KICK ii e a catarse apocalíptica do lado escuro e ousado do reggaeton

Capa do CD KICK ii. Arte retangular com fundo cinza. Na parte central está a cantora Arca, uma pessoa transfeminina branca, de cabelo preto e longo, dividido em dois rabos de cavalo. Ela veste próteses pretas que imitam elementos cibernéticos no pescoço, peito, virilha e pernas. No seu lado direito está um clone da cantora, nua, em uma maca, de cabeça para baixo. Seu braço esquerdo, coxa direita e canela esquerda estão com músculos expostos. Em seu torso há seis ventosas que simulam dispositivos de ordenha. Na mão esquerda da Arca localizada no centro está um ovo flamejante do tamanho de sua mão. De seu ombro esquerdo sai um braço mecânico que puxa os músculos da canela esquerda de seu clone. Sua mão esquerda está erguida acima da cabeça e estica um fio de pele da canela esquerda de seu clone. De sua axila direita sai um braço mecânico que segura um pedaço de músculo. Suas pernas estão abertas simulando posição de sumô, com três cintos na altura da coxa e uma meia preta de vinil que vai até acima do joelho, em ambas as pernas. De sua virilha sai um ovo flamejante e abaixo está localizada uma cesta transparente com outros quatro ovos flamejantes. Do lado de seu pé direito, há uma pelúcia de uma criatura branca, com quatro braços e duas pernas que se assemelham a um canguru, e possui um círculo vermelho em sua cabeça. Do lado direito do clone há outra criatura branca, semelhante a anterior, de costas e possui duas caudas. No lado direito da imagem há dois dispositivos de braços mecânicos ligados por cabos aos cintos na coxa de Arca, que a sustentam. Do canto esquerdo até o canto direito, ao fundo, estão cinco corpos humanos sem pele, de cabeça para baixo, apoiado por barras metálicas ligadas a seus pés. No chão, no lado esquerdo da imagem, há uma carcaça de um animal indefinido que está ligado por um cordão umbilical a outras três carcaças no chão, e todas possuem discretas flores roxas e amarelas em sua superfície e ao seu redor.
Na arte oficial do álbum, Arca desmonta e reconstrói a sua essência, com uma referência estética e conceitual à capa de seu single @@@@@ (Foto: Frederik Heyman e Alejandra Ghersi Rodriguez)

Bruno Alvarenga

Alejandra Ghersi Rodriguez moldou sua carreira como Arca de forma selvagem e extrema. Seu estilo característico envolve texturas eletrônicas distorcidas projetadas para engolir e incomodar, além de visuais igualmente extravagantes, cuja temática mistura tecnologia e androginia de forma majestosa. Mesmo antes de dar à luz ao seu primeiro trabalho de estúdio, o disforme Xen (2014), a cantora, compositora e produtora de Caracas já vinha dominando seu território com outras composições autorais, além de parcerias com grandes nomes da indústria musical, como Kanye West, FKA twigs, Björk e Kelela.

No entanto, de maneira surpreendente, após o lançamento de KiCk i (XL Recordings, 2020), álbum que contou com as parcerias de SOPHIE, Shygirl, ROSALÍA e novamente Björk, Arca revelou o lançamento de outros quatro álbuns, completando o grandioso Kick. O projeto completo foi concebido como uma quebra explosiva contra a categorização e uma formulação artística da existência não-binária. Em KICK ii (XL, 2021), segundo capítulo da série, Arca segue o caminho a partir do seu álbum anterior.

Fotografia retangular com fundo preto. Na parte central está a cantora Arca, uma pessoa transfeminina branca, de cabelo preto. Ela usa uma calcinha branca, saltos brancos e próteses que simulam garras em seus dedos das mãos, mamilos e cotovelos. As próteses possuem chamas nas extremidades, como velas. O piso é composto por uma lâmina de água.
KICK ii é sobre celebrar a versatilidade psicossexual explicitamente sobre a transgeneridade e o modo não-binário de relacionar a energia sexual do subconsciente coletivo como uma celebração da vida (Foto: Unax LaFuente)

A faixa de abertura, Doña, demonstra uma combinação abstrata e caótica entre misteriosos vocais sintetizados e sussurros em loop com uma majestosa manipulação de abstratos ruídos eletrônicos. Sobreposições totalmente irregulares, carregadas de texturas sujas, intencionalmente desordenadas e cortantes, criam uma atmosfera que poderia ter saído  diretamente de um jogo de Resident Evil: “Olá a todos/Para quem isso possa ser de interesse/É hora de entrar no fim/Escondido em uma caixa por esses outros”. Arca dá o tom com essa sonoridade familiar, que, no entanto, logo é quebrada pelo embalo hipnótico das próximas músicas.

