As Mortes de Dick Johnson: o Cinema ressuscita

Fotografia em paisagem com fundo preto. Ao centro está Dick Johnson, o protagonista do documentário As Mortes de Dick Johnson. Dick é um homem branco de 86 anos, com cabelos castanhos na parte superior da cabeça e brancos nas laterais. Ele veste uma camisa azul bebê e uma jaqueta marrom acinzentada. Ele olha para câmera e sorri, segurando as mãos da diretora e filha, Kirsten Johnson, que o abraça por trás. Kirsten é uma mulher branca de cabelos na altura do ombro e castanhos. Ela abraça o pai à frente, de olhos fechados e cabeça inclinada sobre o ombro do pai. Ela veste um vestido de mangas compridas, com estampas floridas em vermelho e azul.
Indicado ao Emmy 2021, o documentário original da Netflix, As Mortes de Dick Johnson, é uma carta de amor da diretora Kirsten Johnson ao pai, Dick (Foto: Netflix)

Ayra Mori

2020 foi um ano frutífero para os retratos a respeito da velhice. Vimos desde o drama da relação conturbada entre pai e filha no premiado Meu Pai (The Father) ao representante brasileiro a tentar indicação no Oscar 2021, Babenco – Alguém Tem que Ouvir o Coração e Dizer: Parou. E entre os destaques da temporada, o indicado a três categorias no Emmy 2021, As Mortes de Dick Johnson (Dick Johnson Is Dead), não passou em branco.

Dirigido pela documentarista Kirsten Johnson, o documentário reflete sobre a efemeridade da vida em seus curtos 89 minutos. “Nasce o Sol, e não dura mais que um dia” – trecho do célebre poema de Gregório de Matos –, traduz perfeitamente a abordagem breve, simples e carregada de emoção proposta pela diretora. O pontapé inicial do longa partiu da criação de cenários fictícios no qual o pai de Kirsten, Dick, morre. Para isso, ambos celebram juntos os últimos anos de vida de Dick, num retrato que busca, com muita delicadeza, meios de enfrentar o luto através do amor pelo Cinema.

Cena em paisagem do documentário. Ao centro está Dick caído no chão ao ser atingido por um ar condicionado que caiu do céu. Dick veste uma camisa azul bebê e calça caqui, com cinto marrom. É possível ver manchas de sangue no asfalto.
Essa festa virou um enterro: cena de uma das mortes de Dick (Foto: Netflix)

Protagonista do longa, Dick Johnson é um psiquiatra aposentado de 86 anos que parece se comprometer com tudo o que se propõe a fazer. É pai, avô e viúvo. Uma figura paterna presente, amorosa e genuinamente amiga, tanto da filha, quanto dos netos pequenos. Foi um marido que perdeu a esposa para o mal de Alzheimer e que, logo em seguida, foi diagnosticado com a mesma doença degenerativa. Pouco a pouco, Dick é obrigado a lidar com as consequências do Alzheimer.

Ele perde a independência e vai se esvaindo gradativamente. Em meio a confissões – de cortar o coração –, revela, derramando lágrimas, que já não se considera mais pai, mas sim um irmão caçula, um fardo a ser aturado. Inevitavelmente, o medo paira sobre a família tão unida e o fim é certo. Sabemos que tudo passa, nada dura para sempre. Mas a principal questão é: como lidar com a velhice? Como lidar com a morte?

A resposta de Kirsten para as perguntas acima é de tomar conta da narrativa em seus próprios termos. Johnson joga xadrez com a morte, criando diversas simulações bem-humoradas do óbito do pai, intercaladas com a documentação crua do seu dia a dia com ele. Dick é acidentalmente atingido por um ar-condicionado que cai do céu ou tropeça da escada ou, ainda, sofre um acidente de carro. Recorrendo à fantasia, as cenas fictícias são quase sempre seguidas de outras com Dick no paraíso, ao lado de quem ele admira e ama – comparecem Frida Kahlo, Billie Holiday, Freud, Bruce Lee e, entre outros, sua falecida companheira.

