Manuel Bandeira não engole sapos diante do academicismo literário

Quatro anos antes da Semana de 1922, o poeta brasileiro já repensava a Literatura nacional por meio de características modernistas

Pintura da artista brasileira Tarsila do Amaral. Imagem retangular horizontal. Na parte superior, vemos um céu azulado e alguns cactos verdes. Uma espécie de caverna ocupa quase toda a imagem. Por meio dessa cavidade rochosa, observamos um fundo bege, uma espécie de lago e, mais à direita, um sapo verde. A pintura inteira apresenta características cubistas.
Publicado no livro Carnaval, de 1919, o poema Os Sapos, de Manuel Bandeira, antecipou as características da Literatura criada pela primeira geração modernista brasileira; na imagem, vemos a pintura O Sapo, de 1928, feita por Tarsila do Amaral (Foto: Romulo Fialdini)

Eduardo Rota Hilário

Entre Baleias e burrinhos pedreses, há um bom tempo que a Literatura brasileira dá vida aos bichos mais singulares do cenário criativo nacional. Sendo alguns mais conhecidos do que outros, em uma possível lista das mais memoráveis dessas criaturas, os sapos de Manuel Bandeira com certeza garantiriam uma posição e reconhecimento bastante nobres e justos. Criados pelo artista recifense em poema homônimo, de 1918, Os Sapos só foram publicados em 1919, no livro Carnaval – mas foi na Semana de Arte Moderna de 1922 que conquistaram de fato uma grande projeção.

Bandeira não esteve no evento, é verdade. Mas isso não impediu que, no dia 15 de fevereiro, durante a segunda das três noites da Semana, o poeta Ronald de Carvalho declamasse aquele que, com segurança, pode ser considerado a “declaração de princípios dos modernistas”, especialmente nas artes literárias. Recebidos com gritos e vaias, Os Sapos expunham como elemento central uma crítica bem-humorada aos poetas parnasianos – demasiadamente apegados a uma Arte mais tradicional -, dando espaço à tão desejada – e, hoje em dia, super conhecida, mas pouco questionada – ruptura com o academicismo regrado e rígido. 

Em aspectos formais, o que se observa de início no poema é uma apropriação minuciosa da excessiva preocupação estética parnasiana. Formado por redondilhas menores, isto é, por versos de cinco sílabas poéticas, e rimas principalmente alternadas, o texto de Bandeira pouco se afasta, nesse sentido, da tradição que antecede o Modernismo. A isso, soma-se a evidente elaboração sonora do poema, que busca imitar o coaxar de sapos em versos como “-“Meu pai foi à guerra!”/-“Não foi!” -“Foi!” -“Não foi!” – provavelmente, os mais famosos de toda a obra. 

Cena do filme O Poeta do Castelo. Fotografia retangular horizontal em preto e branco. À esquerda, Manuel Bandeira encontra-se deitado, com uma máquina de datilografar no colo e alguns livros ao seu redor. Ele é um homem de roupa listrada, óculos e está concentrado. À direita, podemos ver uma estante com livros.
Manuel Bandeira em cena do filme O Poeta do Castelo, de 1959 (Foto: Saga Filmes/Instituto Moreira Salles)

A métrica regular, a sonoridade e as rimas de Os Sapos, no entanto, têm uma decisiva razão de ser. Ao observarmos o conteúdo de todas as estrofes, percebemos que a apropriação de Bandeira nada mais é do que um surpreendente recurso irônico. Desse modo, as características fundamentais da primeira geração modernista já começavam a ganhar forma em um trabalho de 1918, quatro anos antes da existência de uma Semana de Arte Moderna. A ironia, o humor e a paródia, por exemplo, guiam Os Sapos do início ao fim, estando presentes em maior ou menor grau de sutileza.

