Lavoura Arcaica: tradições podem destruir uma família

Cena do filme Lavoura Arcaica em que aparece toda a família sentada à mesa, com quatro membros de cada lado e o pai ao centro como o patriarca.
20 anos depois de seu lançamento, os simbolismos familiares de Lavoura Arcaica permanecem fortes (Foto: Núcleo Luiz Fernando Carvalho)

Gabriel Gatti

Toda família se constrói em cima de tradições e costumes passados de geração em geração. Muitos desses hábitos sofrem modificações conforme os tempos avançam, mas em alguns casos há resistência daqueles cegados pelas crenças pavimentadas em sua mente. Essa relação familiar complicada é o que motiva André (Selton Mello) a abandonar o lar e partir rumo ao desconhecido em busca daquilo que realmente acredita. A premissa de Lavoura Arcaica se desenvolve em uma trama complexa e profunda durante 2 horas e 43 minutos de filme.

O trabalho de estreia da carreira do diretor Luiz Fernando Carvalho acendeu um holofote em direção ao livro Lavoura Arcaica de Raduan Nassar. O romance homônimo, que inspirou o longa-metragem, também compartilha de muitas semelhanças no roteiro. Como seu trabalho inicial, o cineasta partiu de uma obra delicada sobre tradições familiares e seguiu os mesmos passos sem grandes alterações para o desenvolvimento da película. Desse modo, o filme se destaca por ser quase uma poesia cinematográfica, com uma narrativa construída de modo não-linear. 

Cena do filme Lavoura Arcaica exibe dois homens brancos de cabelos castanhos curtos e barba, olhando pela janela.
Um simples diálogo se desdobra em uma trama profunda e reflexiva (Foto: Núcleo Luiz Fernando Carvalho)

Com essas peculiaridades, Lavoura Arcaica se inicia com a busca do primogênito Pedro (Leonardo Medeiros), por André, que deve voltar para casa para se portar como manda as tradições agrárias e patriarcais. A missão, aparentemente simples, se desdobra em um turbilhão de emoções e histórias que trazem à luz o sentimento que motivou a saída do filho pródigo de casa. André, que é epilético, expõe durante o diálogo com o irmão a sensação de não pertencimento ao ambiente onde sempre foi tratado como o sujo e teve seus desejos carnais ceifados pelas crenças familiares rígidas.

O diálogo, apesar de inflamado pelos traumas de uma vida engessada, finaliza com o consentimento de André em voltar para o seio familiar. No entanto, o retorno acaba sendo muito mais tumultuado do que se imagina. Durante o tempo fora, o jovem regressa a fazenda de seus pais muito mais convicto de seus ideais e seu pai (Raul Cortez) não abre mão do que acredita como certo. Porém, o abandono do lar por parte de um filho motivou os demais a demonstrarem sua insatisfação com o modus operandi a que eram previamente submetidos.

Cena do filme Lavoura Arcaica no qual há uma mulher branca de meia idade, de cabelos castanhos presos, com um vestido e um avental, olhando através da janela enquanto chora.
A mãe, interpretada por Juliana Carneiro da Cunha, se mostra aberta para as mudanças familiares, mas sua submissão aos anseios do pai a silenciam (Foto: Núcleo Luiz Fernando Carvalho)

O caos de uma família que desaba por não conseguir estruturar suas tradições narrado de forma poética elevam Lavoura Arcaica como obra cinematográfica. O longa se destaca por sua trilha sonora com arranjos de Erbarme Dich, Mein Gott, da Paixão Segundo S. Mateus, de Bach, que transportam o telespectador ao contexto temporal a que o longa se desenvolve. Além disso, a direção de fotografia, comandada por Walter Carvalho, acentua o sentimento expresso pelo roteiro, com o uso intensivo do contraste entre luz e sombra, que atenua o dualismo ideológico abordado na película.

O longa, que de início se assemelha a parábola bíblica do filho pródigo, se desenrola em um emaranhado emocional de tradições familiares arcaicas que estão prestes a serem rompidas. O mesmo jogo ocorre no longa Abril Despedaçado de Walter Salles, em que Tonho (Rodrigo Santoro) vive uma vida cegamente guiada por crenças, até que se vê liberto para romper as tradições sanguinárias pregadas durante gerações por sua família. Em Lavoura Arcaica, o ato corajoso de abandonar tudo e seguir sozinho rumo a cidade serviu como um estopim para a implosão dos costumes rudimentares impostos pelo pai.

Cena do filme Lavoura Arcaica mostra uma mulher branca jovem, de cabelos castanhos, que usa um vestido branco enquanto dança. Ao fundo da imagem há outras pessoas lado a lado.
Para Ana, personagem de Simone Spoladore, a libertação das tradições ocorre por meio da dança (Foto: Núcleo Luiz Fernando Carvalho)

A produção de uma obra dessa magnitude se mostra muito árdua, principalmente para Luiz Fernando Carvalho, que se lançou na carreira de diretor por meio de Lavoura Arcaica. Mas, apesar da direção exitosa, o longa foi submetido a diversos cortes até ser disponibilizado para sua versão comercial. Com a duração inicial de 3h40, Lavoura Arcaica passou por um processo para enxugar sua narrativa e apresentar todos os pontos relevantes para a película. Apesar de sintetizada, as questões familiares levantadas para promover uma reflexão moral continuam fortemente presentes do começo ao fim do filme.

Mesmo 20 anos após seu lançamento, a mensagem passada por meio de metáforas e simbolismos de Lavoura Arcaica continua forte. Com uma conclusão vaga, apesar de deixar bem explícito ações que se sucederam, o filme se encerra com o questionamento sobre o modo como as pessoas guiam suas vidas. A película destaca os malefícios do código moral cegamente implementado, que se apresenta como uma tradição familiar segura para guiar as gerações futuras. É justamente sobre o desmoronamento dessas crenças que tornam o longa de Luiz Fernando Carvalho em uma obra-prima do Cinema nacional.

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