Persona Entrevista: Tobias Carvalho

Autor de As Coisas, obra vencedora do Prêmio Sesc de Literatura que debate a sexualidade de homens gays na contemporaneidade, o escritor porto-alegrense surge como guia de uma viagem onírica em Visão Noturna

Arte retangular horizontal de fundo vermelho. No lado esquerdo, foi adicionado o texto "PERSONA ENTREVISTA" na vertical, repetidas vezes. No centro, foi adicionada uma foto em preto e branco do autor Tobias Carvalho. No lado direito, foi adicionada uma imagem da capa de seu livro "Visão Noturna", e acima, foi adicionado seu nome, "tobias carvalho".
“Nós estamos criando Literatura, a gente não quer que a bandeira ou a temática fique na frente do nosso projeto, da nossa obra, do nosso trabalho”, diz Tobias Carvalho (Foto: Applause Produtora e Todavia/Arte: Vitória Vulcano)

Bruno Andrade e Enzo Caramori

Visão Noturna é um daqueles livros que fechamos com certa melancolia. Suspiramos lentamente e refletimos sobre as palavras ali dispostas, as ideias ocultas por trás de cada linha, sem a vontade de ter terminado a leitura – mas talvez ela nunca termine, talvez permaneça em nossas cabeças por dias até ser esquecida e lembrada em um sonho distante. Meses depois do lançamento da obra, Tobias Carvalho vem ao Persona Entrevista contar sobre seu processo de escrita e as questões que cercam suas concepções literárias.

Nascido em 1995, o autor porto-alegrense recebeu o Prêmio Sesc de Literatura em 2018, pela obra As Coisas, coleção de narrativas em que se debruça sobre as relações homoafetivas no frenético mundo do imediatismo e aplicativos de relacionamento. Mas seu interesse pela Literatura surgiu ainda criança: havia uma paixão pelos livros, uma vontade idealizada de se tornar escritor, embora ancorada num futuro distante, numa ideia de exercer a profissão ao se aposentar com sessenta anos, mesmo que hoje em dia a ideia de se aposentar aos sessenta tenha “ficado para trás”.

Contudo, no começo da vida adulta, a leitura da coletânea de contos Dentes Guardados (2001), de Daniel Galera, abriu a mente para a possibilidade de não esperar tanto tempo. “Li um livro do Daniel Galera, que eu já amava e descobri que ele tinha publicado um livro quando tinha 21 anos, o primeiro livro dele. E eu tinha 21 anos na época, quando li, e pensei: ‘tá, talvez eu não precise esperar todo esse tempo pra publicar’”. Motivado pelas leituras – e de forma despretensiosa –, Tobias Carvalho ingressou em oficinas de Escrita Criativa, quando, então, começou a “ter essa disciplina de escrever e pegar gosto por escrever”. Nesse processo, surgiu As Coisas.

“Eu escrevia bastante sobre a experiência gay e jovem e resolvi montar meu projeto em volta disso, e, bom, surgiu o Prêmio Sesc que mudou muito a trajetória” (Foto: Record)

Como é pra você ter um livro de estreia premiado? Você acha que isso dificulta ou que isso incentiva próximas produções?

Tobias Carvalho: “Eu acho que, por um lado, facilita, porque é uma porta de entrada e assim, eu saí da editora Record, fui para a Todavia, então fiz um monte de contatos, conheci um monte de escritores, foi muito legal. Mas eu fiquei bem ansioso para o segundo. Passei por um período, aí no meio, de jogar um livro fora, porque entrei numa piração de que eu queria fazer uma coisa muito experimental e ir para um outro caminho, me provar, mas multiplicado por dez. E não deu certo, e aí foi muita ansiedade. Eu acho que eu escrevia muito sem nenhuma pretensão antes e eu não tinha nenhuma rotina, escrevia quando me dava na telha, e aí depois, quando o negócio deu certo, eu comecei a me botar uma pressão tipo ‘bah, tá, agora o que eu vou escrever depois?’. E claro que, também, depois que eu comecei a colocar as coisas em contexto, me tranquilizei um pouco. Então a coisa andou um pouco mais depois.”

 

Aproveitando que você comentou sobre esse início, quais são os movimentos, que o mercado e o público fazem, com um autor gay, que estreia com um livro sobre temáticas gays? Porque se discute muito a questão de autores serem nichados, a produção sempre ser nichada numa única temática. Como é sua relação com essa dinâmica?