Em Prada, Ghersi se aproxima novamente com a cultura latina, evidenciando uma combinação única e criativa de cúmbia e reggaeton, como uma clara extensão da proposta vista em KLK, parceria com ROSALÍA; e Mequetrefe, ambas do álbum KiCk i. Através dos versos e do distinto tratamento dos vocais, a canção revela um grito de liberdade sexual e desejo, dominância e submissão, junto à quebra dos papéis de gênero, como é notável no trecho “Eu te dou/Então você me dá, a/Por trás, ei”. 

Lançada conjuntamente com a faixa anterior, como um single que revelou os incríveis visuais e estética propostos para essa nova era, Rakata revive de forma contagiante o instrumental apresentado anteriormente em KLK, e Arca também. Cheio de energia sedutora e impulsiva, a música, que revive versos de sua unreleased Furruco, revela um magnetismo natural em relação à normalização do ato sexual sem constrangimentos e barreiras, com um final festivo que soa como brasas ardendo.

Em parceria com o produtor alemão Boys Noize e o DJ e produtor venezuelano CardoPusher, Tiro revela um estrondo deliciosamente caótico que navega em melodias explosivas – que remetem ao trance dos anos 90 – em contraste com vocais ardentes e dispersos, em que artista venezuelana desfia a geografia de seu país de origem de forma singular e atraente. A faixa também encerra a tríade de abertura do álbum que desconstrói e experimenta a energia sedutora do reggaeton: “Dá uma loucura, dá uma loucura/Chupa essa pepa como um mango bajito/Dá devagarinho, então você acelera/Quebra esse quadril/Ah, que divertido!/Até os ossos colidirem”.

Com Luna Llena, Arca apresenta uma melódica inversão do som desconstruído anteriormente, através de uma linda e potente performance vocal. A música possui uma carga dramática e emocional que remete à bela melancolia presente em seu homônimo de 2017. Conduzida de forma mais lenta com ritmos que flutuam em uma atmosfera sonhadora, a faixa é um destaque específico e está entre as músicas mais potentes da carreira de Ghersi até hoje. Ademais, Luna Llena pode também ser vista como uma homenagem e referência a sua amiga e colaboradora escocesa SOPHIE, falecida em 2021 após sofrer uma queda enquanto apreciava a vista da lua cheia.

Fotografia retangular com fundo de quarto com paredes azuis e chão e teto brancos. No lado esquerdo há uma cama coberta com tecido e cortinas vermelhas que se estendem até quase encostar no teto. Sobre a cama está uma silhueta humanóide coberta com uma roupa de látex preto com unhas longas, cauda fina, ombros pontudos e um par de chifres longos no topo da cabeça. Sentada na beirada da cama, do lado direito da imagem, está a cantora Arca, uma pessoa transfeminina branca, de cabelo preto. Ela veste um vestido preto esvoaçante e volumoso. No chão, na parte inferior esquerda da imagem, uma cobra se estende até os pés de Arca. No canto superior direito, em letras brancas com transparência, está escrito “Vogue” em caixa alta.
“Você não sabe o que me custou para chegar até hoje com vida/Você não sabe” (Foto: Tim Walker/Vogue México)

Lethargy quebra o ritmo e conduz o ouvinte à segunda metade do álbum. Com batidas que exploram graves profundos mesclados com melodias de piano de forma lenta e abafada, a faixa revela uma maior profundidade sonora com vocais processados e samples de respirações ofegantes e claustrofóbicas. Após Arca consolidar a obra em um formato consistente, a partir de Araña o álbum se desmancha intencionalmente em mutações. Com instrumentais irregulares e batidas sombrias, é retomada a energia obscura anunciada pela faixa de abertura, Doña.

As influências de seus EPs anteriores Stretch 1 & 2 (UNO, 2012) são nostálgicas e descontroladamente construídas a partir de um ritmo duro e instável, que se contorce, balança e desliza sem controle como as pernas de uma aranha enquanto come e suga os líquidos de sua presa, como evidenciado em “E vire, volte, e toque”. A seção final apresenta um a capella, com um misto de vozes e entonações profundas e emotivas, formando um coro personificado das múltiplas personalidades de Arca ao longo de sua carreira e evolução como artista, seguido de uma explosão final.

