Cangaço Novo é um faroeste brasileiro que exalta o sertão e critica o banditismo social

Cena da série em que aparecem os personagens Ubaldo (Allan Lima) e Ernesto (Ricardo Blat). Na imagem é possível ver ambos se encarando em um momento de tensão. Ubaldo (protagonista da trama) é um rapaz jovem, na casa de seus 30 anos de idade, branco, alto, careca e magro, que aparenta estar suado, com a cara suja. Nesta cena, Ubaldo aparece olhando séria e fixamente para Ernesto. Este por sua vez é um senhor de idade, mais baixo que Ubaldo, branco e barbudo, grisalho e calvo,  na casa de seus 70 anos, e retribui o olhar sério e fixo voltado para os olhos de seu filho, Ubaldo. Ambos parecem estar dentro de uma casa, numa sala de estar se encarando.

“Viver pouco como rei ou muito como um zé?” Esse é o dilema vivido pelo protagonista Ubaldo que, a princípio, não têm dimensão do tamanho de sua responsabilidade (Foto: Amazon Prime Video)

Gabriel Gomes Santana

Eu não sei porque cheguei, mas sei tudo quanto fiz, maltratei, fui maltratado, não fui bom, não fui feliz, não fiz tudo quanto falam, não sou o que o povo diz”. Estas poucas palavras poderiam fazer parte de uma das falas do personagem Ubaldo, interpretado pelo ator Allan Souza Lima, o protagonista da série de sucesso da Amazon Prime, Cangaço Novo. Na realidade, fazem parte da primeira estrofe da canção “Lampião Falou”, de autoria emblemática de ninguém menos do que o Rei do Baião, Luiz Gonzaga. E é no embalo destes três pernambucanos porretas que é possível entender o porquê do sucesso de uma das produções mais contagiantes do streaming.

Lançada em 2023, Cangaço Novo mistura o que há de melhor do gênero nordestern, um modelo de sucesso em obras que retratam o semiárido nordestino, sobretudo pela representação de um ‘faroeste brazuca’, ou até mesmo pela inspiração da figura icônica do próprio Rei do Cangaço, o Lampião. Ainda que a ficção seja apenas um roteiro adaptado da realidade, a produção cinematográfica dirigida por Fábio Mendonça e Aly Muritiba exala a essência do que realmente acontece nas histórias do sertão.

O título por si só já diz muito sobre a trama. Ele faz alusão às práticas de banditismo social empregadas nos tempos atuais pelas quadrilhas que assaltam agências bancárias em diversos municípios nordestinos. Na realidade, muito do que acontece hoje em dia, nada mais é do que uma adaptação do modus operandi utilizado por Virgulino Ferreira e seu bando nas décadas de 1920 e 1930. Foi pensando em um enredo carregado de dramaticidade, ação e reviravoltas que os roteiristas Eduardo Melo e Mariana Bardan acabaram trazendo o melhor dos dois mundos: tradição e contemporaneidade.

Cena do seriado em que os membros da quadrilha posam com armas e olham fixamente em direção ao centro da camêra. Na imagem é possível observar oito homens que estão de pé, enfileirados lateralmente e, ao que tudo indica, em um terreno com uma construção antiga/abandonada, com paredes vazadas. Ao fundo, é possível ver a paisagem do local, típica dos arbustos e vegetações do semiárido nordestino. Dos oito homens que aparecem, cinco deles exibem armas, alguns deles em punho e outros com ela na linha da cintura. A maioria dos homens são rapazes da faixa etária de 30 a 40 anos de idade, com exceção de um senhor mais velho, negro, que aparenta ter seus 50 anos e aparece um passo à frente dos demais.
A escolha de um elenco majoritariamente nordestino faz toda a diferença na ambientação e execução das filmagens da série (Foto: Amazon Prime Video)

Em uma temporada composta por oito capítulos, o seriado retrata a vida de Ubaldo Vaqueiro. Na trama, o protagonista se encontra em uma péssima situação financeira, tendo que cuidar de seu ‘pai’ Ernesto, que está hospitalizado. Desesperado por ter perdido o emprego como bancário, o rapaz tenta solucionar sua vida e a situação do pai indo de encontro com suas raízes no sertão. Ocorre que ele é adotado e está ciente de que seus parentes, assim como o início de sua biografia, estão vivos e residem no município fictício de Cratará (na série, localizado no interior do Ceará). Desta maneira, caberá ao jovem lidar com os fantasmas de seu passado e tentar adquirir o que é seu por direito.

A fim de vender alguns terrenos que estão no nome de seu pai biológico, Ubaldo acaba entrando em uma sucessão de enrascadas, tendo conflitos não apenas com suas irmãs Dinorah (Alice Carvalho) e Dilvânia (Thainá Duarte), como também com os traumas de sua herança genética. Sabe aquele ditado que diz que a fruta não cai longe do pé? O plot que dá clímax à narrativa acontece devido a essa metáfora popular que, neste contexto, faz total sentido.

