Problemático, Vidro é o filme certo para Shyamalan fechar sua visão dos heróis

Shyamalan escolhe lavar as cores do filme, dando mais a ideia de que tudo visto anteriormente na ótica heroica é posta em cheque (Foto: Reprodução)

Vitor Evangelista

No encerramento de sua trilogia gestacional surpresa, M. Night Shyamalan trabalha a quebra constante da expectativa dentro do gênero dos filmes de herói. Assumidamente quadrinesco e colorido, Vidro tem uma linguagem própria e finaliza bem um trabalho inconstante e ora problemático do diretor. É um fim perfeito para uma criação de sua mente.

Corpo Fechado, longa dos anos 2000 que apresentou ao mundo David Dunn (Bruce Willis), o homem inquebrável, fez sucesso no nicho que louvava as obras do diretor. Um filme extremamente competente, realiza bem suas propostas e ainda saliva uma suposta sequência para as aventuras do ‘herói’ e seu nêmesis, o ácido Mr. Glass (Samuel L. Jackson, nunca falha).

Tal prosseguimento da história veio no solavanco, dezesseis anos depois. Shyamalan vendeu Fragmentado como um suspense, drama psicológico que prometia a inserção na mente de um homem com transtorno de personalidades. O Kevin Wendell Crumb de James McAvoy conseguiu segurar o melodrama eletrizante do filme, mas as constantes mudanças de tom e ritmo casavam com a esquizofrenia de seu protagonista. O refresco chegou no final, quando a câmera esboça um tímido (mas determinado) Dunn observando as notícias da soltura da Besta – a vigésima quarta personalidade de McAvoy. O supervilão de músculos que o Shyamalanverso necessitava.

Chegamos em 2019. Vidro. Glass, no original. Shyamalan amontoou seus três superseres numa instituição psiquiátrica para pacientes que acreditam ser super-heróis. Na figura da Dra. Ellie (Sarah Paulson, que eleva o nível de qualquer material que trabalha) o filme traça uma linha interessante dentro das produções irmãs. E se todas as habilidades e truques do trio principal forem ato de suas mentes? Estávamos sendo enganados o tempo todo?

Felizmente a resposta é não. Nenhum dos questionamentos que a doutora desenha na mente dos três homens acaba por funcionar. Dentro do filme, talvez. O roteiro encontra subterfúgios para plantar sementes na cabeça dos protagonistas. Mas nós, como o público que já acompanhou David Dunn quebrar barras de metais com as mãos e A Besta escalar paredes, não acreditamos nisso.

Talvez esse sendo o principal problema com o roteiro, também assinado por Shyamalan. Toda sua premissa de pontapé da trama não desce. Se a trama de seus filmes anteriores deixasse a nebulosidade dessas questões, quem sabe. O que parece ter acontecido aqui, é que o diretor se esqueceu que já trabalhou a descrença nas outras produções.

Shyamalan esquece, também, que o público já está familiarizado com os personagens em cena. O filme gasta boa parte de efervescente primeiro ato, estabelecendo dinâmicas já batidas. Toda sequência de Dunn indo atrás de bandidos e debatendo moralidade ficou lá nos anos 2000, e a decisão de telegrafar tudo mais uma vez nivela a inteligência da audiência por baixo e ainda revela um descaso do diretor em refinar seu texto final.

O mesmo equivale a toda abertura da trama de Kevin. O repeteco do sequestro com jovens e o discurso do ‘vilão’ apenas reforçam preguiça no roteiro, que poderia encontrar soluções menos cansativas para situar McAvoy na história. Mas, relevando o problema de ambientação, o primeiro ato de Vidro funciona como a catarse do filme. A ação é bruta e seca, e o embate inicial entre David Dunn e A Besta entoa a quantas andará o resto das mais de duas horas de produção. Pelo menos por enquanto.

Não, Vidro não vai revolucionar o gênero; mas, como cinema autoral é um alívio e um deleite de ser apreciado (Foto: Reprodução)

O roteiro é tímido, pensativo. O segundo ato, com todos os personagens já estocados na clínica cria um ramerrame inquietante. A rotina de cada paciente, consultas, conversas, tudo imprime um senso de urgência concomitante ao sentimento de afogamento para os enclausuramentos em suas celas especiais.

Sarah Paulson e sua Dra. Ellie funcionam como uma fachada. Sem qualquer desenvolvimento aquém do necessário, a atriz intercala momentos de desassossego com cenas carregadas de um sentimento suprimido. Ela está no filme para explicar. O mesmo não vale para os protagonistas.

Algo deve ser logo esclarecido: Vidro é muito mais uma sequência de Fragmentado, do que de Corpo Fechado. É compreensível o motivo, visto o apelo pop do filme de 2017, mas a frustração não deixa de tomar conta; o filme de 2000 tem muita mais a falar, além de provir os dois personagens mais intrigantes para essa terceira parte.

