35 anos de Cabeça Dinossauro: os Titãs estavam putos da vida

Capa de Cabeça Dinossauro. O título do álbum e a palavra TITÃS estão escritos em vermelho, no topo da imagem. A capa é uma ilustração chamada "Expressão de um homem urrando", em que vemos o rascunho de um homem careca, com a cabeça sobressaltada, orelhas pequenas e olhos quase fechados. Ele está de perfil, com a boca aberta como que em um grito e a língua para fora. Está de perfil.
A capa de Cabeça Dinossauro não ilustrava os membros da banda; no lugar, foi utilizado um acetato de Leonardo da Vinci chamado “Expressão de um homem urrando” (Foto: Warner Music Brasil)

Caroline Campos

O ano era 1986 e os Titãs estavam irados. O Brasil começava a limpar os pulmões da fuligem dos militares e respirar o ar fresco da democracia quando, em 25 de junho, Cabeça Dinossauro saiu do escuro dos esgotos para fazer barulho na cena musical brasileira e enterrar os fósseis caretas remanescentes dos anos de chumbo. Com 13 faixas, o terceiro álbum da banda que contava com Arnaldo Antunes, Nando Reis, Paulo Miklos, Branco Mello, Tony Bellotto, Sérgio Britto, Charles Gavin e Marcelo Fromer foi uma experiência verdadeiramente punk rock que gritou na cara do sistema capitalista e das instituições hipócritas daquela terra sem lei dos anos 80.

Depois de dois discos que não foram muito bem recebidos pelo público e da prisão de Tony Bellotto e Arnaldo Antunes por porte de heroína, o octeto estava desacreditado da própria carreira. Mal eles sabiam que, quando gravassem Cabeça Dinossauro, iriam atingir principalmente uma juventude descrente e sem perspectiva que passava pela crise econômica deixada de herança pelos militares. Tanto foi que o álbum se tornou o primeiro disco de ouro dos Titãs, batendo a marca de 250 mil cópias vendidas em um ano.

Imagem retangular da banda Titãs. Todos os 8 integrantes compõe a imagem, fotografados da cabeça para cima em duas fileiras de quatro, com fundo azul. Na fileira de cima, da esquerda para direita, temos: Charles Gavin, um homem branco com cabelos loiros e sobrancelhas escuras; Arnaldo Antunes, um homem branco com cabelos pretos bagunçados; Sérgio Britto, um homem branco com cabelos curtos castanhos escuros e Nando Reis, um homembranco com cabelos ruivos enrolados. Na fileira de baixo, da esquerda para direita, temos: Tony Bellotto, um homem branco com cabelos castanhos claros enrolados; Paulo Miklos, um homem branco com cabelos pretos; Branco Mello, um homem branco com cabelos pretos compridos e Marcelo Fromer, o único que sorri na foto, que possui cabelos enrolados e claros. É difícil identificar suas vestimentas, mas todos usam paletós pretos. Todos os 8 olham diretamente para a câmera.
Hoje em dia, a formação dos Titãs só conta com três integrantes originais: Branco Mello, Sérgio Britto e Tony Bellotto; Marcelo Fromer faleceu em 2001 (Foto: Titãs)

Mesmo que o Brasil já estivesse sob comando de José Sarney, Cabeça Dinossauro enfrentou obstáculos significativos por conta do teor de suas letras. A censura, que demorou muito para se descolar das entranhas institucionais, foi bater na porta da banda e tentar munir o lançamento do disco – tarde demais, já que o público havia mergulhado de cabeça na agressividade descontrolada dos paulistanos. O marketing reverso foi tão eficaz que os shows passaram a ficar lotados, as rádios optaram por pagar as multas estabelecidas pelas canções proibidas e os Titãs entraram definitivamente no quarteto sagrado do rock nacional.

A produção do registro ficou, pela primeira vez, a cargo de Liminha, ex-baixista dos Mutantes. O músico foi peça fundamental para traçar com precisão a sonoridade desejada pela banda, e não demorou muito para ser apadrinhado como o nono membro do grupo. Liminha laçou toda aquela confusão rebelde e converteu no que se tornou o Cabeça Dinossauro, que equilibra a própria raiva e o descontrole em uma coesão musical polêmica e deliciosa.

Os quase 39 minutos de som não deixam ninguém escapar; sobra para a polícia, para a Igreja, para as leis e até para os que não fazem nada. Toda aquela revolta, muito bem justificada no contexto em que o disco foi lançado, contagiou os que estavam de saco cheio do sistema e, literalmente, quebrou as casas de show por onde os oito marmanjos passaram destilando um caos hipnotizante.

Contracapa do álbum Cabeça Dinossauro. A imagem mostra um rascunho do desenho Cabeça Grotesca, em que um homem carrancudo, com nariz arrebitado, orelhas grandes e boca diminuta está ilustrado como se a lápis. Ele está de perfil. Embaixo, o nome TITÃS CABEÇA DINOSSAURO está em vermelho.
Assim como a capa, a contracapa “Cabeça grotesca” é a reprodução de desenhos originais de Leonardo da Vinci, trazidos diretamente do Louvre por um conhecido de Sérgio Britto (Foto: Warner Music Brasil)

Para quem esperava um pop família quando colocou a bolacha para rodar pela primeira vez, escutar Cabeça Dinossauro, a faixa de abertura que intitula o álbum, deve ter sido um choque e tanto. A percussão de Liminha e os três versos – cabeça dinossauro, pança de mamute, espírito de porco –, praticamente vomitados por Branco Mello, dão início a um manifesto sonoramente selvagem contrário à barbárie do capitalismo. Tirem as crianças da sala, pois o som titânico só estava começando.

