Taylor Swift não é a Miss Americana

“Eu me tornei a garota que todos queriam que eu fosse” (Foto: Republic Records)

Ana Laura Ferreira

O que significa ser mulher no mundo de hoje? O que significa ter seu corpo e suas ações a mercê do olhar e da opinião alheia? E se todas nós já sofremos as pressões que respondem tais perguntas, o que isso significa em um nível maior?

Viva uma narrativa que os entretenha, mas não os deixe desconfortáveis”. Talvez essa seja a resposta que a sociedade impõe às mulheres, em especial aquelas que fazem parte da indústria do entretenimento. E é destrinchando as camadas encobertas pela mídia e explorando o lado bom, e o ruim, de ser uma figura pública que acompanhamos alguns anos da vida de uma das maiores estrelas pop da década, Taylor Swift. Produzido pela Netflix, o documentário Miss Americana embarca em uma viagem pelo emocional e criativo da cantora e abre margem para discussões políticas que transcendem suas músicas românticas.

É em meio a seus diários que começamos a entender um pouco mais da vida particular de Taylor e de como ela cresceu e amadureceu dentro do meio musical. Cercada por expectativas e pressões, a jovem ascensão do country americano se reinventou mais vezes do que podemos contar, migrando para o pop sem perder sua essência, seus fãs ou sua popularidade. A transição, apesar de parecer extrema, foi construída de forma gradual, intercalando gêneros e misturando estilos, que resultou em um processo de contínua ascensão em sua carreira. Mas apesar de todas as diferentes fases, acompanhamos aqui a chamada “Era Reputation” – iniciada com o sexto álbum em estúdio da cantora -, seu amadurecimento e o processo de criação de Lover.

Quase como um complemento de Miss Americana, a Netflix lançou o show Reputation Tour para aqueles que não se contentaram com o curto documentário (Foto: Matt Winkelmayer)

Assim como a própria diz, cada cantor tem um diferencial que o destaca em meio a outros tantos. Sia tem sua voz inigualável, Beyoncé tem seu visionarismo, Lady Gaga tem suas múltiplas e excêntricas facetas e Taylor tem suas composições intimistas e sinceras, que se desenvolvem junto a ela. Em Miss Americana, somos convidados a mergulhar de cabeça em seu imaginário e processo criativo. Apesar de toda a construção de imagem e de todo o planejamento comercial que paira sobre suas produções, é reconfortante ter permissão de observar seu processo de criação orgânico e divertido.

Intercalando a gênese de Lover à experiências pessoais e recortes de sua adolescência, entendemos a narrativa que perpassa sua música e mais ainda, entendemos como cada uma das diferentes fases e gêneros pelos quais passou estavam intrinsecamente ligados a cada um de seus momentos. De seu início de carreira em Nashville à sua expansão internacional, de seus álbuns de término à declarações públicas de amor, de You Belong With Me à The Archer, os altos e baixos de sua vida são transformados em melodias e letras entoadas por multidões ao redor do mundo. 

Os shows da “Era Lover” seriam os primeiros a passarem pelo Brasil, mas tiveram de ser adiados por conta da pandemia de COVID-19; as novas datas ainda não foram divulgadas (Foto: Reprodução)

E falando em baixos: apesar de ser uma produção autorizada pela cantora, Taylor cita algumas das polêmicas que rondam sua carreira. A principal delas: o VMA de 2009. Não vale a pena entrar em detalhes do ocorrido aqui, mas ainda assim sua presença durante o documentário é significativa, em especial os desdobramentos do caso que até hoje geram notícias. A massiva pressão midiática que rotulou a cantora após o lançamento da música Famous de Kanye West, e o reavivamento do ocorrido na premiação de anos atrás, afastou Swift dos holofotes por um ano, o que não diminuiu o assédio sofrido por ela na mídia e nas redes sociais.