Tobias: “Bah, boa pergunta. Quando eu escrevi As Coisas, eu tinha a impressão de que se escrevia pouco sobre aquelas coisas que eu estava interessado em escrever. Não só que se escrevia pouco, mas percebi que na mídia em geral [era pouco retratado] – nos filmes, nas séries. Na época que escrevi o livro, que foi ali em 2017, eu achava que a produção estava muito centrada em volta de aceitação e ‘sair do armário’, e achava que tinha umas histórias ali que precisavam ser escritas. Depois que tu sai do armário, como é que são as relações?”

“Numa relação entre dois homens, que foram criados nesse sistema machista em que o homem pode desejar e pode fazer o que ele quiser, qual que é a diferença da relação dos dois homens pra relação de um homem e uma mulher? O livro fala bastante sobre as relações efêmeras, os aplicativos de encontro, o ambiente super urbano. Os personagens são jovens, então entram umas coisas que, naquela época, me pareciam mesmo novidades – não pra mim, mas pra Literatura, talvez. E tentei escrever de uma maneira bem despudorada, sem muita vergonha.”

“Eu não tava me propondo a escrever um livro que fosse uma representação de todos os gays, era um recorte bem específico” (Foto: Gustavo Roth/Agência Preview/Folhapress)

Depois de sua primeira experiência como autor, o desejo de Tobias era explorar outros temas muito além da sexualidade. “Para o meu segundo livro, eu pensava ‘não quero que as pessoas pensem que a única coisa que eu tenho como habilidade para escrever é uma temática, eu quero escrever sobre outra coisa, quero mostrar que não é só isso, não é só esse tema que eu tenho dentro de mim’”.

Três anos depois, o escritor lançou Visão Noturna, obra com quatro contos distribuídos em pouco mais de 100 páginas, na qual investiga o mundo onírico – os sonhos perdidos, lúcidos, enganadores –, em uma viagem por vezes vertiginosa, misturando realidade, fantasia e memória. Tentando desvincular a ideia de que suas obras são pura autobiografia – e se afastando da ideia de que tudo é autoficção –, o autor brinca com o ambiente fantástico, através de “coisas impossíveis de acontecer”. No último conto, intitulado Eu tenho um sonho recorrente, em que o protagonista passa a ter sonhos com seu arqui-inimigo nos tempos de colégio, Tobias Carvalho joga com as possibilidades de interpretação, e deixa no limiar da compreensão a identidade do personagem, através de uma dinâmica entre autor e leitor ancorados na própria configuração do livro.

Nos quatro contos de Visão Noturna, os personagens encontram, através dos sonhos, um caminho para os labirintos da memória e para as promessas de futuro (Foto: Todavia)

Algo muito interessante no Visão Noturna é uma certa facilidade sua em flertar com outros gêneros. A segunda narrativa, Arromanticidade, tem um início que lembra muito o conto Encarnações de crianças queimadas, do David Foster Wallace, que está no livro Oblivion. A terceira narrativa parece uma história não-ficcional mesmo, e se ninguém avisasse que se trata de ficção, pareceria a história narrada de uma reportagem. Você trouxe a temática do sonho para pensar sobre a vida mundana ou justamente o contrário, destacar o caráter extraordinário do ato de sonhar? 

Tobias: “Eu adoro o Foster Wallace, mas eu não li o Oblivion, então não foi uma referência, mas eu pretendo ler. O outro conto que tu falou, quando eu mandei o livro para a editora, ele tinha 3 contos só, não tinha aquele. Meu editor falou pra eu escrever algum outro conto e eu queria fazer algo que tivesse uma vibe meio não-ficção. Eu li A Casa, do Chico Felitti, que fala sobre o João de Deus, e eu adorei, eu tava devorando e comecei a ficar fascinado. Como que um cara consegue escrever uma história de não-ficção que eu já sei alguns detalhes, sei o que aconteceu com o João de Deus, mas eu lia aquilo de uma forma muito ‘o que é que vai acontecer?’, porque está escrito de uma maneira muito fantástica. Então eu queria fazer uma coisa meio assim também. Uma história de ficção que parecesse um pouco um texto de não-ficção, e o Foster Wallace também tem umas piras assim, acho bem legal isso.”