Resgatando Olavo Bilac, um dos maiores símbolos do Parnasianismo brasileiro, torna-se inevitável retomar o poema Profissão de Fé: obra geralmente lembrada por estabelecer uma famosa comparação entre os trabalhos do ourives e do poeta. Ou, como diz o próprio autor, “Invejo o ourives quando escrevo:/Imito o amor/Com que ele, em ouro, o alto relevo/Faz de uma flor.” Sem esse repertório, torna-se bem difícil – se não impossível – compreender a paródia construída ao longo dos versos de Os Sapos.     

Brada em um assomo/O sapo-tanoeiro:/– “A grande arte é como/Lavor de joalheiro.”, escreve Manuel Bandeira. Desde o princípio, é o sapo-tanoeiro quem dita as regras da suposta ‘boa poesia’. Olhando somente para esses versos, a crítica em forma de paródia é nítida, mas pode parecer também implícita. Retornando à terceira estrofe, no entanto, concluímos que Bandeira não poupou palavras ao apontar que o sapo-tanoeiro é ninguém menos que o “parnasiano aguado”. Ao parodiar a Profissão de Fé parnasiana, podemos muito bem supor que esse anfíbio é, na verdade, o próprio Bilac

Página do livro Poesias, de Olavo Bilac. Fotografia quadrada, com fundo branco. A página ocupa quase toda a imagem. Trata-se de um papel amarelado, no qual lemos, de cima para baixo, Olavo Bilac, Poesias, Nona Edição Revista. Abaixo, em um retângulo de bordas pretas, lemos Panóplias, Via Láctea, Sarças de Fogo, Alma Inquieta, As Viagens, O Caçador de Esmeraldas e Tarde. Mais embaixo, lemos Livraria Francisco Alves, Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, 1922. Todas as palavras estão em letras pretas.
Olavo Bilac é um dos nomes mais lembrados do Parnasianismo brasileiro (Foto: Harpya Colecionáveis & Antiguidades)

Se essa rejeição ao Parnasianismo, visto como uma Arte tradicional e conservadora, é uma das características mais lembradas do Modernismo, a ironia e o humor deveriam vir logo em seguida. Nas falas do sapo-tanoeiro, esses dois elementos beiram até mesmo certo grau de deboche: “Vede como primo/Em comer os hiatos!/Que arte! E nunca rimo/Os termos cognatos.” Nessa visão, a única habilidade dos ‘antigos’ poetas era valorizar com cautela o lado formal de um texto. O fazer poético era, portanto, extremamente limitado.

Com o tempo, o que se percebe é que Os Sapos são uma obra totalmente metalinguística. Isso se dá, porém, de forma inusitada. Critica-se a todo momento o diferencial dos parnasianos. Ou seja, o poema acaba abordando a maneira como ele mesmo não deveria ser. Trata-se, então, de uma metalinguagem também irônica. É, enfim, o grito da poesia brasileira contra as “fôrmas” que, em determinados pontos de vista, aprisionam e tornam vazias as expressões singulares de cada escritor.

Além disso, a obra em análise pode ser considerada ainda um exemplo daquilo que se convencionou chamar de poema-piada. O Senhor Feudal, de Oswald de Andrade, talvez demonstre melhor esse tipo de criação consideravelmente comum na primeira geração do Modernismo: “Se Pedro Segundo/Vier aqui/Com história/Eu boto ele na cadeia”. De qualquer modo, os versos de Os Sapos também carregam muito humor, motivo pelo qual o poema pode – mas não tem a obrigação de – ser inserido na classificação mencionada.

Pintura da artista brasileira Tarsila do Amaral. Imagem retangular vertical, com fundo acinzentado. Oswald ocupa quase todo o quadro. Ele é um homem de cabelos relativamente curtos, olha para a esquerda e veste terno, camisa e gravata.
Retrato de Oswald de Andrade, obra de 1923, da pintora Tarsila do Amaral (Foto: Romulo Fialdini)

Certo é que, desmistificando uma provável imagem endeusada de seus antecessores, Manuel Bandeira retrata os parnasianos como seres marginalizados, utilizando, para tanto, a figura geralmente rejeitada dos sapos. Destrói-se, assim, a noção exagerada de que “Não há mais poesia,/Mas há artes poéticas…””, e aponta-se, enfim, para uma realidade histórica completamente distinta daquilo que era transformado em poesia. Em alguma medida, trata-se do Modernismo inconformado com tantos poetas em desacordo com o turbilhão multifatorial daquela época.