A temática do disco é clara: estamos insatisfeitos e queremos berrar. Apesar de Aa uu manter a qualidade de sua antecessora, ela é mais passível de se dar uma bela respirada e aproveitar os vocais carismáticos de Sérgio Britto bradando sobre uma espécie de sujeito-máquina. O clipe da faixa ganhou uma exibição no Fantástico, que foi responsável por popularizá-la a ponto de virar até trilha sonora de novela da Globo.

No entanto, seguindo em frente, é preciso garantir que aquela tal respirada seja bem longa, pois o folêgo desaparece durante as canções seguintes. A que melhor exemplifica essa insanidade transgressora do momento é A face do destruidor, que levou embora o pulmão de Paulo Miklos. Localizada entre Porrada, de Arnaldo Antunes, e Estado violência, escrita por Charles Gavin, os 38 segundos da música beiram o incompreensível e com certeza geraram muito bate-cabeça nos shows do grupo oitentista.

Igreja e Polícia podem dividir o crédito quando se trata de polêmica. Enquanto a primeira, criação de Nando Reis, fazia um Arnaldo Antunes cristão e ofendido deixar os palcos pela crítica à religiosidade fingida, a anarquista Polícia de Tony Bellotto rememorava a arbitrariedade policial e a opressão exagerada ainda marcante no Brasil de Sarney. Hoje, essa canção é quase um hino contra os agentes da lei, que seguem deixando um rastro de sangue preto e pobre pelo caminho de suas botas.

Apesar das duas composições darem o que falar, é Bichos escrotos que rouba a cena underground. Com Miklos novamente nos vocais e Antunes, Reis e Britto nas entrelinhas, a faixa que datava 1982 já havia sido proibida de entrar em discos anteriores dos Titãs. Devidamente gravada e parte de Cabeça Dinossauro, foi a demanda absurda do público que fez as rádios pagarem a multa para tocá-la. Logo, um sonoro vão se fuder! ecoava na casa da família tradicional brasileira. De longe, a canção mais satisfatória do disco.

Depois de tanta porradaria, é até engraçado ouvir Família na voz melódica de Nando Reis. Beirando o reggae, a letra do cotidiano é o oposto do primitivismo impresso nas suas antecessoras. Ao lado da inconformada Tô cansado, que fechou o lado A do vinil, é a parte mais light dentre tanto nervosismo cantado. Claro que isso não influencia em absolutamente nada na qualidade do conceito de Cabeça Dinossauro – todo mundo que berra demais precisa parar para tomar um gole d’água. O álbum encontra seu lugar melhor ainda nas suas gravações mais tranquilas.

Fotografia retangular com um filtro em preto e branco da gravação do clipe Cabeça Dinossauro, dos Titãs. 6 integrantes da banda estão na imagem, todos homens brancos. Da esquerda para a direita, na fileira de baixo, vemos um homem sem camisa olhando para cima, com cabelos jogados para trás e aparenta ter sujeira no rosto. Ao centro, outro homem sem camisa, com o rosto sujo e olhando para o lado esquerdo da imagem. À direita, também um homem sem camisa, olhando diretamente para a câmera e com cabelo bagunçado. Na fileira de cima, da esquerda para a direita, vemos um homem centralizado sem camisa, com cabelo curto e segurando um galho de madeira com as duas mãos para cima. Centralizado à esquerda, há um homem sem camisa e de shorts, relativamente curvado e olhando para o lado esquerdo da imagem. À direita, vemos o último homem sem camisa, também sujo na região do peito, olhando para a câmera com seu cabelo embaraçado.
A gravação do clipe Cabeça Dinossauro ocorreu na Chapada dos Guimarães, em Mato Grosso (Foto: Titãs – A Vida Até Parece uma Festa)

Assim como Bichos escrotos, Homem primata é, até hoje, um dos maiores sucessos do grupo. O capitalismo selvagem da selva de pedra paulistana ganhou um ritmo com guitarras marcantes e outro vocal de Britto. A letra, também engavetada, teve participação de Ciro Pessoa, que integrou a banda até 1983 e, infelizmente, faleceu depois de contrair covid-19 em 2020. Dívidas e O que, as duas com o dedo unânime de Arnaldo Antunes, finalizam os quarenta minutos de ira explosiva de uma das bandas mais importantes do nosso rock. A experiência acaba; a revolta, nem tanto.

Cabeça Dinossauro veio para chutar as portas da indústria musical brasileira e meter porrada nos dinossauros autoritários e vazios que se rastejavam pelo país. Como todo disco que entra para a história, sua atemporalidade é impressionante, principalmente se lembrarmos que os bichos escrotos decidiram sair dos esgotos de vez em 2018. Além disso, o disco de 1986 poderia ser facilmente trilha sonora do espectro político atual – tragicômico, eu sei. Independente, uma coisa é fato: putos da vida, os Titãs lançaram um clássico.

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