“Mas, sobre o sonho, há uns anos eu entrei muito nessa pira do sonho lúcido, por causa de um filme que eu vi, Waking Life (2001), do Richard Linklater, que explodiu minha cabeça, e aí comecei a me interessar por sonho lúcido e comecei a fazer diário do sonho, comecei a tentar ter sonho lúcido de verdade, meio que entrei numa pira parecida com a do personagem [do primeiro conto do livro, Turno da noite], e isso faz uns bons 7 anos. Eu sempre pensava que queria aproveitar isso algum dia, sabe, na Literatura, porque era um assunto muito fascinante, tu sonhar sabendo que tá sonhando, o potencial de quantas possibilidades isso pode te dar? No Visão Noturna, principalmente no primeiro conto, isso entra como uma coisa. Acho que o desafio é gostar do assunto ‘sonhos’, mas sonho é um negócio que na Literatura é meio batido, tipo: com Borges, Kafka e Cortázar, como se escreve sobre sonhos sem soar batido?”

“Eu tinha começado a escrever Arromanticidade, que é sobre uma mãe e uma filha, e era uma história meio chocante, meio Big Little Lies, da mãe que não tem tanta grana em uma escola de ricos… Eu queria escrever uma história assim e enfiei um sonho ali no meio. O processo foi: eu quero que essa história esteja dentro do livro, o que eu faço? Depois, o sonho aparece de uma forma um pouco mais sobrenatural. No último conto, o personagem vai numa jornada meio psicanalítica pra tentar se entender, e aí já é uma maneira mais convencional de olhar o sonho. O Sidarta Ribeiro tem uma tese de que, nos nossos tempos [na contemporaneidade], a gente está cada vez mais desconectado dos sonhos e de si de uma forma geral, porque o capitalismo nos bota nessa coisa frenética de produção, então a gente sonha menos, a gente pensa menos sobre nós mesmos, a gente medita menos e, enfim, ele [o Sidarta] vê esse potencial enorme do sonho na conexão consigo mesmo, sabe? No fim das contas, eu acho que talvez o livro tenha essa visão de mundo também.”

Não é à toa que essa visão é o que faz os mergulhos literários de Tobias nas temáticas do sonho serem atravessados pela motivação de significar uma realidade destituída de sentido, ainda mais no Brasil contemporâneo, inserido em um plano político tão bárbaro de desmonte. A atemporalidade e a suspensão do real no desenvolvimento narrativo dos contos permite variadas leituras, do distópico ao surreal, que conseguem achar, em suas estruturais improbabilidades, maneiras de entender o que antes era impensável de acontecer e agora não é apenas real, mas comum.

No entanto, o escritor não pretende alocar na fantasia sua forma de Literatura e de tradução do mundo. Os aspectos das convivências individuais, nas quais se impera um olhar literário mais microscópico, se faz ideal para entender o individual perante as movimentações e os barulhos político-sociais da atualidade. Em referência ao primeiro conto do brutal O Deus das avencas, de Daniel Galera, em que, no mais cru realismo, se narram as ansiedades de um casal que espera o parto de um filho no dia da eleição de Jair Messias Bolsonaro, Tobias afirma: “Pra mim, falar sobre relações humanas no meio desse caos ainda é o que me interessa.” Nisso, já discorre sobre remontar sua produção, no retrato de uma realidade que lhe é mais próxima, em que consegue se debruçar e esmiuçar – “eu voltei um pouco pra viadagem, voltei um pouco pra essas coisas.”

“O Cinema sempre é uma inspiração” (Foto: Valeria Gonçalvez/Estadão)

Na introdução do livro Um apartamento em Urano, do Paul B. Preciado, ele diz que nenhuma vida pode ser plenamente narrada ou avaliada em sua felicidade ou em sua loucura sem levar em conta as experiências oníricas”. Nisso, ele se propõe a uma percepção do sonho enquanto algo representativo da vida. Para você, o que representou, na sua carreira enquanto escritor, escrever e pensar sobre sonhos?

