Há 10 anos, Questão de Tempo redefiniu os rumos de uma comédia romântica através de viagens no tempo

Cena do filme questão de tempo. Na imagem está o ator Domhall Gleeson, um homem jovem, magro e de pele branca com cabelos ruivos sentado em uma mesa com um olhar de desespero. Logo atrás dele, está um casal se beijando. Um homem alto, branco de cabelos pretos e uma mulher baixa de cabelos castanhos na altura do ombro, ambos estão com casacos verdes em uma cafeteria.
Richard Curtis é o roteirista de comédias românticas famosas como Quatro Casamentos e um Funeral (1994), Um Lugar Chamado Notting Hill (1999) e Simplesmente Amor (2003) [Foto: Universal Pictures]
Henrique Marinhos

Lançado em 2013, Questão de Tempo foi um experimento muito bem-vindo. Dirigida e roteirizada por Richard Curtis, a comédia romântica, que completa uma década em 2023, explora as possibilidades e os limites das viagens no tempo, tanto como um recurso narrativo quanto uma metáfora para as escolhas e os arrependimentos da vida. O maior acerto do clássico moderno e despretensioso é não se preocupar em explicar mirabolantemente as ciências da viagem no tempo, mas usar seu espaço para relacionar a temporalidade – que quase se personifica – aos afetos dos personagens e suas relações com o mundo.

No nível narrativo, o filme organiza sua trama a partir do ponto de vista de Tim (Domhnall Gleeson), que a partir dos 21 anos, por conta de uma herança familiar, pode voltar ao passado e alterar o que estiver ao alcance de sua vontade. A construção e comunicação da obra se dão a partir do uso do tempo e da relação com o público, sem nenhuma expressividade de heroísmo ou veracidade, como em Interestelar ou De Volta para o Futuro. Ele e seus antepassados podem viajar no tempo e as consequências se atêm às suas vidas, seja para fazer um romance dar certo, evitar um dia ruim ou reviver um bom, consertar arrependimentos ou o que qualquer um faria sem nenhum delírio de grandeza ou problema paradoxal – o que cai muito bem em uma Temperatura Máxima pós-almoço de domingo.

Partindo dessa premissa despretensiosa, quando não aceitamos o contrato, que aparenta ser baseado na lógica fantástica e na identificação com os personagens, temos um problema. Desconsiderando todo aparato científico presente em filmes como Vingadores: Ultimato e outros muitos do gênero, a utilização das viagens no tempo não é um meio para criar reviravoltas ou resolver conflitos históricos, mas sim um recurso para explorar as possibilidades e os limites das escolhas e dos arrependimentos da vida. A saída da curva de expectativas causa estranhamento, mas, positivamente, já que também é uma forma de surpreender e desafiar o espectador, tocando em preconceitos em relação ao gênero. Questão de Tempo também não se limita ao humor ou ao romance, construindo relações entre a família, a amizade, a paternidade e a morte.

Cena do Filme Questão de Tempo. Nela estão cinco personagens em família em um local cercado por grama. Todos os membros são brancos e estão carregando equipamentos de tênis. Ao fundo está um mar desfocado e outros pedaços de terra que se parecem com ilhas. Todos estão felizes andando para a direita da imagem.
Curtis sempre tenta incluir algum personagem cômico chamado Bernard em seus filmes, por conta do parlamentar conservador de North Essex, Bernard Jenkin, que é casado com sua ex–namorada (Foto: Universal Pictures)

A escolha espacial da obra também facilita a adaptação de viagens no tempo em uma vida sem muitas preocupações, com o básico de expectativa entre trabalhar, começar uma família e outras convenções sociais. O longa se passa no interior da Inglaterra, em uma casa confortável de uma família amorosa e divertida, que não tem problemas financeiros ou de saúde. Mesmo que possa ser interpretada como uma saída pela tangente para não complicar demais o roteiro, essa escolha contribui para criar um contraste entre a tranquilidade e a complexidade temporal.

Reforçando o elemento fantástico e conflituoso da narrativa, apesar de ter um cotidiano aparentemente perfeito, Tim – assim como qualquer um que descobrisse um poder assim – ainda sente a necessidade de voltar ao passado para moldar a realidade conforme queira. Corrigir seus erros, realizar desejos ou ajudar amigos e familiares é quase irrecusável, e o desenrolar da trama se dá pelas óbvias consequências inesperadas no presente e futuro.