Fotografia retangular com fundo preto. Na parte central, vista de lado e se apoiando sobre suas mãos e joelhos, está a cantora Arca, uma pessoa transfeminina branca, de cabelo preto e longo, que cai sobre seu quadril. Ela usa vestido branco rasgado em seus glúteos. Ela possui unhas brancas compridas e próteses brancas que simulam um chifre em seus cotovelos. Ela usa uma prótese metálica preta nas pernas, que vão desde a metade de sua coxa até seus pés, onde a prótese se estende e simula pés de cascos.
Ghersi mergulha fundo em sua estética mutante, com suas características próteses mecânicas, de forma angelical (Foto: Unax LaFuente)

A faixa seguinte, Femme, contribui ainda mais para a construção da abordagem sombria do restante do álbum, com batidas opressivas muito similares a sua mixtape de estreia &&&&& (XL, 2013). Muñecas, parceria com Mica Levi, mostra como a artista venezuelana constrói sua essência puramente experimental na Música. Lentamente, a faixa se molda com melodias submersas que mesclam vozes sobrepostas e letra cíclica, como uma oração: “Todas as minhas bonecas”.

Em Confianza, combinando vocais distorcidos e melancólicos com um turbilhão de inquietantes sons de piano, Arca demonstra mais uma vez a singularidade que é capaz de proporcionar em cada música ao abordar intimidade e vulnerabilidade de forma anárquica. Os últimos 30 segundos da faixa soam como um angelical e satisfatório fechamento para o set, mas, logo em seguida, o desconforto crescente da segunda metade do álbum se dissolve em Born Yesterday.

Fotografia retangular com fundo preto. Na parte central está a cantora Arca, uma pessoa transfeminina branca, de cabelo preto. Ela usa maiô branco e saltos pretos. Ela está sentada em um banco cilíndrico branco que se expande na altura do assento em um elemento disforme que se assemelha a espuma acinzentada. Ela está com o corpo virado para o lado esquerdo e o rosto para frente. Sua mão esquerda possui unhas brancas longas e repousa sobre seu peito, segurando uma corda branca com partes rosadas e azuladas. Sua mão direita está erguida acima da altura da cabeça, e possui uma luva branca que vai até seu cotovelo, onde possui uma prótese branca que simula um chifre.
Juntamente com o flerte à sonoridade do mainstream, Arca apostou em um aspecto mais polido para o vídeo do primeiro single de KICK ii, Born Yesterday, mantendo sua essência em uma performance dramática de tirar o fôlego (Foto: Unax LaFuente)

Feita para grudar na cabeça, a faixa traz os vocais poderosos e melódicos de Sia para demonstrar amor, infidelidade e conflitos internos, com um toque pulsante de piano e misteriosos sintetizadores, marca registrada da artista venezuelana. O primeiro single lançado para o KICK ii era, na verdade, uma faixa demo de 2013, escrita por Sia para Katy Perry, e que integraria seu álbum Prism. A canção acabou sendo descartada, até cair nas mãos de Arca.

Definitivamente, Born Yesterday não era o que os fãs esperavam de Ghersi, porém os retalhos instrumentais e poéticos se encaixam ao propósito profundamente pessoal da obra. A artista demonstra mais uma vez a capacidade de transitar entre estilos musicais de forma sempre imprevisível, mesmo que anticlimática. Por fim, Andro retoma e se encaixa à atmosfera crua da faixa inicial, com sintetizadores subterrâneos e um embalo absorvente que conduz o ouvinte ao espetáculo final do set.

Arca, uma verdadeira Diva Experimental, segue um caminho tortuoso ao dar continuidade ao seu Kick primogênito, e novamente nos leva a mergulhar numa viagem de texturas sonoras ríspidas dentro de seu complexo mundo. Adentrando esse universo de possibilidades, a artista utiliza seus próprios sentimentos como principal componente conceitual. As canções discutem vivência queer, sexualidade, gênero e ancestralidade com uma ternura sensível e particular, que apesar de sedutora e “acessível”, talvez não atraia ouvintes não familiarizados com seu estilo único.

Em KICK ii, Ghersi se lambuza ao experimentar novas possibilidades e brinca com ritmos, como evidenciado nas faixas de abertura do álbum – Prada, Rakata e Tiro –, em que ela estreita sua relação com suas raízes latinas de forma mais profunda. Ainda assim, enquanto a primeira metade do CD encanta e surpreende pela imensidão de ideias e domínio criativo impecável da artista, conforme se aproxima da conclusão, especialmente após Araña, as músicas soam arranjadas de maneira irregular e encaixadas como possível material não entregue no álbum anterior.

Deixe uma resposta