Tobias:Quando eu fui escrever meu segundo livro, passei por uma certa crise. Eu havia jogado um romance fora e me deparava com algumas questões: ‘sobre o que eu vou escrever?, ‘Sobre o que que vai ser meu segundo livro?’, ‘Teve um primeiro e agora qual que vai ser o segundo?’, ‘Qual o tema que eu quero escrever?’. Meio que fui pra uma obsessão que eu já tinha. Então, não foi ‘vou escrever sobre o assunto quente do momento’ e também não foi sobre uma coisa que eu não fazia nenhuma ideia e teria que estudar pra escrever. De uma certa forma, foi uma zona de conforto, por já gostar desse tema. Eu tenho bastante orgulho do livro, acho ele melhor do que o primeiro, apesar de que ele vai pra um caminho bem diferente. Mesmo achando que, em geral, as pessoas tendem a gostar mais do primeiro, é um livro que eu fico feliz de ter escrito. Penso que talvez ele toque menos as pessoas porque o tema de sonhos não deixa as pessoas tão interessadas.”

Mas, no fim das contas, o que tem dentro do livro são histórias e acho que esse foi um desafio, porque o sonho é um negócio que é muito sem sentido, sem lógica e sem norte, é bem diferente das narrativas. Normalmente as narrativas precisam ter um porquê, elas precisam ter uma direção e acho que o desafio era como escrever sobre sonhos, fazendo uma história que seja interessante em volta. Pra mim, ficou interessante – que coisa mais estranha de se falar, sobre o próprio livro. Mas é.”

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Sua ficção, mesmo quando regada de misticismo, não consegue ser entendida à parte de sua contemporaneidade, muito baseada na porosidade de seus escritos às influências de outras linguagens artísticas e comunicacionais. O conto Arromanticidade, de seu segundo livro, é preenchido por recortes metalinguísticos que, de certa forma, explicitam ao leitor o processo de formação das imagens literárias do texto em algo que quase se assemelha a um roteiro, orientando as maneiras do olhar e do imaginar das passagens.

Enquanto muitos escritores relutam em entender a internet como recurso expressivo na narrativa, o autor, principalmente em As Coisas, estrutura contos inteiros na negociação de afeto mediadas por apps de relacionamento, ou até mesmo na reprodução de chats, como no Se me coubesse eu ficaria, que firma um tom quase que concessivo de uma intimidade, como se fosse um print revelado em segredo. De perfis fake a mensagens de texto, essa relação estrutural com a tecnologia só tende a se reforçar em seu futuro projeto.

Nada se move nessa Literatura com um tom que não seja o singelo interesse na criação acerca de algo que, já tão cotidiano, é pouco resvalado pelo transformar artístico. Nesse genuíno assombro, de como a internet e a tecnologia conseguem mudar nossas percepções e sociabilidades, é onde a prática de Tobias encontra sua dinamicidade. O autor encontra a Literatura no mais oriundo dos episódios, como na vez em que sua amiga lhe perguntou se havia chegado em casa e, ao se deparar com as opções de resposta recomendadas pelo seu celular, despertou-se para os vários sentidos que essas mediações da vida real são capazes de trazer: ‘‘‘Sim’, ‘ainda não’ e ‘cheguei sim, amor’. Eu achei muito engraçado porque parece que meu celular tava acobertando, sabe macho que trai a mulher? […] Bah, isso tem que ir pro meu romance. Sugestões que o celular vai fazer de resposta, daí dá umas sugestões e o personagem escolhe uma delas.’’

Pensando na playlist que você fez para acompanhar a leitura de Visão Noturna, qual é o papel da Música na sua escrita e qual foi, em especial, a influência dessas canções nos contos?

Tobias: Bah, música é um negócio que sempre quando eu tô escrevendo um livro eu faço uma playlist, porque tem umas músicas que eu acho que combinam demais com os personagens. Tô o tempo inteiro ouvindo música e aí, às vezes, parece que dá pra traduzir muito facilmente um sentimento em uma música, mais do que num livro, então, me facilita muito ficar pensando essas seleções, pensando canções que tem a ver com os livros porque me bota um pouco no… Eu jurei que não ia usar essas palavra, mas, mindset, sabe? Porque eu boto a playlist e já entro naquilo de novo. Gosto disso.”

“No primeiro conto de Visão Noturna tem uma coisa meio caótica e eu gosto de fazer umas brincadeiras. Inventei uns nomes ali e os nomes dos livros são nomes de músicas, mas também tem um cientista que tá lá que é o Stephen LaBerge, que existe de verdade. Acho que essa mistura de real com não real tem a ver com o sonho, tem a ver com o livro. Na primeira versão, a autora do Life in The Vivid Dream era pra ser o nome da Grimes, o nome real dela, e aí meu editor não deixou, ele falou: ‘ah não, não vai ficar dando essa piscadinha aí pro leitor, não vou deixar.’”