Além disso, a obra tem uma castidade na forma de contar a história, sem muitos efeitos especiais que nem caberiam na narrativa. Ao contrário o filme se concentra nos personagens e nas suas emoções. Com paisagens bucólicas e as cenas urbanas com cores vibrantes e iluminação natural, a cinematografia, por John Guleserian, também é bem elaborada, usando planos, ângulos e movimentos de câmera que valorizam os detalhes e as expressões dos atores em uma quase celebração da vida e simplicidade.

Cena do filme Questão de Tempo. Nela estão os dois protagonistas, Tim e Mary. Tim é um homem branco, magro de cabelos ruivos que veste um suéter preto e está ajoelhado olhando fixamente para Mary, uma mulher branca com cabelos castanhos na altura dos ombros que está deitada na cama em que Tim se apoia olhando diretamente para ele em seu quarto com meia–luz.
A cena em que Tim pede Mary em casamento serviu de inspiração para V, integrante do BTS, compor a música Winter Bear (Foto: Universal Pictures)

Nas entrelinhas, os dilemas de Questão de Tempo podem não aparecer de primeira. Seguidos pelo tom leve e descontraído de um garoto amadurecendo, as problemáticas acabam passando despercebidas pelo teor romântico e contido, ou sequer foram pensadas em sua construção. A principal motivação do protagonista, pontuada pelo tempo de tela, é conquistar Mary (Rachel McAdams), uma garota que, para nós e para ele, o fisgou em um encontro às cegas – literalmente um restaurante sem luzes. No entanto, em uma de suas viagens, teve que reconquistá-la após alterar a linha temporal e apagar seu primeiro encontro real, que vive só em sua memória.

Entre o amor e a liberdade, Tim teve que escolher entre interferir na vida de Mary ou respeitar o (novo) curso da vida. A partir das oposições semânticas mínimas que estruturam a produção, como controle e acaso, a manipulação e o respeito, e o egoísmo e o altruísmo, os valores construídos são totalmente arbitrários. A sugestão de que o amor verdadeiro não depende do tempo, mas da confiança e da cumplicidade ao longo dos anos, prevalece durante toda a narrativa. Porém, a escolha final de não usar seu poder novamente só contraria as decisões que o protagonista passou anos tomando para transformar sua vida no que ela é, vez que voltar e prevenir sua primeira viagem nunca foi uma opção.

Os intérpretes de Tim e seu pai (Domhnall Gleeson e Brendan Gleeson) também são pai e filho na vida real e já haviam atuado juntos em Harry Potter [Foto: Universal Pictures]
Mesmo com as facilidades das escolhas temáticas e espaciais, a utilização da narração em primeira pessoa para mostrar os pensamentos de Tim em relação ao tempo servem como uma muleta para o público acompanhar tudo que se passa, uma corda que nos guia por bifurcações em uma caverna. Saber seus sentimentos, suas motivações e suas opiniões sobre o que estamos vendo quebra a 4ª parede e nos faz criar segurança.

Essa segurança reflete a percepção de quanto a temporalidade, que se refere à organização da história, é não-linear, causando estranhamento e confusão quase intrínseco ao tema. Mas, brevemente, nos aproxima da perspectiva de Tim e constrói um território em que na segunda ou terceira vez que assistimos, nos deixa mais à vontade e situados na ordem dos fatos.

Cena do filme Questão de tempo. Na imagem está o protagonista criança, um menino branco de cabelos ruivos, vestindo um short e uma camiseta xadrez azul e vermelha, sentado ao lado de seu pai, um adulto branco de cabelos castanhos vestindo uma calça social bege e camisa social azul marinho. Ambos estão de costas para nós e encarando o mar.
Margot Robbie foi escalada para o papel de primeiro romance de Tim, pois o diretor achou que ela era perfeita como uma mulher irresistível (Foto: Universal Pictures)

Em um nível fundamental, o longa é otimista e reconfortante, e isso destaca profundamente o nível emocional de momentos difíceis e tortuosos de assistir. As cenas dos personagens de costas para as câmeras, sem vermos suas expressões faciais e seus olhares, deixam uma sensação de alienação e isolamento, quase como uma impotência dos intérpretes em reagir – e a nossa de entendê-los. Além disso, há pouco desenvolvimento narrativo e discursivo nesses frames, mostrando-os de forma rápida e quase superficial, sem entrar em detalhes ou profundidade. 

No silêncio e incompletude, há uma distância entre o público e os personagens, o que contrasta com a maioria esmagadora de cenas felizes da obra, nos deixando estagnados mentalmente nesses momentos e fazendo-nos sentir e refletir sobre eles, ao tentar preencher as lacunas com nossa imaginação e interpretação. Em muitas camadas, os produtores criam uma identificação em situações universais e humanas que, novamente, lembram da pequenez de ser quem somos com tantos delírios de grandeza provindos da indústria.

