DNA e todas as outras coisas que compõem uma identidade

Cena do filme DNA. A imagem é retangular a mostra duas mulheres, dos ombros para cima. É de dia e elas estão numa estação de trem, que aparece no fundo desfocado. As mulheres se olham, uma de frente para a outra e de lado para a imagem, segurando os rostos uma da outra. Ambas vestem camisas jeans e têm os cabelos castanhos levemente ondulados. Elas sorriem.
Singelo e significativo, DNA é um dos destaques do Festival do Rio 2021 (UniFrance)

Raquel Dutra

O décimo primeiro dia do Festival do Rio 2021 ficou por conta da direção e protagonismo da cineasta francesa Maïwenn e seu DNA. Vindo da Seleção Oficial do Festival de Cannes 2020, o filme contempla aspectos da vida de sua criadora no centro de uma família que carrega a ascendência argelina de um amado avô, exilado no colonizador europeu e inflamado de saudade da sua terra natal. Pelo toque diretora, o drama se desenrola com vislumbres políticos e risos sagazes, indo em direção à uma obra rica em camadas que pulsa um desejo de compreensão de origem, herança, laços e identidade.

O caráter reflexivo de DNA não poderia partir de um contexto mais caótico, e é aqui que o trabalho da também roteirista Maïwenn brilha na obra que traz muitas das suas vivências pessoais para uma tela de Cinema. Depois de nos apresentar ao filme através de momentos singelos em que a família visita o avô Emir Fellah (Omar Marwan) na casa de repouso, a linguagem da cineasta nos comunica algumas coisas. Entre elas, o que se compreende é que aquela definitivamente não é uma família perfeita, e que o elo que os une não continuará ali por muito tempo.

Cena do filme DNA. A imagem mostra parte de uma família ao redor de um senhor numa sala de casa de repouso. A imagem os mostra de lado, e eles estão olhando para a frente, posando para uma foto. No lado esquerdo da imagem está uma mulher de meia idade sentada numa cadeira verde pistache com as mãos sobre os joelhos. Ela tem os cabelos castanhos curtos ondulados e usa uma bata branca com detalhes roxos, sorrindo para a frente. Ao lado dela, está um senhor de idade, sentado numa cadeira amarela. Ele tem barba e cabelos brancos, usa um óculos, camisa listrada azul, uma gravata rosa e um cardigã vermelho escuro. O senhor segura uma fotografia antiga em cima do colo, que mostra o rosto de um homem jovem em preto e branco. Atrás dele, abraçando-o por trás, está um jovem de cabelos longos escuros lisos presos num rabo de cavalo baixo. O jovem veste uma blusa branca e também sorri para frente, e atrás dele existem fuxicos de tecido coloridos decorando a parede. Ao lado do senhor, existe uma mulher, também de meia idade, apoiando a cabeça sobre os seus ombros. Ela veste uma camisa azul e tem os cabelos loiros escuros.
Quando DNA foi anunciado como parte da seleção do Festival de Cannes 2020, que acabou cancelado por conta da pandemia de covid-19, o filme criou grandes expectativas era visto como um candidato forte ao prêmio da Palma de Ouro (Foto: UniFrance)

Quando o coração do filme para de bater, a família calorosa e disfuncional precisa seguir em frente com seus problemas ao mesmo tempo em que dizem adeus à figura mais amada de suas vidas. Então, DNA se mostra como um filme efusivo e conflituoso. Os sentimentos estão à flor da pele, e em meio a carga emotiva do luto de uma pessoa tão amada, tudo se transforma em uma questão e os problemas parecem gritar que não podem mais ser ignorados.

Tudo isso poderia se transformar num belo melodrama, mas além de DNA não ser um filme sobre luto, ele também não se concentra no núcleo amplo da família e não procura uma soberba seriedade. Primeiro, a obra recusa o ideal de elegância e a polidez que são esperadas diante da morte para dar ainda mais efeito na sua narrativa familiar. Existe muito respeito e dor naquele momento, mas também existem muitos outros sentimentos desencadeados pelo falecimento do avô que procuram vazão naquelas personalidades excêntricas.

