Ceremonials: há uma década, Florence exorcizava seus demônios e dançava com eles

Ensaio para promoção do álbum Ceremonials. Fotografia retangular em fundo preto. No centro, está Florence acompanhada de dois de seus reflexos em cada lado como se estivessem de costas uma para outra. Uma mulher branca de cabelos ruivos. Ela veste um vestido de gala coberto de esmeraldas. Florence segura seu cotovelo direito com a mão esquerda, enquanto a mão direita está sobre seu peito na altura do coração.
Após sucesso de disco de estreia, Florence vê em um trabalho grandioso a chance de se consolidar (Foto: Tom Beard)

Guilherme Veiga

Os dias de cão acabaram, mas alguns traumas ficaram. Em seu segundo álbum de estúdio, a banda britânica Florence + The Machine tem a difícil missão de conviver com eles além de manter o alto nível que seu disco de estreia Lungs (2009) proporcionou. Para isso, Florence apostou na grande produção e em sua já consolidada poesia e voz. Tal aposta resultou em um grito muito bem afinado com aspirações megalomaníacas, que flerta com o gótico e o gospel ao mesmo tempo, e que demonstra excelência, além de evidenciar a notável evolução do grupo dois anos após seu debut.

Em time que está ganhando não se mexe. Por isso, Welch retoma quase todo o plantel de produtores, encabeçados por Paul Epworth, responsável por trabalhos que vão de Kate Nash ao Oscar de Adele. Porém, se engana quem espera um resultado igual dos mesmos componentes da equação. Destoante de grande parte da discografia da banda – embora dê alguma continuidade à nuance de Lungs que futuramente seria retomada –, Ceremonials, ao invés de transformar o caos interno de Welch em Música, busca o expurgar através dela.

Gravado no lendário Abbey Road, Ceremonials assume a mística do local e funciona como um grande templo, onde a divindade em questão adorada é Florence, juntamente de seu poderio vocal. O disco opta por escantear a estética de seu antecessor: a sonoridade pés no chão e coroa de flores na cabeça perdem espaço. Ao invés disso, o álbum vem com uma orquestra pesada e um coral, que estão lá justamente para fazer jus à grandiosidade e ao status que sua intérprete conquistou merecida e repentinamente.

Ensaio de divulgação do álbum. Florence está no quintal de um castelo, no topo de uma escadaria com um lago artificial ao fundo. Ela usa uma faixa  salmão na cabeça, veste uma blusa bege e um short com estampa de plantas e sandálias. Enquanto dobra levemente seu joelho direito, ela abre os braços.
Além de revisitar problemáticas de sua vida, a cantora traz ao álbum inspirações como Frida Kahlo e Virginia Woolf (Foto: Tom Beard)

A obra se inicia provando que o disco de estreia ainda corre pelos pulmões da banda. Only If For A Night é uma perfeita sucessora espiritual. Nela, Florence transforma uma experiência pessoal em uma temática mais palpável ao público. Aqui, o luto pela avó que a inspira também pode ser entendido como uma canção sobre falta, que diz respeito tanto aos mortos como aos vivos.

Shake It Out vêm pra ser o carro chefe desta era. O órgão à la Hans Zimmer de Isa Summers no início te coloca no meio de uma igreja gótica e te prepara para um culto de libertação conduzido pela forte homilia da poesia de Florence. É difícil dançar com um demônio (que aqui pode ser chamado de passado) nas costas, mas nesse balé vocal e instrumental sobre mudanças (e o quão difícil elas podem ser), é quase impossível não se sentir mais leve, tamanha a sensação de descarrego que a música traz. 

What The Water Gave Me encerra o trio inicial mostrando a versatilidade do grupo ao apresentar singles completamente diferentes de si. O título faz referência a uma obra de Frida Khalo na qual ela pinta seus pés em uma banheira onde a água reflete diferentes fases de sua vida, algo que Florence também busca trazer com Ceremonials. A música ainda traz em seu refrão o suicídio de Virginia Woolf, mas a escrita de Welch faz com que a mensagem seja mais palatável e adaptável ao ouvinte, além de introduzir pela primeira vez o elemento água, que seguirá tanto por este álbum como pontualmente ao longo de sua carreira.

O foto se trata de um registro feito da plateia em um dos shows da tour do álbum. Em uma imagem preta e branca, Florence aparece no canto esquerdo com os braços abertos, de costas para a plateia e de frente para a bateria. A banda é composta por um baterista, um baixista, um guitarrista e um percussionista, além de uma pianista. Atrás deles, há uma estrutura que imita um vitral de igreja com desenhos de árvores.
Em entrevista para divulgação do álbum, Florence diz que “é obcecada por músicas tristes com melodias felizes” (Foto: Solifestyle)

A primeira metade do disco ainda nos apresenta Never Let Me Go, que por pouco não chegou com força de single, mas é tão singela e impactante quanto as três músicas que a antecedem. Retomando as temáticas de suícidio e incorporando novamente a água, é uma faixa que lava a alma de qualquer pecador. Breaking Down é talvez a que mais bebeu da estética do Abbey Road e tem uma melodia com um quê de Beatles. Aqui, ela não tem vergonha de colocar o elefante na sala ao fazer seu próprio Babadook e abordar a depressão, dessa vez acompanhada de um arranjo alto astral. 

