Em Noite Passada em Soho, pesadelos viram realidade enquanto fantasmas te tiram para dançar

Fotografia do filme Noite Passada em Soho. A imagem é retangular e apresenta a personagem Sandie, no canto direito, descendo uma escada. Sandie é interpretada por Anya Taylor-Joy. Anya é uma mulher branca, jovem, de cabelos loiros que vão até os ombros. Ela usa um vestido cor-de-rosa. À sua esquerda, na parede onde a escada está, há uma sequência de espelhos. Nesses espelhos, ao invés do reflexo de Sandie, está representada a personagem de Eloise. Ela é interpretada por Thomasin McKenzie. Thomasin é uma jovem na casa dos 20 anos, branca. Ela tem cabelos castanhos, que vão até abaixo dos ombros. Ela usa uma blusa sem mangas branca e uma calça de moletom cinza.
Noite Passada em Soho é como se a premissa de Meia-Noite em Paris, de Woody Allen, e o estilo de um giallo de Dario Argento resolvessem ter um bebê (Foto: Universal Pictures)

Mariana Nicastro

Apenas escute a melodia do trânsito na cidade! Carros e táxis passam o tempo todo, grupos diversos de pessoas riem e conversam em voz alta, e música ecoa de bares, pubs e casas de shows. As luzes dos teatros e das lojas iluminam as ruas largas. O título de um filme clássico pisca no letreiro do cinema. Quantos sonhos, promessas e ilusões vivem nos grandes – e famosos – centros urbanos, repletos de cultura, moda e fama? Bom, Noite Passada em Soho evidencia o que acontece quando alguns desses sonhos são arruinados, confrontados com uma realidade que pode ser cruel, brutal e assustadora. 

Dirigido por Edgar Wright e roteirizado por ele, em parceria com Krysty Wilson-Cairns, o longa chegou aos cinemas brasileiros em 18 de novembro de 2021. Antes disso, foi exibido nos Festivais de Veneza, Toronto e Londres, chegando ao Brasil pela 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. O diretor, conhecido por seu estilo ágil, astuto e criativo, revelado em obras como Em Ritmo de Fuga (2017), aqui apresenta o gênero abordado como novidade: um suspense psicológico e retrô, com toques de inspiração do Terror dos anos 60 e 70. Esse fator, somado a uma temática instigante, curiosa e com uma premissa original, joga holofotes sobre Last Night in Soho, que, como resposta, entrega ao espectador uma experiência assombrosa, envolvente e singular.

Fotografia do filme Noite Passada em Soho. A imagem mostra a personagem Eloise sentada no banco de um trem, observando a paisagem na janela ao seu lado. Ela está sentada com os pés sobre o banco, abraçando os joelhos. Eloise é interpretada por Thomasin McKenzie. Thomasin é uma jovem na casa dos 20 anos, branca. Ela tem cabelos castanhos que estão presos em uma trança atrás da cabeça. Ela usa uma blusa florida, meia calça e está com fones sobre os ouvidos.
Ellie é uma jovem deslocada de sua época, apaixonada pela estética dos anos 60, o que se representa desde seu vestuário até as músicas que escuta (Foto: Universal Pictures)

Essa experiência é contada sob a perspectiva de Eloise (Thomasin McKenzie) – ou Ellie –, uma jovem que deixa sua cidadezinha no interior da Inglaterra para viver o sonho de estudar Moda em Londres. Ao chegar na capital, porém, as coisas se revelam muito mais complicadas do que ela imaginava. Sentindo-se solitária, desconfortável e nem um pouco acolhida em seu novo lar, a garota encontra refúgio em uma pensão, que ganha sua simpatia com uma localização agradável e uma decoração tirada diretamente dos anos 60. 

Como se a estética não fosse suficiente por si só, em sua primeira noite no ambiente ela é surpreendida ao ser, de fato, transportada para a época em questão: uma Soho sessentista, perfeitamente reconstruída, em sonho vívido. Lá, ela se enxerga no corpo de Sandie (Anya Taylor-Joy), uma aspirante a cantora, cuja beleza, determinação e sede por fama despertam sua admiração e inspiração.

As visões logo se tornam recorrentes, se repetindo todas as noites, e passam a confundir a jovem a respeito do que é real e do que não é. O que se inicia de forma inocente e divertida, logo se torna um pesadelo, quando, aos poucos, Ellie percebe que está presenciando uma história triste, apavorante e real, que se mistura com a sua própria e passa a assombrá-la com fantasmas do passado. 