Cena em paisagem do documentário. Paraíso ficcional criado pela diretora, com dublês vestindo máscaras desproporcionais ao corpo, em preto branco. As figuras históricas das máscaras são: Bruce Lee, Frederick Douglass, Buster Keaton, Frida Kahlo, Dick Johnson, Farrah Fawcett, Billie Holiday e Sigmund Freud, em ordem. A paisagem é formada por céu rosado, nuvens em algodão, gramado verde, animais selvagens ao fundo e uma auréola dourada com chuvas feitas com confete dourado. Ao centro estão todos os dublês com Dick, em uma mesa rodeada de cadeiras, onde estão sentados.
O paraíso fantasioso da diretora, contando com a célebre presença de figuras históricas de Frida Kahlo à Farrah Fawcett (Foto: Netflix)

Identificado como adventista do sétimo dia, Dick tem respostas claras sobre a morte, onde, segundo a crença, todos os “justos” aguardam inconscientemente pela glória póstuma do juízo final. Dessa maneira, também criada segundo os dogmas adventistas, apesar de não crê-las, Kirsten brinca criativamente com as possibilidades surreais do que seria o tal lugar prometido. Somos expectadores de uma utopia transcendental recheada de gramados verdes, nuvens algodoadas, céu rosado, música alta, pessoas dançando e muito confete dourado. É como se a morte de O Sétimo Selo encontrasse os documentários fantasiosos de Varda. As Mortes de Dick Johnson parece dar continuidade ao legado de Agnès Varda, ao celebrar com muito tato e imaginatividade os frutos da idade.

Completamente esnobado da 93ª cerimônia do Oscar, junto de outros injustiçados do ano – dignos de menção o incrível Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre e First Cow – A Primeira Vaca da América –, Dick Johnson Is Dead encontrou no Emmy 2021 o espaço que lhe foi negado pela Academia. O documentário concorre principalmente ao prêmio de Melhor Direção em Documentário para Kirsten Johnson, além das categorias de Melhor Fotografia e Mérito Excepcional em Documentário.

Duas cenas, uma ao lado da outra, do documentário. São cenas reais documentadas pela diretora nos últimos anos de vida da mãe. Ambas são imagens em paisagem, com bordas pretas, comuns de fotografias analógicas. A primeira mostra flores selvagens amarelas em movimento, com a legenda “It would be so easy if loving only gave us the beautiful.” A segunda imagem mostra a mãe de Kirsten deitada sobre a grama, de olhos e bocas fechados. A mãe é uma mulher branca de aproximadamente 70 anos. Ela veste uma blusa com listras irregulares em vermelho, preto, verde e branco. Abaixo da segunda imagem, está a legenda “But what loving demands is that we face the fear of losing each other.”
Cenas reais dos últimos anos da mãe de Kirsten Johnson (Foto: Netflix)

Assim, cercada por situações mórbidas irreais, a diretora se naturaliza com a ideia da morte do pai, aceitando-a. É difícil encarar de frente os problemas que nos atormentam e, às vezes, escapismos puros são necessários. “Seria mais fácil se o amor só nos trouxesse coisas belas. Mas o amor nos exige encarar o medo de perder o próximo. E quando a coisa fica preta, que fiquemos unidos. E quando pudermos, celebremos os breves momentos de alegria”, narra Kirsten ao lamentar que, em 30 anos de carreira como documentarista, nunca teve a oportunidade de gravar a mãe antes da demência, como ela realmente era. Buscando não cometer os mesmos arrependimentos, ela efetiva, com o longa, uma verdadeira carta de amor ao pai e melhor amigo, Dick.

[SPOILER] Após uma cena de afeto sincero, onde Dick comemora seu octogésimo sexto aniversário comendo o melhor bolo de chocolate de sua vida, feito carinhosamente por seus netos, o filme se encerra com o falecimento de Dick. Ele sofre um ataque cardíaco e somos levados ao último ato. Agora, no velório, ouvimos relatos de amigos sobre quem era Dick, que, inesperadamente, ressurge vivo. Descobrimos que fomos, mais uma vez, tapeados pela dupla pai-filha. E tal qual o final de Titanic, Dick atravessa a capela quase como Rose cruza o navio, cercado daqueles a quem ele mais ama. Enfim, Kirsten mata o pai para finalmente poder ressuscitá-lo, imortalizando-o para sempre.

Cena final do documentário. Imagem azul em paisagem, com o escrito “starring/ Dick Johnson/b.1932 - “ no centro.
Vida longa à Dick Johnson! (Foto: Netflix)

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