Nascido como um exercício de autorreflexão e uma carga exorbitante de sentimentos, o filme Ahed’s Knee chama atenção por uma série de fatores. Primeiro, vem da mente de Nadav Lapid, cineasta que viu seu longa anterior, Synonymes, vencer dois importantes prêmios de Berlim. Segundo, pois o indeciso Júri de Cannes 2021 o condecorou em um empate com Memoria. Terceiro, pois sua chegada no Brasil pela 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo carimba o passaporte já lotado de festivais por onde viajou.
São quatro da manhã. Você, palestino e morador da Cisjordânia, toma seu café, se arruma para o trabalho e começa uma jornada de três a quatro horas para chegar em uma obra de construção civil em Jerusalém, território atualmente controlado por Israel. Os 32km, que poderiam ser percorridos em 1h30, parecem ter o dobro da distância. Em certa parte do caminho, você precisa atravessar a fronteira, e, para isso, enfrentar um dos pontos de checagem de Israel. Nesse checkpoint, palestinos são tratados como se fossem animais. Caminham em túneis cercados por grades, abarrotados em centenas. Alguns escalam como podem, para fugir da multidão sufocante. Outros chegam a ser pisoteados, ou saem com uma costela quebrada.
Ao fim do funil, a única passagem é por uma catraca torniquete. Depois, um detector de metal, onde se tira qualquer vestimenta solicitada considerada suspeita. E, então, finalmente, um militar israelense verifica seu documento de identidade e seu visto de trabalho. A permissão para trabalhar em construções só é dada para homens maiores de 23 anos, casados, e que possuam pelo menos um filho. Ocasionalmente, um soldado entediado pode te humilhar antes de autorizar sua entrada no país, por pura ‘graça’. Essa é a realidade enfrentada por 70 mil palestinos, que necessitam dos empregos depois da fronteira para sobreviver, diariamente. Todos os dias.
E foi no meio da loucura da maratona do Oscar 2021 no Persona, que trombamos com o maior festival de cinema fantástico da América Latina. Chegando na sua 17ª edição, o Fantaspoa, Festival de Cinema Fantástico de Porto Alegre, foi realizado entre os dias 9 e 18 de abril, acumulando mais de 160 filmes entre longas e curtas para os amantes do gênero fantástico – que abrange o horror, o thriller, a ficção-científica e a fantasia. Pela segunda vez, o festival foi virtual, em decorrência da interminável pandemia de coronavírus, e gratuito, para que todos pudessem assistir as obras provenientes de mais de 40 países do globo.
Em um mundo pré-apocalíptico, o Fantaspoa ocorria anualmente na cidade de Porto Alegre desde o ano de 2005. Em 2021, quase completando a maioridade, o festival ofereceu debates com cineastas, discussões sobre a inclusão no audiovisual, exposição a respeito do trabalho de mulheres no mundo do fantástico e até uma festa online. A arte da vez, utilizada para a própria arte desse post, foi criada pelo artista Renan Santos como uma referência aos 17 aninhos do festival, intitulada Reflexo. Já o lettering foi desenvolvido pelo diretor de arte Thalles Mourão, que também usou um aspecto refletido para retomar o gênero do evento.
Através da plataforma Wurlak/Darkflix, assistimos um pouco de tudo: filmes nacionais, internacionais, animados, psicodélicos, bizarros, medonhos e hilários. A curadoria trouxe peças singulares, inclusive a tão esperada disponibilização da obra Entrei em Pânico ao Saber o que Vocês Fizeram na Sexta-Feira 13 do Verão Passado, a quase folclórica produção de Felipe M. Guerra que, no seu aniversário de 20 anos, ganhou uma reedição só para o festival. Entre os premiados, O Cemitério das Almas Perdidasrecebeu do júri a consagração de Melhor Diretor para Rodrigo Aragão dentro da Competição Ibero-Americana eHistória do Oculto levou Melhor Filme e Melhor Roteiro.
A cobertura foi singela – cerca de ¼ do Fantaspoa está registrada abaixo pelas palavras de Caroline Campos, Vitor Evangelista e Vitor Tenca. O material disponível sobre as produções é escasso, então angariar informações se tornou uma parte extra da cobertura na hora da realização dos textos. O resultado, no entanto, foi divertido e satisfatório, especialmente pela oportunidade de se deparar com tantas obras únicas, sejam elas maçantes ou extraordinárias. Abaixo, você confere um pouquinho da grandiosidade criativa da 17ª edição do Festival de Cinema Fantástico de Porto Alegre.
São necessários apenas 20 minutos para White Eye estruturar e acusar a sociedade de classes em que se insere. O curta-metragem israelense dirigido por Tomer Shushan é um retrato potente do privilégio social e da noção agressivamente individualista de propriedade privada, utilizando uma esquina de Tel Aviv como seu epicentro. Indicado ao Oscar 2021, o roubo de uma bicicleta é a força narrativa que movimenta um completo desmantelamento da figura humana.
É no mínimo curioso o fato de um filme com este título venha a ser lançado justamente no ano de 2020, onde redes de cinema caminham para a falência e as salas oscilam entre uma capacidade limitadíssima de espectadores e o fechamento total. E se A Morte do Cinema e do Meu Pai Também poderia estar anunciando nos festivais de cinema online como a 44ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo que essa forma de arte do modo que conhecemos está com seus dias contados, no fim ele acaba fazendo justamente o contrário. A Morte do Cinema e do Meu Pai Também revigora a arte cinematográfica não apenas por suas reflexões pertinentes a respeito do próprio ato de fazer um filme, mas também por ser tão assertivo em encontrar o universal a partir de um lugar tão íntimo e pessoal.