O aspecto gospel é então retomado com Lover To Lover, que com sua pegada soul lembra a Música negra dos anos 50 e 60, principalmente as de uma igreja batista americana qualquer celebrando a Páscoa. É a canção na qual Florence está mais livre, representando muito bem o eu-lírico da letra. Nela, a intérprete abusa do seu poder vocal, em um arranjo tipicamente feito para arena. O fim do primeiro ato se dá com a percussão, o coral e a harpa do single No Light, No Light. Uma letra tremendamente honesta sobre o fim de um relacionamento.

Ensaio de divulgação do álbum. Na foto em estilo de uma câmera analógica, Florence, uma mulher branca e ruiva, posa com um vestido branco de costas para um parapeito de pedra com um jardim ao fundo em uma locação que parece ser um castelo ou mansão. Ela está localizada no lado esquerdo da foto e olha para baixo.
Ceremonials rendeu ao grupo duas indicações à 55ª edição do Grammy Awards em 2013 (Foto: Tom Beard)

A sinistra Seven Devils inicia a segunda metade do disco fazendo jus a data de lançamento próxima ao Halloween de 2011. Profunda e densa, ela cria um clima totalmente diferente da primeira metade, mas replicando a atmosfera de Shake It Out, dessa vez dando nome aos bois e utilizando uma passagem do livro If He Hollers Let Him Go como inspiração, além de trazer uma enorme carga mitológica e medieval à obra, o que fez com que a música fosse utilizada em um dos trailers da segunda temporada da finada Game of Thrones.

Uma forte e marcada percussão anuncia Heartlines como uma música que caberia tranquilamente nos créditos de alguma fantasia medieval. Aqui, Welch simplifica uma leitura de mão ao cantar sobre seguir seu coração e estar com alguém mesmo que longe. Antes mesmo de Heisenberg, Welch já sustentava um “say my name” de respeito em Spectrum, título subsequente. A faixa que depois foi remixada por Calvin Harris – com quem Florence estabeleceu certa parceria – serviu para estabelecer a cantora como uma voz familiar na cena eletrônica.

A grande duração do álbum com suas 12 músicas (sem contar as várias versões deluxe lançadas posteriormente) com média de 5 minutos cada começa a pesar nesse ponto. E All This And Heaven Too é quem mais sofre com esse aspecto devido a sua posição, figurando como uma das mais (injustamente) esquecidas. Leave My Body encerra o álbum como uma das letras mais complexas desse trabalho. Se por um lado é difícil entender o real ou o mais próximo significado da escrita, é muito fácil transcender com a ótima melodia e voz da obra.

Foto tirada durante a passagem da banda pelo Rock In Rio em 2013. Nela, Florence, uma mulher branca e de cabelos ruivos, aparece centralizada na imagem, da cintura para cima. Ela usa um vestido verde-água de tecido leve e com desenhos de corda. Segurando o microfone com a mão esquerda, ela eleva a mão direita e seus cabelos estão esvoaçantes, aparentemente em razão de Florence estar pulando.
O disco foi principal responsável para a expansão do evangelho da cantora para além do Reino Unido (Foto: Flavio Moraes/G1)

Florence + The Machine mostra aqui que soube o próximo passo a se dar para não jogar todo seu potencial fora. Por isso, Ceremonials funciona como uma ótima continuação para o perfeito Lungs. Ele é a descarga de adrenalina entoada através do grito de Florence necessária após o clímax do álbum de estreia, um tufão ocasionado pelo sopro da batida de asas de uma borboleta. O processo da escrita de Welch também merece destaque. Além de fazer com que as músicas se encaixem em seu público independente do momento, ela transforma cada título em uma catarse única. Dessa forma, as faixas funcionam tanto individualmente como aglutinadas em um álbum.

Mercadologicamente, o segundo disco significa um ambicioso salto para o grupo, no entanto, simbolicamente, é o salto para um mergulho: um mergulho de Florence em si mesma e em seus traumas. Ora ela se afoga, ora ela nada com a maré. A voz de Welch aqui funciona como um farol em meio a escuridão de um mar de problemas e nos conduz brilhantemente ao longo da obra, porém, banda e arranjo aqui tem mais espaço, justamente para que tal voz ecoe ainda mais. Apocalíptico e épico, o pop barroco do testamento de Ceremonials é, talvez, mais Machine e um pouco menos Florence, por isso, se destaca entre a discografia, sendo lembrado e religiosamente adorado até hoje, dez anos depois. O aspecto sombrio que ronda Ceremonials se mostra necessário tanto para quem o fez quanto para quem capta sua mensagem e, assim como Florence, se revigora através dela. Afinal, é sempre mais escuro antes do amanhecer.

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