Chromatica é um divã na pista de dança

Capa da versão deluxe (Foto: Norbert Schoerner/Interscope Records)

Jho Brunhara

Lady Gaga é uma ótima contadora de histórias. Desde seu primeiro projeto, quando sua persona foi construída através de uma imagem bizarra, instigante e quase mística, a nova-iorquina não estava ali só pelas músicas. Estava pelos visuais, conceitos pretensiosos que funcionam, e principalmente, sua narrativa. Uma jovem seduzida e engolida pelo monstro da fama; depois uma alien-mãe lutando pela liberdade de seus monstrinhos; um híbrido metade-Warhol metade-Gaga nascido de um ovo azul botado por Jeff Koons; uma grande homenagem póstuma meio country; e agora, Chromatica

Nem sempre é possível entender exatamente o que a artista quer contar em todos os universos que cria, como no controverso ARTPOP, mas dessa vez a mensagem chega clara ao ouvido deste planeta: Chromatica soa como uma celebração. O primeiro disco de Gaga sem nenhuma balada para desacelerar o caminho de suas 16 faixas incorpora o house e o dance dos anos 90, luta pelo seu espaço nas pistas de dança do presente, e relembra o mundo que às vezes você só precisa dançar, mesmo que sozinho em seu quarto, e tudo vai ficar bem. 

As interludes I, II e III foram escritas pela produtora White Sea e Lady Gaga (Foto: Norbert Schoerner)

Apesar da atmosfera dançante e lotada de energia, o quinto álbum de Gaga é muito mais pessoal do que sua estética e sonoridade aparentam. Para quem cantou sobre um amor destrutivo e a psicose de Hitchcock em um dos hinos pop mais famosos da história, não é difícil incorporar temas mais densos em uma embalagem chiclete e plástica. “Your monsters torture me”, My biggest enemy is me, “I feel like I’m in a prison hell”. Esse dualismo é evidenciado por letras que vasculham os horrores da consciência em embalos frenéticos, te colocando para dançar enquanto a artista canta suas confissões íntimas, como se a música fosse sua terapia.

Mergulhada em um high-concept, a narrativa se apoia em tudo que tem direito, desde imersão estética até participações de peso, como o girl group BLACKPINK, gigantes do kpop. E mesmo com o risco de ressuscitar os batidões dos anos 90 para as gerações mais novas, o que chama a atenção é a necessidade de distrair o ouvinte de suas repetições e excessos.

Em entrevista, Gaga revelou ter enfrentado dores crônicas e depressão durante o processo de gravar e produzir o álbum, mas que utilizou as próprias músicas para canalizar a tristeza e encontrar força (Foto: Frederik Heyman)

As faixas propositalmente mais curtas no álbum não são apenas efeito do streaming, e tem a mesma intenção das interludes, tornar o uso das batidas 4×4 da house music menos maçantes. Jogada de mestre de Gaga e BloodPop®, o principal produtor do disco, mas que também mostra certa malandragem para mascarar as estruturas mais simples das músicas. 

Em canções como Stupid Love, Fun Tonight e 1000 Doves, os recursos sonoros caem em um clichê já esperado, se distanciando da qualidade consistente do resto do CD, mas nada muito grave. E mesmo com 16 tracks e o constante bate-estaca do house, o álbum utiliza muito bem suas maracutaias e respiros, e a sonoridade se estende coesa sem parecer pesada, amarrando perfeitamente a experiência.

O britânico BURNS também assina diversas faixas de Chromatica, mas é em Replay que sua produção brilha mais forte. Gaga canta sobre suas cicatrizes e um sentimento crônico de dor, acompanhada de um instrumental explosivo e absolutamente dançante. O contraste não poderia ser mais evidente, e essa combinação tão conhecida na música pop ganha mais uma camada, e mostra uma artista sem medo de escancarar seus fantasmas, convertendo a tristeza em refrões poderosos.

O desabafo de Gaga não para por aí: Sine From Above, parceria com o lendário Elton John, fala sobre fé e superação em versos enérgicos. A colaboração com Ariana Grande, Rain On Me, também utiliza de seu momento para cantar sobre traumas e como encontrar um caminho para seguir em frente, “eu preferia estar seca mas pelo menos estou viva”.

A nostalgia se manifesta em Chromatica, não apenas nas batidas da música house, mas também nas temáticas presentes no LP. Com um instrumental assinado por BloodPop® e Skrillex, Plastic Doll evoca o lirismo sarcástico e a estrutura das músicas do The Fame, e os “oh ma ma ma” de Alice parecem nos transportar diretamente para Poker Face. Aos que passaram os últimos anos implorando para que Lady Gaga ‘voltasse ao pop’ (de onde nunca saiu exatamente), parece que a cantora atendeu aos pedidos, mas mostra em seus versos que nunca mais será a mesma pessoa que o mundo conheceu 12 anos atrás. 

“Música é o que me curou durante a minha vida, e me curou novamente gravando esse álbum”, via Zane Lowe (Foto: Norbert Schoerner)

Não há outra forma de encerrar a história do disco que não seja com Babylon. Besuntada pela sonoridade dos anos 80 e 90, canta uma analogia envolvendo fofoca, pecado e a torre de Babel, sob pianos, coros e trompetes. À la Vogue de Madonna, o refrão transforma qualquer chão em um desfile, e crava suas palavras faladas em viciantes hooks. Esse universo idealizado por Gaga é sua própria Babilônia, mas ao contrário da imponente cidade, suas fragilidades são expostas para sua própria fortificação. 

Chromatica é essencialmente positivo em quase todas as decisões que toma. É meticuloso como experiência, sendo uma óbvia coletânea dançante, mas nunca se esquece do seu propósito narrativo. E mesmo manifestando um rebuliço interno de tristezas e angústias, sabe processar cada uma delas, como se Gaga estivesse cantando diretamente de um divã, para curar a si mesma. Como arquiteta de mais um mundo que criou, dessa vez os tijolos parecem ser mais fortes. E se o processo de elaboração do disco foi a reabilitação, seu lançamento e recepção são um atestado de alta.

 

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