Em 1952, o cultuado cineasta japonês Akira Kurosawa (Ran) lançou ao mundo Ikiru. 70 anos depois, o pouco conhecido diretor sul-africano Oliver Hermanus (O Rio Sem Fim) se reuniu ao vencedor do prêmio Nobel de Literatura Kazuo Ishiguro, autor de best-sellers como Vestígios do Dia e Não Me Abandone Jamais, para prestar tributo ao longa original através de um remake chamado Living. O resultado dessa empreitada é sentido nas expressivas indicações do filme ao Oscar 2023 de Melhor Roteiro Adaptado para o escritor e Melhor Ator para Bill Nighy (Simplesmente Amor, Piratas do Caribe) no papel principal.
95ª edição do Oscar pode acender a fagulha de um movimento de retorno já orquestrado
Guilherme Veiga
O início da história do Cinema, na exibição de A Chegada do Trem na Estação em 1895, foi caracterizado pela fuga do público da sala, em função da novidade daquela tecnologia aliada com a perspectiva de filmagem do trem. A partir daí, iniciava-se uma jornada duradoura e, a princípio, inabalável. A Arte de fazer filmes superou as duas grandes guerras, inclusive servindo como ferramenta de propaganda, a grande depressão, a Guerra Fria, as ditaduras do século XX e até mesmo a greve de roteiristas de 2008. Sempre de portas abertas e salas lotadas.
Uma narrativa a qual ouvimos desde os filmes de velho oeste é a de que lutar contra a Morte é algo impossível. Em Gato de Botas 2: O Último Pedido vemos mais uma faceta de um herói, que era considerado imortal e invencível, cair ao inevitável fim: o medo de sua história acabar.
Após 12 anos desde sua primeira produção, o Gato de Botas volta a ativa com mais uma aventura solo para as telas de cinema. A nova obra abre com uma estrela cadente que caiu na Terra e, segundo lendas, realizaria o desejo de quem a encontrasse. A narrativa se torna importante ao decorrer da história, pois é a motivação de sete personagens diferentes: o próprio Gato de Botas, Kitty Pata Mansa, Cachinhos Dourados e os Três Ursos, e João Trombeta.
Moby-Dick, ou The Whale, é um famoso romance publicado em 1851 pelo escritor estadunidense Herman Melville, que conta a famosa saga do capitão Ahab atrás da baleia que arrancou sua perna. A semelhança com A Baleia, um dos filmes mais comentados do Oscar 2023, não é apenas no nome. A nova obra do diretor Darren Aronofskynos leva em uma triste trajetória de um outro protagonista atrás de algo que vai além da forma física: uma redenção para si mesmo.
A simbiose entre a ficção com a representação da vida animal, não humana, poucas vezes se destitui da essência do bicho Homo sapiens. É como se não existisse, em uma contaminação da prática artística a um obrigatório humanismo, uma forma de evocação de sentimento e empatia senão por uma figura antropomorfa, ou então, uma figura humanizada por sua trajetória ou pelo próprio espectador. Daí nascem as fábulas e desenhos infantis com animais falantes e impasses morais, ou até mesmo A Grande Testemunha(1966), de Robert Bresson. Pela sua câmera minimalista, Au Hasard Balthazar, título original da obra, acompanha a tortuosa trajetória — análoga até mesmo à renúncia de Jesus Cristo — da vida de um burro; implicando em seu caminho as brutais relações de poder, classe, gênero, mas, acima de tudo, entre os humanos e animais.
Longe dos grandes números de bilheteria e do glamour do tapete vermelho, os documentários compartilham o modo divino do Cinema de contar a vida. Aqui, o retrato é através da própria realidade. Neles, sem os artifícios da ficção, o desafio se torna envolver com a apresentação de uma verdade nua e crua – ou pelo menos, da verdade de quem a conta, já que a imparcialidade de um interlocutor é apenas sua, e não absoluta. Em Vulcões: A Tragédia de Katia e Maurice Krafft, porém, a História é tecida de acordo com as fotografias e filmagens da câmera e dos arquivos de Katia e Maurice Krafft, vulcanólogos franceses pioneiros no trabalho com vulcões.
Causeway, longa da A24 indicada ao Oscar de 2023, traduz-se como ‘ponte’ para o português. Essa ponte, tanto em significado material quanto metafórico, representa uma contradição que assombra perpetuamente seus personagens: símbolo do elo entre pessoas, fonte de experiências ternas carregadas por toda a vida, ao passo que subordinado ao inevitável erro, catalisador de traumas inomináveis e fardos que, da mesma forma, serão lembrados para sempre. Ao mergulhar sob a relação desengonçada de dois indivíduos que, embora quebrados, acham conforto na companhia um do outro, Passagem, como foi nomeado no Brasil, imerge no micro para resgatar a raíz e o valor inerente ao afeto humano.
