Especial Falas Negras é um respiro em meio ao negacionismo do racismo

Dirigido por Lázaro Ramos e com elenco de peso, o especial destaca símbolos da negritude (Foto: Reprodução)

Giovanne Ramos

Para não deixar o Dia da Consciência Negra passar despercebido sem nenhuma contribuição para o debate do racismo, em meados de outubro, a Rede Globo anunciou o especial Falas Negras, projeto idealizado pela autora Manuela Dias. Lançada no dia 20 de novembro, data emblemática, o projeto levantou expectativas, principalmente, dos negros pela sua proposta de composição totalmente negra, desde os atores até cargos mais elevados dentro de um projeto audiovisual, como é o caso de Lázaro Ramos, que assumiu o posto de diretor. Um ineditismo desagradável na maior emissora do país e sequer, no momento, concebível nas outras concorrentes.

Violência e temas sensíveis. Assim é categorizado o especial na plataforma Globoplay, e sem dúvidas, são palavras-chaves do cenário que cerca a sua estreia. A luta antirracista definitivamente não é atual, mas por diversos motivos, entre eles o esgotamento da população negra diante de opressões e ataques racistas de diversos níveis, tornou inviável de ser digna de cobertura nas mídias hegemônicas. Em maio, por exemplo, o estadunidense George Floyd se tornou combustível para manifestações após ser assassinado por um policial. No Brasil, a insatisfação foi acumulada desde o caso dos jovens negros João Pedro e Miguel e teve como um ponto de basta após João Alberto Freitas ser brutalmente espancado até a morte, na porta do Carrefour Porto Alegre, nas vésperas da Consciência Negra, desencadeando manifestações pelo país.

Mas o que tem a ser discutido sobre Falas Negras? Primeiramente, o pioneirismo tardio de tantas figuras negras envolvidas numa obra audiovisual brasileira na maior emissora do país, inclusive em cargos técnicos – caso do Lázaro Ramos como diretor e Uno de Oliveira nos efeitos visuais. É questionável o fato deste ser um feito de 2020, ainda mais quando é levado em consideração a idade da televisão nacional e a porcentagem de negros retratados nas telinha, ponto já problematizado em 2000, pelo cineasta e comunicólogo Joel Zito Araújo. O especial abre portas esperançosas para que no futuro o cenário de obras como telenovelas e séries sejam cada vez mais diversas em personagens de destaque.

Falas proferidas ressaltam o quanto o racismo continua presente e atual (Foto: Reprodução)

Quando a premissa conceitual foi divulgada – interpretação de personagens negras históricas e suas falas -, a produção correu dois riscos, da seleção não agradar, ainda mais tendo escolhas de figuras estrangeiras entre as 22 personalidades. A representação também foi uma preocupação, pelas chances de convencer o público através de atuações carrascas, uma vez que parte das personagens são conhecidas. No fim, não foi um problema, pois o elenco de peso emocionou com excelência em suas encenações. 

O elenco de 22 intérpretes, assim como o talento, é gigante: nomes de peso e conhecidos pelo grande público como Taís Araújo (Marielle Franco), Babu Santana (Muhammad Ali), Aílton Graça (Milton Santos), Flávio Bauraqui (Luiz Gama) e Fabrício Boliveira (Olaudah Equiano) se encontram com artistas renomados do teatro como Naruna Costa (Angela Davis), Reinaldo Júnior (Mahommah Gardo Baquaqua), Heloísa Jorge (Nzinga Mbandi) entre outros que compõe o espetáculo televisivo. Mas entre a leva, alguns se destacaram positivamente: Bukassa Kabengele que trouxe para a ficção o carisma de Nelson Mandela e Olívia Araújo intérprete da ativista Harriet Tubman

A seleção foi balanceada entre figuras populares e outras apagadas pela história, mas felizmente resgatadas no drama. Outros nomes, principalmente brasileiros, ficaram de fora, o que é compreensível já que se todos os nomes negros de importância fossem retratados, seria necessário no mínimo três temporadas de uma série. Talvez seja uma crítica, o tempo curto de apenas uma hora, limitou tanto a seleção de personalidades quanto os aprofundamentos necessários, como contextualizações mais ricas para além das falas. Um seriado com episódios de vinte minutos, abordando cada uma das histórias por trás das célebres frases – “Eu tenho um sonho” (de Martin Luther King Jr.), “Liberdade é não ter medo” (de Nina Simone) e “Eu não sou seu negro” (de James Baldwin) são apenas algumas -, com certeza daria uma contribuição inigualável para a história da raça e do audiovisual.

Relatos emocionantes contrapõe o mito da democracia racial no país (Foto: Reprodução)

Ao invés disso, a simplicidade pareceu ser um objetivo. Cenário único com suas devidas caracterizações, contraposição de luzes entre o fundo preto e partes do ambiente iluminadas. Todo esse minimalismo ajudou a destacar a atuação e a força de cada fala proferida entre as figuras, escaladas numa espécie de linha cronológica. Dividido entre três blocos, construiu-se uma narrativa linear da pré-escravatura, passando por aqueles que sofreram as dores do sistema escravista, os teóricos e os precursores da resistência que são hoje lembrados como símbolos da luta e por fim vítimas atuais. Tudo funcionou, desde as mensagens de autoestima até as de encorajamento e por fim depoimentos, onde se tornou impossível não se emocionar com Tatiana Tiburcio, encarnando o papel de Mirtes, mãe do menino Miguel, morto aos 5 anos.

Entre trilhas sonoras empoderadoras, Falas Negras se encerra com um gosto agridoce. Satisfação das pautas negras estarem ganhando aos poucos destaque nas telas, sem ser através da violência e do crime, apesar de ter dividido atenções com o ocorrido na noite anterior. Mas amarga, ao se deparar num país escondido por trás do mito da democracia racial e de desculpas fáceis como o racismo estrutural. O que torna o especial mais marcante é como frases, muitas em parte de séculos anteriores, continuam tão atuais, e ao invés de caminharmos para frente com os nossos líderes, os mesmos demonstram grande retrocesso e negação de um problema escancarado em nossa sociedade.

Para os mais habituados e conhecedores da história do movimento negro, talvez sinta de primeira a falta de ativistas, teóricos e pessoas que também são de grande importância para exaltar. Mas temos de lembrar que ainda há uma grande parcela da comunidade que não possui acesso a muitos do que foi destacado pela direção de Lázaro, e são esses que têm de ser inseridos nesse contexto para que cobrem por mais obras como essa. Apesar de atrasada, Falas Negras faz parte de uma trajetória de lutas por espaços que, com muita garra e inspiração estão sendo aos poucos conquistados e sendo notados.

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