GIF do filme Noite Passada em Soho. O GIF mostra a personagem Sandie se observando no espelho. Sandie é interpretada por Anya Taylor-Joy. Anya é uma mulher branca, jovem, de cabelos loiros que vão até os ombros. Ela usa um vestido cor-de-rosa e um brinco brilhante. O espelho a sua frente, ao invés de exibir o reflexo da garota, exibe Eloise. Ela é interpretada por Thomasin McKenzie. Thomasin é uma jovem na casa dos 20 anos, branca. Ela tem cabelos castanhos, que vão até abaixo dos ombros. Ela usa uma blusa sem mangas branca. Durante O GIF, ambas as personagens se viram na direção da câmera, repetindo os movimentos uma da outra, como em um reflexo, mas encarando a mesma direção.
Desde a primeira aparição de Sandie, o filme atiça a curiosidade do telespectador acerca da origem – e da razão – da conexão entre as duas personagens (GIF: Universal Pictures)

A trama é construída de forma que o suspense envolvendo a trajetória de Sandie em busca de reconhecimento, nos anos 60, é intercalado com a adaptação de Eloise à mesma Londres, cerca de sessenta anos depois. A diferença é que, enquanto a cantora precisou enfrentar seus desafios completamente só, Ellie, agora, os repassa junto dela, investigando seus passos e tentando descobrir quais foram seus desfechos, junto ao público. 

A história progride satisfatoriamente no Terror psicológico e nos dramas do passado, enquanto ambos se misturam. Em mãos erradas, essa alternância de foco poderia se tornar confusa, artificial e desencadear uma ruptura no ritmo do filme. Em Noite Passada em Soho, porém, a direção de Wright acerta ao desenvolver crescentes acontecimentos bizarros, assumidamente surrealistas. Eles criam vida para além dos pesadelos de Eloise e geram questionamentos cativantes quanto à origem daquele mal e quais serão as suas consequências. 

Fotografia do filme Noite Passada em Soho. A imagem mostra a personagem Eloise, parada, no centro. Eloise é interpretada por Thomasin McKenzie. Thomasin é uma garota branca, que está com os cabelos loiros e molhados. Ela usa uma blusa preta e, por cima, uma jaqueta branca. Ela olha para a sua esquerda, com uma expressão neutra. O ambiente onde ela se encontra é iluminado por uma forte iluminação azul, vinda das costas de Eloise, e uma iluminação vermelha, à sua frente.
Inspirada por Sandie, Eloise passa a incorporar algumas de suas características físicas após vivenciá-la em seus sonhos, enquanto o passado começa a ganhar vida, com ela (Foto: Universal Pictures)

Dentro de um roteiro tão recheado de detalhes e ideias, nem tudo recebe a mesma atenção e desenvolvimento, como é o caso de alguns aspectos que envolvem Eloise. As visões que a garota tem de sua mãe e as dúvidas acerca de sua sanidade são alguns desses pontos, que rapidamente acabam em segundo plano. No lugar, Noite Passada em Soho abraça completamente a investigação da vida de Sandie, quase como se admirasse esses novos fatos com o mesmo interesse de sua protagonista, já que são eles que movem o enredo.

As boas ideias e o olhar criativo de Wright, contudo, prevalecem. Seja no uso de técnicas que divagam entre o horror psicológico e o físico, ou na inventividade para criar revelações e reviravoltas surpreendentes nos momentos certos, o longa é repleto de cenas angustiantes e sufocantes, e o desespero de Eloise para interferir na realidade de Sandie se faz crível e compartilhado por quem assiste. Os fantasmas dos anos 60, que reverberam no presente, tornam-se mais ameaçadores, violentos e macabros, conforme as explicações são gradativamente fornecidas.

Fotografia do filme Noite Passada em Soho. A imagem mostra a personagem Sandie dançando, com a câmera focada em seu busto. Sandie é interpretada por Anya Taylor-Joy. Anya é uma mulher branca, jovem, de cabelos loiros que vão até os ombros. Ela está olhando por cima do ombro, para trás. O ambiente em que ela está é escuro, iluminado apenas por uma forte luz vermelha, que brilha sobre seu rosto. O fundo está desfocado, mas há um homem a observando, também iluminado pela luz vermelha.
O espectador se vê representado pela personagem de Eloise, tão observadora quanto nós, no que diz respeito à trágica história de Sandie (Foto: Universal Pictures)

Todas as sensações provocadas pelo filme são intensificadas com elementos sonoros e visuais, minuciosamente pensados. A recriação dos anos 60 é bela, desde os cenários até os figurinos. As intensas luzes coloridas geram contraste entre os dois períodos e são usadas, principalmente, em momentos de perigo e tensão. Esse recurso é bastante oportuno, considerando as referências de época, e muito utilizado nos giallos do horror italiano, como em Suspiria (1977), de Dario Argento. 

