I like it when you sleep: 5 anos de um massacre

Capa do álbum I like it when you sleep, da banda The 1975. A capa é um quadrado claro e mostra uma estrutura retangular apoiada num pano. Os lados do retângulo estão acesos na cor rosa claro, o fundo é bege e o chão é branco. Vemos um fio saindo do retângulo e no centro dele está The 1975 em luz rosa claro.
“Eu suponho que você não saiba para onde esse trem vai” (Foto: Reprodução)

Vitor Evangelista

Ninguém estava preparado para o show que o quarteto conhecido como The 1975 armaria em seu segundo trabalho de estúdio. I like it when you sleep, for you are so beautiful yet so unaware of it, que nasceu em 26 de fevereiro daquele profético 2016, completa cinco anos refletindo com veemência a narrativa que a banda começou no início da década e finalizou cruelmente no ano passado.

Sempre refletindo o eu lírico do vocalista Matty Healy, o The 1975 encontrou seu auge aqui, num invólucro magnético de 17 canções estupendas, barulhentas e fatiloquentes. É em I like it when you sleep que Healy começa a tirar o foco apenas de si. Ele veicula suas dores e vícios, no processo de investigação da nascente de tanto sofrimento, o que acabaria desaguando nos trabalhos seguintes, com proficiência em Notes on a Conditional Form, lançamento mais recente e que coloca o frontman como espelho do mundo que constantemente o agride.

Lar da primeira canção composta para a banda (Lostmyhead), as intervenções do disco aniversariante variam entre lambeção e choradeira. A primogênita nasceu em 2008, num período onde Healy se via perdido e solto entre relações. Sua saúde mental precisava ser documentada, o derradeiro processo de deterioração de pensamentos. O que, como é de praxe no trabalho dos britânicos, acabou se repetindo numa porção de faixas. Ele chega a criar metáforas absurdas, como o cérebro fugindo para paquerar garotas (The Ballad of Me and My Brain), até descrever seu sonho acordado de ser amado de volta (no piano suado de This Must Be My Dream). Ainda retificando seu lugar no centro do Sistema Solar, o vocalista, compositor e produtor das faixas começa a rachar sob pressão.

Ensaio fotográfico da banda. Vemos um fundo rosa e quatro homens agrupados, todos são brancos. O primeiro tem cabelos pretos e barba preta, além de vestir roupas pretas. Ao seu lado, vemos um de blusa azul, que abraça Matty Healy, que está com sua camisa preta desabotoada. Ele tem duas tatuagens no peito, cabelo preto na altura dos ombros e está de sombra azul nos olhos. Na direita da imagem está o quarto integrante, cabelos loiros e terno vermelho.
“Você costumava ter o rosto saído direto de uma revista, agora você parece com qualquer uma” (Foto: Reprodução)

A estreia do grupo em 2013 representava muito do mergulho na fama e nos vícios, sejam as drogas injetáveis e a bebida alcoólica e a constante paixão de Healy por se machucar nos namoros e casos românticos que cultiva. A jornada de sobriedade do cantor, visível quando presenciamos o quadro completo da tetralogia de álbuns, começa a se complicar no segundo registro de estúdio. 

Ele duvida de si mesmo, duvida daqueles ao seu redor. Ele canta e grita sobre ser querido e reverenciado, mas surrupia pequenos alertas e pedidos sutis de socorro, um prelúdio de todo o core de A Brief Inquiry Into Online Relationships, disco de 2018 gravado antes e depois da estadia de Healy numa clínica de reabilitação. Love Me, a epítome do negacionismo de seus problemas com drogas, é uma canção que a princípio não tinha lugar no álbum, mas o grupo encaixou-a logo de cara, deixando explícita a direção seguida naquele momento da jornada do The 1975.

UGH!, faixa que debate abertamente o uso de cocaína, cria imagens visuais muito fortes de comportamentos e situações triviais entre os junkies. Matty Healy escreve com propriedade e decência a rotina e os termos próprios, ele lamenta mas não lamuria, ele repete com convicção que “não tem capacidade para foder, você deveria estar me ajudando”. O cantor quebra a estrutura de metal que o sondava em Sex, cantando sobre boquetes e amantes, elevando seu grau de composição e ritmo, ironicamente glamourizando essa vida de excessos e desgastes, coisa que critica mais tarde em Paris, o MVP de I like when you sleep.

Com um título gigante desses, o CD assume sua prepotência sem pestanejar. Traço bem-vindo para a banda que adora manter padrões, como a faixa 1 sempre levar o nome do grupo mas sofrer a metamorfose que o disco impõe. Dessa vez, Healy sobrepõe vozes ao seu canto (algo inédito até então, mas que depois viraria costume), além de ecoar sem medo a meia dúzia de frases que repete. Fora isso, os versos são idênticos aos do debut, mas recebem um tratamento diferente do comum, apostando na sinfonia de sussurros e do reflexo das palavras, o que significa muito considerando os rumos tomados por I like it when you sleep, for you are so beautiful yet so unaware of it.

Caminhos que dão em lugar nenhum no campo emocional. As guitarras arranham os ouvidos, é quase como ouvir um fantasma tocando rock. A banda respira entre brados. A Change of Heart ganhou um clipe sinfônico e soturno, a música soa como molhar os pés estando de meia, é uma tristeza aguda, mas irreversível. Matty Healy se apaixona pela solidão. “Você costumava ter o rosto saído direto de uma revista, agora você parece com qualquer uma”, ele murmura, sentindo falta de como se sentia no passado.

