Relic queima devagar e intensamente

Cena do filme Relic. Robyn Nevin, uma mulher de 78 anos, está sentada na ponta de uma mesa. Ela está no centro da imagem e olha para frente, com os olhos vidrados. Seu cabelo é grisalho e comprido e ela usa uma blusa rosa embaixo de um casaco branco de crochê. A sua frente, a mesa está embaçada, assim como os patros e alimentos em cima dela. Atrás, encontra-se um móvel de madeira parecido com uma estante.
Robyn Nevin se torna irreconhecível ao final dos 90 minutos de Relic (Foto: Reprodução)

Caroline Campos

Qual é a responsabilidade que possuímos com os idosos que nos cercam? Devemos inverter os papéis no futuro? Se eles cuidaram de nós antes, é de se entender que cuidaremos deles depois. A troca na hierarquia familiar, que assusta e magoa todos os envolvidos, é a base de Relic, filme de estreia da australiana Natalie Erika James que, com um carinho bizarro e violento, aborda o desmantelamento da mente humana e a vulnerabilidade que inevitavelmente acarreta.  

A experiência foi pessoal – a avó de James teve Alzheimer e, eventualmente, passou a não reconhecer mais a neta. A diretora, então, descreve o longa como o terror do luto por alguém que ainda não se foi, se colocando em tela através de Kay (Emily Mortimer) e sua filha Sam (Bella Heathcote) que são alertadas quando Edna, matriarca da família, desaparece. Três dias se passam até a idosa retornar, como se nada tivesse acontecido, e começar a apresentar comportamentos estranhos.

De início, a personagem de Robyn Nevin remete aos idosos decrépitos de A Visita, filme de 2015 do diretor M. Night Shyamalan. Mas o que se assemelha a uma possessão demoníaca ou entidade sobrenatural não é nada além de alusões pontuais que Natalie Erika James constrói para discutir a demência e a síndrome que havia experienciado com a própria avó. Kay e Sam encontram a casa repleta de bilhetes com tarefas básicas como “tomar pílulas” e “dar descarga” e, quando Edna reaparece, passa a delirar e se torna agressiva.

À direita da imagem, Natalie Erika James, uma mulher branca e jovem, está sentada em uma cadeira. Ela está com as pernas cruzadas, e com o braço esquerdo apoiando sua cabeça. Ela tem cabelos pretos e compridos, usa uma blusa listrada preta e branca e calça jeans, assim como um tênis de corrida. Natalie olha a esquerda, em direção a Robyn Nevin, que está desfocada. Robyn é uma mulher de 78 anos com cabelos grisalhos, que estão presos atrás da cabeça. Ela usa um tipo de camisola roxa e rosa, brincos de pérola e olha em direção ao chão. De fundo, está um móvel baixo com prateleiras de livros. Em cima dele, uma televisão e um abajur bege.
O terror de Natalie Erika James foi comparado com O Babadook, thriller de 2014 dirigido pela também australiana Jennifer Kent (Foto: Reprodução)

A sacada que engata Relic é exatamente o fato de James, que escreveu o roteiro ao lado de Christian White, utilizar o terror para contar uma história que poderia ser apenas outro drama familiar ou, no máximo, uma tragicomédia. Enquanto a idosa definha, sua casa, herança mais viva do seu passado, começa a embolorar em resposta. O mofo toma conta das paredes e vitrais na mesma medida que reclama para si as lembranças e a mente de Edna. Enquanto isso, filha e neta se sentem impotentes e constrangidas, buscando saídas que, muitas vezes, passam por cima do direito de escolha da própria mulher. 

Algumas das artimanhas clássicas do gênero estão presentes: o monstro debaixo da cama, a tentativa de sair da casa, portas abrindo misteriosamente no escuro. Nada disso é mal utilizado por James, que incorpora efeitos práticos ao criar suas “assombrações” e não cai em conclusões triviais ao encerrar o ciclo de Edna. Ciclo que apenas se reinicia na figura de sua filha – Sam e Kay são distantes assim como Edna e Kay eram. O excelente trio de protagonistas tenta, mas não consegue escapar do looping que, inconscientemente, estão.

Como uma vela, suas personagens queimam lentamente, mas sem nunca perderem a chama. Os labirintos que prendem Edna vão a sufocando e, se antes os lembretes eram simples, agora “meu nome é Edna” e “saia daqui” assombram as paredes infiltradas e podres a deixando perdida dentro de si e dentro de casa. Quando finalmente se solta do peso do delírio, Kay a acolhe como a estranha que já conheceu. Como a carcaça mórbida e mumificada de uma pessoa que não está mais lá, mas um dia esteve – e não merece ser abandonada diante de tanta fragilidade.

Cena do filme relic. A câmera olha de cima para baixo. Da esquerda para direita, deitadas em uma cama estão: uma figura mumificada, com a pele preta e ressecada; a personagen de Emily Mortimer, uma mulher branca de 49 anos, com o braço esquerdo no ombro da figura. Ela tem cabelos pretos e está de olhos fechados; por último, Bella Heathcote, uma mulher branca de 33 anos, está deitada com a mão esquerda embaixo da cabeça. Ela tem cabelo loiro e uma expressão assustada.
A mancha nas costas de Kay reinicia Relic (Foto: Reprodução)

A fotografia gelada em parceria com a atmosfera fúnebre exaltam as visões na cabana que relembram a maldição da família com outro corpo contorcido e queimado, mas sozinho. Não houve conforto nem consolo nessa morte. E assim que Kay decide não fugir da responsabilidade afetiva com a mãe e a acolhe, Natalie Erika James recheia seu longa com o afeto que suas personagens merecem. Ao invés de ficarmos assustados – afinal, ainda é um filme de terror -, somos tocados e cutucados.

Relic teve sua estreia mundial no badalado Festival de Sundance em janeiro de 2020 e conta com Jake Gyllenhaal como produtor e os irmãos Russo como produtores executivos. No Gotham Awards, James e seu filme concorreram na categoria de Melhor Filme ao lado de outras quatro obras dirigidas por mulheres. Apesar de não ser agraciado pelas estatuetas, Relic é uma das obras de terror mais bonitas e incisivas do assustador ano de 2020. 

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