A fotografia, dirigida pelo sul-coreano Chung-hoon Chung, é impecável e, sem dúvidas, um dos maiores destaques da obra. O trabalho dele contribui para a construção do terror, é imaginativo – como pede a direção de Wright – e extremamente habilidoso ao criar cenas perfeitas, nas quais as atrizes principais são simultaneamente representadas. Jogos de espelhos, sets duplicados, cenas coreografadas e a alternância ágil entre planos garante um espetáculo visual que enriquece Noite Passada em Soho.

GIF do filme Noite Passada em Soho. A imagem mostra a personagem Sandie dançando com Jack. Sandie é interpretada pela atriz Anya Taylor-Joy. Anya é uma mulher branca, jovem, de cabelos loiros que vão até os ombros. Ela usa um vestido cor-de-rosa. Jack, por sua vez, é interpretado por Matt Smith. Matt é um homem branco, na casa dos 40 anos. Ele tem cabelos castanhos, lisos, penteados para trás, e usa um terno escuro. Ele gira Sandie com uma das mãos. Enquanto faz isso, a câmera passa por trás de suas costas, cobrindo Sandie por um segundo. Quando ela reaparece, ela deixou de ser Sandie e agora é Eloise. Eloise é interpretada por Thomasin McKenzie. Thomasin é uma jovem na casa dos 20 anos, branca. Ela tem cabelos castanhos, que vão até abaixo dos ombros. Ela usa uma blusa sem mangas branca e uma calça de moletom cinza. Ela está alegre e sorri para Jack. Ao fundo, é possível ver um salão vermelho, uma escada, algumas mesas com cadeiras e diversas pessoas paradas, os observando dançar.
Com um impecável jogo de câmeras e coreografias, o filme cria cenas espetaculares nas quais as personagens dividem o corpo de Sandie, sem o uso de efeitos ou de fundo verde (GIF: Universal Pictures)

Dentre a lista de méritos do filme, as atuações são um show à parte. Os destaques são, sem dúvidas, as duas protagonistas, que representam papéis opostos. McKenzie simboliza medo, curiosidade e simplicidade com excelência. É fácil sentir empatia pela tímida Ellie. A personagem apresenta vitalidade e sua presença em cena é maior quando ela se sente segura e confortável, situação que oscila diante dos dramas enfrentados, e exige versatilidade da atriz.

Em contrapartida, a maravilhosa Taylor-Joy entrega uma Sandie determinada, corajosa e confiante, aos poucos revelando sua complexidade, conforme lida com o caos de seus dias. Ela, como sempre, brilha e esbanja elegância em sua atuação, e revela todas as camadas de seu papel com maestria. Anya mostrou habilidade até mesmo cantando, em sua icônica versão da canção Downtown (1965), de Petulia Clarke, para o filme. A música carrega um otimismo a respeito da vida em uma grande cidade, o que dialoga de forma irônica com os acontecimentos do longa.  

As demais atuações também são dignas de elogios, mesmo quando os personagens recebem menos tempo de tela. Miss Collins, interpretada por Diana Rigg, brilha em um papel póstumo, já que a veterana atriz faleceu antes do lançamento do longa. Matt Smith (o Doctor, mas dessa vez não o viajante do tempo da história) entrega uma representação certeira de um Jack detestável e assustador, que engana a Sandie, Ellie e a nós, ao se apresentar como simpático e atencioso, em um primeiro momento.

Fotografia do filme Noite Passada em Soho. A imagem mostra o personagem Jack interpretado por Matt Smith. Matt é um homem branco, na casa dos 40 anos. Ele tem cabelos castanhos, lisos, penteados para trás, e usa um terno escuro. Seu rosto é longo e seu nariz é pontudo. Ele é alto e magro. Ele está em um salão e olha na direção da câmera, parado ao lado de um balde de gelo em uma mesa. Um garçom passa, desfocado, ao seu lado. Ao fundo é possível ver um espelho e um lustre.
Enquanto tudo parece mágico, Matt Smith é cavalheiro, cativante e faz parte de uma ilusão da “vida dos sonhos” buscada pelas protagonistas em Londres (Foto: Universal Pictures)

Quanto às suas revelações e ao desfecho, o filme carrega uma crítica social, com forte temática de violência, esta vivenciada por Sandie. A obra evidencia a triste realidade de abusos, manipulações e ameaças enfrentadas pela personagem quando jovem, enquanto buscava construir sua carreira musical. Para isso, se utiliza da sugestividade ao apresentar esses acontecimentos através de diálogos entre a cantora e Jack, ou representando através de fantasmas com rostos borrados, os homens para quem ele a oferecia e vendia.