No vai-e-vem emocional causado pelos múltiplos tons do filme, a real premissa e protagonismo de DNA não demora a se revelar. O olhar certeiro da neta Neige guarda um conflito de identidade – debaixo da lente castanha que esconde aquele azul europeu ou por trás das vestimentas imitando o estilo de Amy Winehouse -, e diante da ausência do avô, que a criou junto do amor, saudade e identificação que conservava pela sua pátria, essa questão precisa ser resolvida.

Cena do filme DNA. A imagem mostra uma família dentro de uma sala de atendimento de serviços funerários. Três mulheres estão sentadas ao redor de uma mesa, discutindo a escolha de um tom de madeira num catálogo que está sobre a mesa, na frente delas. Duas delas são mulheres de meia idade, posicionadas no lado esquerdo da imagem e ao centro, e a outra é jovem, no lado direito da imagem. Atrás deles, existem mais dois homens, dois de pé, que seguem a discussão, e um sentado, que apenas observa.
Como atriz, o trabalho mais conhecido de Maïwenn é na ficção científica de 1997 O Quinto Elemento (Foto: UniFrance)

Então, a personagem de Maïwenn captura toda a nossa empatia assim como toda atenção do filme. O luto pelo avô cria naquela mulher uma obsessão pela sua origem, que vai desde testes duvidosos sobre a composição do seu DNA – e uma decepção engraçada com os resultados que encontra – até uma teimosia para conseguir sua cidadania argelina com documentos insuficientes. A resolução de seu arco é simples, assim como a premissa do filme, mas rica nas subjetividades e nos significados dos eventos que a acompanham. E quando o sorriso genuíno de Neige brota em meio ao fervor do país que ela foi ensinada a amar, fica claro que DNA não precisa de mais nada.

É fato que o roteiro e direção de Maïwenn favorecem a personagem de Neige antes de qualquer outra, mas o elenco de ouro de DNA não fica para trás do ritmo do filme. Louis Garrel rouba todas as cenas em que participa como François, o amigo mais próximo da nossa protagonista, em cenas irônicas que carregam uma naturalidade inacreditável. Da mesma forma, o Kevin de Dylan Robert nos diverte em meio aos olhos cheios de lágrimas com as cenas de cuidado com o avô na casa de repouso. 

A mãe singular de Neige vivida por Fanny Ardant não só brilha no filme como também rouba as atenções no velório do pai, ao aparecer para o evento visivelmente abalada. Considerando a narrativa de DNA, Carolline ainda protagoniza uma das cenas mais importantes e significativas do filme, que marca o movimento da obra de adentrar cada vez mais a perspectiva da personagem de Maïwenn, quando na cerimônia de velório de Emir, o discurso da neta é bruscamente interrompida por um surto da mãe. 

Imagem do poster do filme DNA. A imagem mostra a protagonista Neige, interpretada pela atriz Maïwenn, no meio de uma multidão, olhando para cima. Ela encara diretamente a câmera e sorri, com as mãos juntas em sinal de prece, e apenas ela está focada. A personagem de Maïwenn tem cabelos longos e lisos num tom de castanho médio e usa um vestido florido de fundo verde e mangas curtas.
Outra obra notável na curta porém cultuada filmografia da cineasta é Polisse (2011), que ganhou o Prêmio do Júri de Cannes daquele ano [Foto: UniFrance]
Os contornos autobiográficos de DNA criam um filme que é, acima de tudo, constrangedor de verdadeiro. A trajetória de altos e baixos de Neige em busca da sua própria identidade e dos vínculos criados com a história de vida de seu avô são carregados de beleza graças à sinceridade que exprimem. Afinal, na experiência humana moderna sempre existe um momento em que as nossas raízes chamam pela nossa atenção. E a saída que a história de Maïwenn encontra é olhar para dentro de si mesma, encarar tudo o que existe lá e concluir: “vocês são parte do meu DNA

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