Em certo ponto, Miss Americana abre espaço para trazer a tona os julgamentos e ameaças sofridas por Taylor em rede nacional. Manchetes e recortes de programas de televisão constroem uma denúncia ao cerco criado pela imprensa que a condenou por ser bonita demais, magra demais e ter amigas modelos” – assim como uma comentarista diz durante a passagem.

“Eu preciso estar do lado certo da história” (Gif: Reprodução)

Dirigido por Lana Wilson, o documentário traz uma visão muito mais assertiva e sensível de temas como bulimia, machismo e assédio sexual, que são trazidos de forma orgânica para a narrativa, sem tirar os pesos e responsabilidades que os assuntos apresentam. O olhar feminino de Wilson prende o espectador a suas queixas e não romantiza a humilhação e desafios diários aos quais as mulheres são submetidas. E apesar de transcorrer rapidamente pelos pontos, por conta da curta duração de Miss Americana, a diretora se atém o suficiente a cada um deles, e a tantos outros, de forma a instigar um debate que transcenda o longa. Quase como um pontapé para conversas entre jovens mulheres que, assim como Taylor, enfrentam tantas dificuldades sociais intrínsecas ao gênero.

A política também se torna pauta. Durante todo o documentário fica clara a constante pressão para que a cantora incorpore a figura da ‘boa menina’ que apenas sorri e canta músicas de amor, prezando sempre pelo entretenimento e conforto alheio, sem nunca defender seus ideais políticos ou visões de mundo. Mas mesmo depois de tantos anos e uma carreira sólida, acompanhamos a luta de Taylor contra a censura da mídia, e de sua própria produção, para que ela pudesse enfim expressar sua opinião sincera. E como boa compositora que é, a cantora ainda transforma seus pensamentos e sentimentos políticos em música entregando a nós a original Only The Young, feita exclusivamente para o documentário.

Tomando partidos, assimilamos o desenvolvimento da artista em uma mulher mais educada politicamente e que se preocupa com as bandeiras que levanta. Para isso, uma generosa parcela do filme se dedica a entender a relação de Swift com a comunidade LGBTQ+. Somos mais uma vez levados a refletir sobre o que está ao nosso alcance para apoiar a comunidade e fazer cumprir direitos básicos que os são privados. Lana Wilson ainda dedica uma cena do documentário a pressionar o governo americano, relembrando da petição anexada ao clipe de You Need To Calm Down que ainda não recebeu resposta da Casa Branca, mesmo tendo quase 10 vezes mais assinaturas do que o necessário.

A montagem do longa, que flui de acordo com os assuntos, nos leva até a cansativa, infeliz e inevitável necessidade de reinvenção constante a qual as artistas femininas são obrigadas a se submeter. Tendo que sempre entregar algo inesperado, se superando a cada fase, fica clara que essa constante busca pelo novo não se restringe apenas a sua música, mas principalmente a sua imagem. 

O “descarte” de mulheres na indústria do entretenimento por conta da idade já foi pautado por diversas outras estrelas, e apesar de parecer algo distante, Taylor, no auge de seus 30 anos, já se vê engolida pela fanática busca pela juventude incentivada pelo corpo social sobre a qual fala: “vou trabalhar enquanto a sociedade tolera que eu tenha sucesso”

Taylor Swift é a única cantora a ganhar duas vezes o prêmio de Melhor Álbum do Ano no Grammy em uma única década, com Fearless (2008) e 1989 (2014) (Foto: Reprodução)

Ao trazer uma visão mais intimista da pessoa por trás da diva Taylor Swift, Lana Wilson entrega um longa bem construído e narrativamente sedutor. Agindo quase que como um catalisador de epifanias, nos é oferecido muito mais do que apenas sua história, mas sim um compilado de temas, de grande importância social, de forma simples e até lúdica, abrindo caminho para que novas gerações também entrem nessa conversa e comecem a se educar. Miss Americana parece ser apenas um pretexto para que a cantora possa finalmente dizer o que foi censurada por tanto tempo. E assim como a própria canta na última cena do filme, Taylor está pronta para o combate. 

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