Bombardeada por reviravoltas, violências, desigualdades e romances proibidos, a série transborda brasilidades e assuntos que traduzem bastante as mazelas de um povo marginalizado e carente (em todos os sentidos da palavra). Nesse sentido, as temáticas principais abordadas ao longo dos episódios não conseguem fugir de problemáticas sociais profundas e que, infelizmente, ainda fazem parte do cotidiano de muitos sertanejos, tais como: seca, matanças, escassez de recursos hídricos, violência, estupro, machismo, feminicídio, dentre outras questões lamentáveis presentes em outras regiões do país.

Cena do seriado em que aparecem as personagens Ziza (Marcélia Cartaxo) e Leinneane (Hermila Guedes) em cima de um palanque no centro da cidade de Cratará. Na cena, a personagem Ziza segura um microfone e discursa em alto som para os espectadores (público figurante) que aparecem em primeiro plano, de costas para a câmera central e em um plano inferior. Ziza é uma mulher que aparenta ter uns 60 anos de idade, equanto Leinneane é uma mulher mais jovem, na casa de seus 30 e poucos anos. Ambas são pessoas brancas, com a diferensa que Leinneane é mais alta e mais jovem que Ziza. À direita de Leinneane há um cartaz escrito “SOS CRATARPA CONTRA O LEILÃO”.
Quando o Estado é omisso, a única saída que há é a da mobilização popular (Foto: Amazon Prime Video)

Embora tenha aspectos por vezes estereotipados, Cangaço Novo está, assim como Bacurau, na prateleira de obras que conseguem expor muito do que acontece nos bastidores de um Brasil isolado e esquecido pelas grandes metrópoles, e, ao mesmo tempo, é sequestrado pela soberania de tiranos e oligarcas. Na contramão disso tudo, há também um povo de fé, alegre e trabalhador, que mesmo com poucas perspectivas, tira proveito da maior força que existe ali: o coletivo. E é pensando na força da organização popular que a personagem Ziza, tia do protagonista errante, interpretada por Marcélia Cartaxo, se faz tão necessária.

O apelo de Ubaldo e seus familiares esboça também a urgência de políticas de saneamento básico para a população do município e, ao mesmo tempo, conflita com os interesses particulares de uma pequena aristocracia rural detentora dos poderes financeiros e políticos da região. Em meio às aflições vividas pelo povo, Cratará vive sob a ausência de direitos coletivos, ao mesmo tempo em que contrasta com benefícios escusos e ações proselitistas, marcadas pelo coronelismo regional que ainda assola os diferentes sertões do país. À margem disso tudo, a ação dos anti-heróis cangaceiros é provocante e instiga ainda mais os espectadores. 

Se engana quem pensa à primeira vista que a trama se trata de uma exaltação ao banditismo social. Na realidade, talvez este fenômeno seja trazido à tona uma das principais críticas negativas apontadas pelos idealizadores do seriado. Basicamente, podemos dividi-lo em três partes: o resgate ao passado, a dureza do presente e as dificuldades de ter que lidar com um futuro incerto. Talvez estes sejam os emblemas que mais norteiam a trajetória do protagonista que, mesmo sem querer, jamais conseguiu se desvencilhar dos traumas vividos desde a infância.

A foto acima exibe duas mulheres agachadas, uma de frente para a outra. Pelo lado direito da imagem temos Dinorah, uma mulher parda, que aparece de cócoras, quase ajoelhada, pedindo perdão para a senhora que aparece à sua frente. Dinorah é uma jovem que aparenta ter entre 27 a 30 anos de idade. Ela aparece segurando as mãos de uma senhora (lado esquerdo) que usa vestes típicas de Maria Bonita e outros cangaceiros do início do século XX.
A súplica de Dinorah é o retrato desesperado dos cavaleiros errantes do sertão (Foto: Amazon Prime Video)

O sertanejo é, antes de tudo, um forte”, prega a frase do eterno Euclides da Cunha em seu grande livro-reportagem sobre Canudos, traduzindo um emblema que se encaixa perfeitamente na situação da série. Cangaço Novo, assim como Os Sertões, é uma produção voltada para os fortes. Tem que ter curiosidade e estômago para aguentar as cenas que não são nada fáceis de assistir. Da mesma forma, fortes são os indivíduos ali retratados, formados em sua maioria por sertanejos que exaltam um enredo intenso, bruto, severo e espinhoso, tal qual o cenário que dá vida a ele. Seja pelos absurdos vividos pelos personagens, como também pelo apego sentimental atribuído a estes.  

 

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