Na busca incessante em produzir uma animação que consiga competir com outros grandes estúdios já consolidados nesse mercado, como a Disney e a Universal, a Netflix recorreu à pessoa certa: Chris Williams. O currículo do diretor está longe de ser fraco e o cineasta tem seu nome em algumas das produções mais aclamadas dos anos 2000 – Bolt, o Supercão, Mulan, Detona Ralph e A Nova Onda do Imperador são alguns exemplos. Nessa nova empreitada, fica claro que o diretor e roteirista sabe o que está fazendo e isso se confirma em seu novo trabalho, A Fera do Mar.
A trajetória de retomada dos eventos presenciais consolidou-se em 2022. Na recuperação do pós-pandemia da covid-19 – que não nos deixou, mas, em um alívio, permitiu o relaxamento de algumas medidas de proteção -, o Cinema viu seus ávidos fãs retornarem às salas de forma irrestrita. Desde o Oscar até a 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, os eventos da indústria cinematográfica internacional e brasileira também abraçaram a possibilidade da realização totalmente presencial, e deram alento àqueles que encontram conforto na pipoca quentinha e nas subidas rumo às poltronas aveludadas.
Apenas no primeiro semestre do ano passado, o número de pessoas que compareceu aos cinemas presencialmente foi maior do que o contabilizado em 2021 inteiro, segundo levantamento da Agência Nacional do Cinema (Ancine). Apesar do retorno seguir lento e gradual, com expectativa de voltar a níveis normais e continuar a crescer em 2023, o restabelecimento do hábito também se refletiu no Melhores Filmes de 2022. Das 84 produções citadas no tradicional ranking anual do Persona, que reúne membros da Editoria e colaboradores, 42 estrearam ou passaram pelos circuitos brasileiros. Após um ano em que os streamings dominaram os grandes lançamentos, o cenário volta a se reequilibrar.
Diferentemente do que aconteceu com lançamentos anteriores, a presença opressiva de grandes empresas, como Marvel e Disney, foi obrigada a dividir sua programação com produções mais diversas. Apesar de Batman, Pantera Negra: Wakanda Para Sempre e Doutor Estranho no Multiverso da Loucuraconseguirem suas menções, foi o independente Aftersunque não saiu de cartaz (até o momento desta publicação), ultrapassando três meses nos cinemas nacionais.O sensível primeiro longa-metragem da diretora irlandesa Charlotte Wells aborda uma relação entre pai e filha, e chegou ao Brasil pela 46ª Mostra de SP.
Os gêneros das produções também refletiram diversidade. Os filmes de super-heróis tiveram sua vez e os de aventura também – Avatar: O Caminho da Águae Gato de Botas 2: O Último Pedido receberam boas indicações -, mas foram as produções de Terror que marcaram 2022. Com alguns ganhando grandes lançamentos no Cinema, como foi o caso de Pânico 5 e O Telefone Preto, e outros não surpreendentemente deixados de lado, como X – A Marca da Morte, Aterrorizante 2, Pearl, Até os ossos e Morte Morte Morte, as obras de gênero mereceram 15 nomeações como Melhores do Ano.
Elevando o número em relação ao ano passado, as produções dirigidas ou co-dirigidas por mulheres alcançaram a marca de 20 indicações – menos de ¼ do total. Já nas obras nacionais, a quantidade foi ainda mais negativa: dos 84 filmes citados, apenas 6 eram brasileiros, com destaques como Carvão, Regra 34, Eduardo e Mônica e A Mãe. Ao todo, foram citadas obras de 17 diferentes idiomas e nacionalidades.
E falando em nomeações, 22 títulos indicados ao Oscar2023também apareceram no ranking. Da categoria de Melhor Filme, que inclui apenas uma mulher indicada, apenas Entre Mulherese Triângulo da Tristezanão foram mencionados aqui. Os Fabelmans, Elvis, Top Gun: Mavericke Os Banshees de Inisherin receberam múltiplas indicações. No Melhores Filmes de 2022 do Persona, você confere todas as obras destacadas pela nossa Editoria e colaboradores.
Em 25 de Agosto de 1987, morreu Pixote. Fernando Ramos da Silva tinha 19 anos, era casado e pai de uma filha pequena quando foi morto por policiais militares, após ter supostamente assaltado uma empresa em Piraporinha, na região de São Bernardo do Campo. A família viveu para contestar a versão dos agentes, que foram apenas demitidos, mas nunca condenados.
Anos antes, em 26 de Setembro de 1980, Fernando estava alcançando fama e reconhecimento pelo seu desempenho no papel que dá título a Pixote, a Lei do Mais fraco, de Hector Babenco (Carandiru, 2003). O longa, que abriu a Mostra Cinema é Direito do Persona em parceria com o Sesc Bauru na quinta-feira, dia 2 de Março, não poderia ter se misturado à realidade de forma mais trágica, pois o que aconteceu com o intérprete de seu protagonista pouco se difere do descaso do Estado com a vulnerabilidade social denunciada pelos realizadores.