O longa remete a sensações de desânimo, dor, agonia e confusão vividas por ela, enquanto vítima. Para isso, se usa de câmeras trêmulas e inquietas focadas no rosto de Sandie, em diversas ações da personagem. Noite Passada em Soho, entretanto, é ousado e imprevisível. Ao se encaminhar para sua resolução, a produção surpreende com uma reviravolta de vingança, sob uma perspectiva inesperada. 

 Fotografia do filme Noite Passada em Soho. A imagem mostra a personagem Sandie em primeiro plano. Sandie é interpretada por Anya Taylor-Joy. Anya é uma mulher branca, jovem, de cabelos loiros que vão até os ombros. Ela tem uma franja, usa uma faixa na cabeça e está sentada. Seu corpo está inclinado levemente para a esquerda e ela olha para algo que está logo a sua frente. Atrás do banco onde ela se encontra existe um espelho. Esse espelho mostra a personagem Eloise, ao invés do reflexo de Sandie. Eloise é interpretada por Thomasin McKenzie. Thomasin é uma mulher branca, jovem, que está com cabelos loiros, que vão até os ombros, com uma franja, igual ao de Sandie. Ela usa uma blusa de mangas compridas azul e olha para a mesma direção de Sandie. Uma luz roxa ilumina o ambiente.
Eloise se vê, assim como o público, presenciando uma história diretamente saída dos giallos, os quais, em sua maioria, retratavam assassinatos e investigações (Foto: Universal Pictures)

A partir disso, a obra tenta responder às questões levantadas ao longo de seu desenvolvimento e peca pelo excesso, já que são muitas. Pontas soltas, por vezes, permanecem dessa forma. A conclusão dada à Sandie a respeito dos crimes cometidos por ela acaba sendo rasa e incoerente comparada à complexidade de seu desenvolvimento e da personagem em si. 

Trata-se, afinal, da origem dos traumas que a tornaram fria, violenta e sanguinária. A perspectiva de uma vítima que se torna a assassina. Uma dualidade que permitiria discussões melhor aproveitadas e um final mais marcante e impactante para Sandie, se bem trabalhada. A relação entre ela e Eloise também carece de maiores explicações, e a conexão entre elas se resume, de forma insuficiente, à tendência da segunda a uma sensibilidade ao sobrenatural

Fotografia do filme Noite Passada em Soho. A imagem mostra a personagem Eloise caída no chão, cobrindo o rosto até a altura dos olhos, com o braço direito. Eloise é interpretada por Thomasin McKenzie. Thomasin é uma mulher branca, jovem, que está com cabelos loiros, que vão até os ombros, com uma franja. Seus olhos estão manchados com maquiagem preta, que escorre por seu rosto. Ela usa uma camiseta preta, sem mangas. Está escuro ao seu redor, mas uma luz, vinda da esquerda da câmera, ilumina a garota.
A personagem de Ellie funciona como um catalisador, um meio pelo qual entidades e forças sobrenaturais de outra época conseguem voltar à vida (Foto: Universal Pictures)

Edgar Wright de fato acerta ao criar um suspense curioso e atrativo, repleto de personalidade. Em sua ânsia e ambição de elaborar diversas situações complexas, o diretor entrega resultados finais razoáveis, porém discretos e limitados, que destoam do desenvolvimento deslumbrante e detalhista do longa. No entanto, em momento algum, isso prejudica a experiência como um todo: não afeta o encanto e originalidade da obra, apenas sugere que ela teria muito potencial para um desfecho mais satisfatório, completo e engenhoso. 

Dialogando com o surrealismo, com referências de um Terror psicológico de décadas passadas e uma elegante reconstrução de outra época, o filme é muito mais do que aparenta em sua superfície. A obra apresenta diversas camadas interessantes e sequências imersivas, que ocorrem sobre um nostálgico plano de fundo de viagem temporal. Noite Passada em Soho evidencia a forma como uma tragédia do passado desencadeia uma série de eventos traumatizantes e é capaz de criar fantasmas eternos, no sentido alegórico e também literal. 

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