a esquerda, tem cabelos presos em um rabo de cavalo e usa óculos escuros, também segurando um cigarro. Ao topo da imagem lemos uma frase em branco, com a assinatura do The Sunday Times em preto. Ao centro, lemos em branco Conversas entre amigos, e em preto Sally Rooney. No meio e na extremidade esquerda, está o selo da editora Alfaguara, em branco.
Publicado no Brasil em 2017 pela Alfaguara, o primeiro livro de Sally Rooney também foi traduzido por Débora Landsberg (Foto: Editora Alfaguara)

Sally Rooney – Conversas entre amigos (264 páginas, Alfaguara)

Quando decide escrever fazendo uso da primeira pessoa, a irlandesa dona do livro do mês de janeiro revela as vísceras de sua Literatura. Em Conversations with Friends, seu romance de estreia, Rooney investiga as fervorosas relações de Frances e Bobby, duas adultas de 21 anos que namoraram no passado, mas hoje são boas e melhores amigas. Entre as rotinas de estudos e da vida social, a dupla vai de encontro a um casal mais velho, e faíscas surgem. A mão de Rooney, de forma sagaz, guia seu leitor, adentrando temas de traição e paixão, mas sem sentenciar seus personagens. 

Enquanto Bobby cultiva uma relação de admiração e fascínio por Melissa, Frances se encanta por Nick, um ator de trinta anos que acaba dando bola para ela. A partir dessa premissa, Sally Rooney nos mostra que tudo é possível, não importa o que seja. No meio termo entre o sagaz e o virtuoso, o livro pode não alcançar o patamar de honestidade dos outros romances da autora, mas em meio aos amores, temores e desejos ele detém charme o suficiente. Em breve, chega ao Hulu uma adaptação em formato de minissérie, com Jemima Kirke e Joe Alwyn no elenco.  – Vitor Evangelista


Capa do livro Tudo sobre o amor, de bell hooks. A imagem tem fundo laranja-avermelhado vibrante e o nome da autora aparece em letras garrafais grandes e roxas, preenchendo os primeiros dois terços da capa, de um extremo ao outro, levemente inclinado na diagonal. Na linha inferior, está o nome do livro, na mesma estilização anterior, mas com a fonte um pouco menor e colorido em amarelo claro. Embaixo do título do livro, na mesma estilização porém em tamanho ainda menor, está escrito “novas perspectivas”, em branco.
“No momento em que escolhemos amar, começamos a nos mover contra a dominação, contra a opressão. No momento em que escolhemos amar, começamos a nos mover em direção à liberdade, a agir de formas que libertam a nós e aos outros.” (Foto: Editora Elefante)

bell hooks – Tudo sobre o amor (272 páginas, Elefante)

Ah, se Connell e Marianne pudessem ter acesso aos estudos de bell hooks sobre o amor… A história de Pessoas normais seria bem diferente e o trabalho de Sally Rooney teria outro rumo. No lançamento brasileiro mais recente da autora, que há pouco descansou de sua vasta e revolucionária colaboração para o entendimento do nosso mundo, o tema mais amplo da humanidade é analisado sobre cada um de seus aspectos principais, através do olhar crítico e sábio da pessoa mais qualificada para o fazê-lo. Longe de se restringir ao amor como manifestação meramente romântica, idealizada ou sentimental, Tudo sobre o amor compreende a vastidão de seu tema de forma revolucionária – assim como tudo o que bell hooks faz.

Ao longo de 13 capítulos, a estudiosa transcende qualquer leitura já realizada sobre o amor, palavra que remete a algo tão subjetivo e sempre está presente na experiência humana, respeitando a sua complexidade mas tratando-o de forma prática – que em momento algum deixa de ser profunda. É difícil explicar uma leitura dessa magnitude, cujo tema se desdobra ainda em mais dois livros, que juntos, formam a Trilogia do Amor. Formação obrigatória para todo e qualquer ser humano que se relaciona com outros seres humanos, Tudo sobre o amor é uma das maiores joias que bell hooks nos deixou. E assim como ela defende o entendimento do amor como ação, o livro é mais uma de suas formas de transformar o mundo em que vivemos. – Raquel Dutra


Capa do livro Maus. Ela possui um fundo cinza, com a presença de um círculo branco com o símbolo de uma suástica que tem, ao centro, o desenho de um gato, com traços que remetem aos de Adolf Hitler. Na parte inferior, um pouco à frente desse círculo, há o desenho de dois ratos: o da esquerda vestindo um casaco azul, e o da direita um casaco amarelo. Na parte superior, está escrito “História completa” em fonte na cor amarela e, abaixo, está escrito “Maus” em fonte grande na cor vermelha.
Apesar do enorme sucesso, Art Spiegelman já recusou várias ofertas para transformar a obra em filme, afirmando que a narrativa é melhor servida como um livro (e ele não mentiu) [Foto: Companhia das Letras]
Art Spiegelman – Maus (296 páginas, Companhia das Letras)

Maus é considerado um dos grandes clássicos contemporâneos das histórias em quadrinhos, já tendo angariado o Prêmio Pulitzer de Literatura, em 1992, sendo a primeira graphic novel a cumprir esse feito. Dividido em duas partes, com a primeira lançada em 1986 e a segunda em 1991, a obra de Art Spiegelman retrata episódios do Holocausto vivenciados por seu pai, Vladek Spiegelman, judeu polonês que sobreviveu ao campo de concentração de Auschwitz. Para dar luz aos seus relatos, o desenhista aposta em representações, ilustrando os judeus como ratos, os nazistas como gatos, os poloneses não-judeus como porcos e os americanos como cachorros. Mesmo com esse simbólico aspecto animalesco configurado aos componentes da trama, não é possível desassociar a frieza de seus atos cruelmente humanos.

A narrativa acompanha as declarações de Vladek sobre esse período, as constantes fugas dele e de sua esposa Anja, as tristes despedidas e, por fim, os difíceis dias no campo de concentração. Junto a isso, mostra também os atritos familiares entre pai e filho, que evidenciam as marcas deixadas por esse capítulo de sua vida. Apesar do enorme peso carregado pelos acontecimentos, Spiegelman não cede a qualquer apelo emocional para conduzir a obra, retratando a dureza nua e crua daquela realidade vivida por milhões de pessoas. Maus é um livro não apenas sobre as atrocidades ocorridas durante o Holocausto, mas, principalmente, das dores e cicatrizes carregadas por todos aqueles que têm páginas da memória de sua família rasgadas por uma das maiores tragédias da história da humanidade. Cicatrizes essas complemente impassíveis de serem minimizadas, ou sequer discutidas em qualquer conversa de bar. – Vitória Silva

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