Cena do filme Questão de Tempo. Nela estão o protagonista Tim, um homem branco, magro e ruivo que veste um suéter vermelho e calças cinzas, e seu pai, um homem branco, magro e grisalho que veste um suéter verde com calças marrons. Ambos estão sentados se olhando. Estão em uma sala de leitura com um jogo de xadrez desfocado à frente e uma prateleira de livros desfocada atrás. Seu pai está em uma cadeira mais alta e Tim está em um sofá baixo.
Filmado em diversas locações na Inglaterra, como Londres, Cornwall e Somerset, algumas cenas foram gravadas na casa de Curtis, pois ele queria mostrar a beleza do seu país (Foto: Universal Pictures)

A dinâmica da viagem no tempo do filme é baseada em algumas regras simples: a primeira é que apenas os homens da família Lake podem viajar no tempo – e eles descobrem esse segredo quando completam 21 anos. A segunda é que eles só podem voltar ao passado dentro de sua própria vida, ou seja, a partir do momento de seu nascimento. A terceira é que eles precisam estar em um lugar escuro e fechar os punhos para viajar (estranha composição), podendo escolher a data e a hora exatas para onde querem ir. A partir daí, as implicações dessa dinâmica compõem outro contrato com o narrador em um dilema de encerramento: caso voltem ao passado para antes do nascimento de seus filhos, seus sexos e aparência podem ser completamente alterados na volta.

A descoberta de que seu pai está morrendo de câncer, ao início, não é um problema para o protagonista, já que pode visitá-lo no passado várias vezes, diferentemente de seus familiares. Salvo espaço para destacar a construção da cena da descoberta, que é um marco à parte no filme, introduzindo um elemento no mínimo curioso: não é a primeira vez que seu pai o conta de sua doença terminal. Mesmo que centrado em Tim, a ideia de que, como telespectadores, também não estamos cientes da totalidade da realidade, em função da habilidade compartilhada com o pai, é intrigante.

Eu só tento viver todos os dias como se tivesse viajado deliberadamente para ele no passado. Só para aproveitá-lo.

Em sequência, mesmo com a notícia, a sensação de segurança na imortalidade temporal nas visitas para conversar, jogar e se divertir com seu pai, é totalmente dilacerada pela sugestão de sua esposa de ter um terceiro filho, o que significaria um adeus definitivo. Seguindo para uma conclusão estupenda, aos mais críticos, a escolha de uma viagem para despedida de pai e filho quebram totalmente o contrato com a – descrita pelo próprio personagem – decisão mais difícil até ali. Se qualquer ida anterior ao nascimento dos filhos seria arriscada, uma viagem para a infância de Tim, antes de sua irmã ou qualquer outro filho, não seria um pouco demais, mesmo com toda função emocional? 

Cena do filme Questão de Tempo. Nela estão os dois protagonistas, TIm e Mary. Tim é um homem branco, magro de cabelos ruivos e Mary, uma mulher branca com cabelos castanhos na altura dos ombros. Ambos estão sentados lado a lado com suas roupas de casamento, Mary com um vestido vermelho e Tim com um terno azul. Estão rodeados de convidados assistindo ao discurso de um padrinho em sua cerimônia de casamento.
Rachel McAdams já havia participado de outros dois filmes que envolvem viagens no tempo: Te Amarei Para Sempre (2009) e Meia–Noite em Paris (2011) [Foto: Universal Pictures]
A partir da construção de tantos aspectos que revelam as escolhas estéticas, narrativas e ideológicas dos produtores de Questão de Tempo, bem como os efeitos de sentido no público, há um frescor delicioso em uma obra sem muitas pretensões que só se compromete com o entretenimento. Essa não é, claro, a única função do filme, mas se fosse também teria sido cumprida com louvor. Combinar humor, romance, ficção e drama em uma história envolvente e emocionante, estabelecendo e quebrando contratos com o espectador, não é nada fácil.

Em uma trajetória surpreendente e desafiadora a nós e ao narrador, a construção de uma visão mais complexa e profunda da vida e do amor é sempre bem-vinda. Com diversas implicações sociais, culturais e ideológicas, refletindo e influenciando os valores, as crenças e as atitudes da sociedade em que foi produzido e consumido, Questão de Tempo é um deleite, um comfort movie e, acima de tudo, um tempo bem gasto.

Deixe uma resposta