Mas nem todo sapo era ruim ou desprezível. No fundo do brejo fértil, nasceu o cururu, herói do Modernismo. Brincadeiras à parte, a figura do sapo-cururu, no fim do poema, pode ser lida com tranquilidade como uma caracterização dos futuros modernistas. Envolvido por uma canção popular e, portanto, por uma linguagem mais próxima do cotidiano, o sapo-cururu é quem destoa da “grita” parnasiana. Aliás, o coitado mal sabia que o futuro era mais próximo de si mesmo do que daqueles outros seres ‘quadrados’ – ou será que sabia?

Sendo essa uma dúvida eterna, é melhor que nos preocupemos com outras analogias. Isso porque Os Sapos misturam rimas ricas e pobres, e há quem leia as primeiras como uma metáfora para o Parnasianismo, enquanto as segundas representariam os destoantes modernistas. Já em aspectos mais formais, o uso de aspas e travessões ao longo de cada ‘coaxar poético’ sem dúvida remete aos diálogos comumente utilizados em um gênero muito amado pelo Modernismo, mãe eterna de nomes como Macunaíma e Memórias Sentimentais de João Miramar: a prosa.

Pôster do filme Macunaíma. Imagem retangular vertical, com fundo azul. Várias personagens do longa-metragem ocupam todo o cartaz. No centro, uma das versões do personagem Macunaíma olha para cima, de olhos fechados, abre os braços e exclama “Ai, que preguiça!” em um balão branco, típico de histórias em quadrinhos. Uma personagem indígena o abraça. Embaixo de Macunaíma, um homem exclama, por meio de outro balão branco, “Tá gostoso, coração, tá?”. Cobrindo as partes íntimas do protagonista, há uma faixa branca na qual se lê Macunaíma em letras verdes. Na parte inferior do pôster, lemos os créditos do filme.
Pôster do filme Macunaíma, de 1969, baseado no livro de Mário de Andrade e dirigido por Joaquim Pedro de Andrade (Foto: Difilm/Filmes do Sêrro/Memórias da Ditadura)

De fato, são muitas as questões que podem ser levantadas a partir de um único poema. Há defesas recentes, por exemplo, de que o Modernismo e o Parnasianismo não são ensinados da melhor maneira possível nas escolas brasileiras, sendo limitados a movimentos culturais opostos. Por outro lado, poderíamos imaginar que, por mais que as Artes não tenham a obrigação de reproduzir a realidade vigente, espera-se que elas reflitam minimamente um espírito de época – e, talvez, pela perda gradual disso, o Parnasianismo estivesse realmente ultrapassado quando os modernistas ganharam força.

Praticamente inquestionável, no entanto, é a percepção de que, 100 anos após ser declamado, o poema Os Sapos continua atual quando queremos abordar o ainda existente apego a diferentes regras para definir o que é bom ou não dentro do ramo cultural. É possível inclusive suspeitar que, nos dias de hoje, muitos atos dos modernistas causariam verdadeiros escândalos nesta nação. Para os inconformados, restariam as famosas palavras de Caetano Veloso, discursadas em 1968: “Vocês não estão entendendo nada, nada, nada, absolutamente nada.

No fim, este texto não seria tão completo sem a leitura de excelentes análises e comentários, como os escritos por Rebeca Fuks, Cleonice Machado e Emmanuel Santiago – todos disponíveis em hiperlinks ao longo dos parágrafos deste artigo. Em acréscimo, mesmo que esta nova reflexão não traga tantas novidades, buscar entender o que, de certa forma, antecipou a Semana de 1922, além das características essenciais à primeira geração modernista já presentes em Os Sapos, serão sempre duas atitudes muito válidas. E, no meu caso, é uma forma bem particular de rememorar experiências vividas ao lado de uma grande mestra.

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