Comecemos por Kevin Wendell Crumb. É notável que James McAvoy está mais à vontade no papel. O personagem carrega um receio constante; com a ‘liberação’ da Besta, as demais personalidades se dividiram entre a idolatria e o temor ao monstro. É uma interpretação mais expansiva, comparada a do filme anterior. O avanço aqui é escancarado quando a câmera gira em 360 graus e nesse meio tempo o ator transita de uma persona para a seguinte. McAvoy também desenha trejeitos, tons de voz, posturas distintas; num trabalho extremamente gratificante.

Bruce Willis retorna a pele de David Dunn sem muito a fazer. O filme não dá muito material, além da porradaria, para o personagem trabalhar em cima. Todo o arco partindo do fim de Corpo Fechado até agora é escrito nas entrelinhas; uma frase aqui, uma cena menos expositiva acolá. O retorno de Spencer Treat Clark para o papel do filho de Dunn ajuda na pavimentação de David. Além de tudo, Vidro utiliza material descartado de Corpo Fechado. Esse recurso reafirma a ideia sequencial que o diretor inaugurou na virada do século, além de reiterar traços da personalidade do homem.

James McAvoy no set de Vidro (Foto: Reprodução)

Samuel L. Jackson que dá nome ao filme, é o que menos aparece. E, quando está em tela, abusa de um silêncio verborrágico. O Mr. Glass (codinome de Elijah Price) é quem menos tem a fazer aqui. O grande trunfo do personagem, além da magnífica interpretação de Jackson, é seu valor de metalinguagem. Sendo Glass o grande apreciador de quadrinhos, é ele quem dá a tonalidade ao todo, sempre enxergando todas situações e acasos numa óptica de fora para dentro.

Jackson trabalha a fragilidade de Elijah enquanto constrói a outra face da moeda numa vertente megalomaníaca. É claro que existe um enorme plano mirabolante que explode no colo do público, Shyamalan não perderia a oportunidade. Mas não é isso que faz de Vidro o que ele é. Na progressão narrativa escolhida, o diretor concebe um filme introspectivo na questão do papel do herói na sociedade. Esperança vale aqui. Medo e aversão também. Num mundo acolhido as asas dos Vingadores, como um filme que desacredita os heróis seria visto?

A cena que reúne seus protagonistas cimenta a qualidade interpretativa monstruosa que enche o ambiente (Foto: Reprodução)

Além de Glass, Dunn e Kevin, o roteiro traz de volta cada um de seus companheiros dos filmes anteriores. O já citado Joseph Dunn (Spencer Treat Clark) é um bom apoio para Bruce Willis. O mesmo se aplica a Mrs. Price (Charlayne Woodard), a mãe do Mr. Glass; a personagem humaniza o vilão, dá mais camadas a interpretação (quase) contida de Samuel L. Jackson.

Uma problemática do longa reside nos ombros de Casey (Anya Taylor-Joy, excelente atriz) que não deveria estar no filme. São questionáveis inclusive suas motivações para retornar para o espectro de Kevin. Tudo só faz mais sentido quando o espectador pressupõe o desenvolvimento de uma Síndrome de Estocolmo ou algo do tipo. Mas, mesmo assim, Casey serve apenas como catalisadora para a psique de Kevin no terceiro ato. Outra saída preguiçosa do texto do longa.

Dotado de coragem, o filme injeta vitalidade às produções de herói, mas sem nunca deixar de ser divisivo entre seu público (Foto: Reprodução)

O ponto chave das obras do diretor (além das viradas finais) é a maneira como sua câmera e seu texto conseguem reverter situações triviais e rebobinar a narrativa em outro ângulo. A começar pela maneira que ela filma as lutas do filme. Shyamalan cola a câmera no busto de seus protagonistas e fecha a imagem, sem grandes acrobacias, os embates de Vidro aliviam ao mesmo tempo que encarceram seu público.

Primeiro, o alívio. É de uma natureza extremamente bem-vinda a maneira como o filme foge do ordinário e não busca sequências grandiosas para mostrar o quebra-pau. Muitas vezes, os confrontos são mais um toma-la-dá-cá, um empurrão na pilastra. O encarceramento vem provido da escolha do diretor em minimizar o que normalmente seria maximizado. Não há, em Vidro, um momento em que a tensão se esvai num plano aberto e o respiro aliviado vem à tona.

O que se transmuta para fora das telonas é como Shyamalan cria um ‘anti-filme’ (ainda não sei se de herói, ou num âmbito maior). A liberdade de filmar seus personagens escondidos e, em simultâneo, de frente ao mundo, mostra que o diretor encara os heróis a olhos nus. Até mesmo a grande virada (clássica de sua filmografia) é menor em escala. Tudo absolvido no panorama de que Vidro é muito mais uma experimentação para seu cinema de autor do que uma aventura hollywoodiana qualquer. 

O filme é longo demais e extrapola flashbacks enfadonhos. Houveram várias oportunidades de cortar para o preto, mas a produção continua e continua e continua. Considero justificável presumindo que esse seja o ponto final desse mundo. Contanto que Shyamalan decida aposentar essa crônica desvairada, tudo está bem.

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