O britânico sente saudades de ser feliz, revelando essa lacuna de um propósito, o que guia o The 1975 a parar de focar apenas no vocalista e começar a ouvir seus arredores. Nana, escrita para a falecida avó de Healy, coloca a megalomania em pausa enquanto ele dedilha notas simples, admite a saudade das unhas vermelhas e de poder contar coisas novas à avó. A criação de um sentimento humano muito relacionável, que descasca ainda mais a delicadeza de seu coração. A dor e o luto são tantos que a banda não toca Nana em seus concertos, relegando a experiência de ouvir tamanha emoção e destrutibilidade apenas no CD.

Ensaio fotográfico da banda. Vemos um fundo rosa e quatro homens agrupados, todos são brancos. Eles estão num ambiente escuro, iluminado por um vital com as palavras I like it when you sleep, cada palavra é iluminada por lâmpadas rosas. De cada lado do vitral retangular, está pendurado um quadro. À esquerda, está um homem de cabelos e barbas pretos, jaqueta de couro e suéter marrom. Ao seu lado, Matty Healy, de cabelos à altura do ombro, jaqueta de couro e blusa estampada xadrez. Do seu lado, um homem de casaco bege e ao seu lado um loiro de jaqueta escura e camiseta branca.
“Me sentei com você do lado da cama e chorei pelas coisas que eu gostaria de ter dito, suas unhas ainda estavam pintadas de vermelho, e se eu viver por 72 anos, espero ser metade do quão legal você era” (Foto: Reprodução)

Se o breque emocional do disco acontece em Nana, o grupo pisa no freio literal duas outras vezes. Primeiro, na faixa-título. Nomeada com pompa, honestidade e também com o sentimento mais simples do amor, a música instrumental experimenta nossas excitações e expectativas. “Outras formas de arte, como literatura, cinema e pintura, são todas sugestivas de como alguém deve se sentir. Música ambiente comanda como você se sente”, foi o que Healy falou, justificando as investidas ambientes do The 1975. O mesmo ocorre em Please Be Naked, registro necessário para que o baque de I like it when you sleep seja sentido por completo. Os trabalhos seguintes apostaram mais e mais em canções sem vocais para elucidar o íntimo do eu-lírico sem mesmo precisar abrir a boca.

Mas quando eles abrem a boca, meu amigo, é aí que a fascinação acontece. The Sound começa com pulinhos da audiência, eles cantam para si, “eu sei quando você está por perto pois conheço o som do seu coração”, Healy explode o refrão antes da canção propriamente começar. É o rock melado se encontrando com o pop melódico das rádios dos anos 90. É o casamento perfeito da canalhice, do perfume barato e do buquê de flores acompanhado de uma caixa de bombons em forma de coração. Ele não se importa de mentir para ela, ele só quer que tudo isso passe logo. Afinal, tem jeito mais fácil de identificar quem amamos, se não pelos batimentos cardíacos dela? É como decorar sua música natural e involuntária.

Na hora de falar sobre o que não podemos controlar, o The 1975 brilha. If I Believe You é Matty Healy tocando a campainha do Céu. Ele está impaciente esperando Deus atendê-lo e desafogá-lo de suas dúvidas e dores, suas insuportáveis dores. A honestidade e o cansaço são guias, “eu achei que tivesse te encontrado uma vez ou outra, mas só foi porque a bagatela era boa”, é o que canta, revelando sua confusão. São mais de seis minutos nessa jornada, uma canoa num rio sem corrente. Navegamos batendo em pedras, mas seguros de que nada interromperá o caminho. She Lays Down fecha o disco explorando a depressão pós-parto da mãe de Healy, que preferia que o avião despencasse-os para a morte do que lidar com as perguntas que receberia da família.

Ensaio fotográfico da banda. Vemos um fundo rosa e quatro homens agrupados, todos são brancos. Eles estão num ambiente claro, com o vitral aceso com as palavras I like it when you sleep. Existe um quadro retangular na parede atrás deles. À esquerda, um dos membros está sentado num objeto branco, ele está com o pé apoiado para a frente, a sola apontando para a câmera. Ao seu lado, está agachado um homem de blusa lilás de gola alta e calça preta. Ao meio está o vitral aceso, ao seu lado está Matty Healy sentado no chão com o joelho levantado e usando roupa xadrez. Em pé, na direita, está um homem de barba e cabelos pretos com casaco preto. Todos olham para a câmera.
“Se estou perdido, como vou me encontrar?” (Foto: Reprodução)

Os 5 anos de I like it when you sleep prudentemente envelhecem as ideias de controle e paixão da banda. Matty Healy comandava seus vícios com medo do amanhã, mas dopado o suficiente para seguir cantando sobre as drogas e a obsessão da fama. Ele sentia falta de Paris, das brisas calmas e dos seios de alguém. A batida inebriante nos hipnotizava como o canto da Iara. “Eu acho que gastei todo o meu dinheiro e os seus amigos”, Healy teme na melhor canção do disco. A preocupação de 2016 não tem mais lugar para o The 1975 de 2021, ainda bem. 

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