Você acredita que suas temáticas são concebidas de uma maneira mais psicológica e íntima ou mais generalista, centrada nas ações? Ou são as próprias histórias que determinam essa maneira de narrar? Existe algum processo que te faz pensar nessas formas de guiar sua escrita?

Tobias: “É que, às vezes, o processo criativo vem de uma forma tão caótica. Digamos que eu tô tendo uma conversa com amigos e me vem um insight: a conversa chega num ponto legal, ouço uma frase, vou, finjo que tô no Instagram mas tô no meu Google Drive, e anoto. E daí, fico pensando onde que eu poderia encaixar aquele insight, porque agora tô escrevendo um romance e tem um narrador em primeira pessoa que é um personagem de tal e tal jeito, então ele não pode dizer qualquer coisa, qualquer frase, em qualquer entonação, sabe? Só que, às vezes, tu anota o negócio e em outra história aquilo vai se encaixar. Tem personagens que vão pra esse caminho mais íntimo, como você disse, tem outros que não, e eu acho que tem histórias que, se tu quer abordar entrando na filigrana mais psicológica, tu começa a escrever de uma outra maneira.”

“Eu acho que em Visão Noturna, por exemplo, os personagens são meio estranhos. Eles vão vivendo as coisas com umas reações meio robóticas. Acho que o livro todo é meio estranho, eu tava experimentando com outras formas, escrevendo em terceira pessoa, que era algo que eu queria testar e fazer mais. E, enfim, pra mim, meio que fechou as duas coisas. Tem uma parte mais psicológica, principalmente na última história, que o personagem até estuda sobre psicanálise e tal, mas tenho impressão que eu gosto que, nas minhas histórias, as ações sejam mais importantes do que a psicologia interna do personagem. No As Coisas também, eles vão experienciando os acontecimentos e as ações que vão montando o cenário, em vez de partir do personagem.”

“Uma coisa que aconteceu bastante com As Coisas foi que as pessoas achavam que as histórias tinham acontecido comigo, e existia meio que uma curiosidade. Eu queria que, no segundo livro, ninguém achasse que tinha algo de autobiográfico” (Foto: Robinson Estrásulas/Agencia RBS)

E talvez seja esse enfoque nos acontecimentos e na materialidade das relações desses personagens, homens gays negociando seus desejos na cidade de Porto Alegre, que fazem as narrativas de As Coisas serem um novo ponto no imaginário literário e cultural das homossexualidades brasileiras (um espaço antes demarcado pelo também gaúcho Caio Fernando Abreu).

Distanciando-se de uma visão universalizante, que, no fundo, cerceia um entendimento de pluralidade nas vivências da sexualidade – pois, afinal, não são as mesmas para ninguém, mesmo que se partilhe a mesma letra da sigla –, Tobias entende que a representatividade deve existir na liberdade de um escritor produzir o que quiser, quando quiser; no exercício de representação de uma comunidade que seja espontâneo e relacionado à livre expressão do artista.

“De umas décadas pra cá, a gente começou a fazer mais Literatura que fala de vozes que não eram ouvidas antes, seja de autores negros, autores LGBTQIA+ e autoras mulheres. Daí, a partir disso, entrou uma cobrança de que essas pessoas que estão escrevendo, que antes não eram escutadas, escrevam sobre a experiência delas e sobre esses temas que agora o mercado decidiu que é legal ler.”

Mas, se existe algum imperativo na representatividade, segundo o autor, é “escrever sobre todo tipo de experiência que está acontecendo e que a gente está passando.” Um vasto leque de realidades e fantasias LGBTQIA+ – desde os clichês românticos de Heartstopper às relações disruptivas, como em Ricardo e Vânia, de Chico Felitti – consegue estabelecer um território para qual se pode voltar no exercício de reflexão dos limites, a serem sempre superados, do exercício social dessas sexualidades e identidades.

“Fui pelo caminho de sonhos lúcidos, acidentes domésticos, traumas de infância, assassinatos insólitos, mediunidade, psicodelia e obsessão. Ou seja, mudei um pouco o foco”, escreveu Tobias Carvalho no seu perfil no Instagram, se referindo a Visão Noturna (Foto: Gustavo Roth/Agência Preview/Folhapress)

Pode falar três novos autores brasileiros que você acha que estão trazendo uma nova forma de contar, na cena da Literatura contemporânea?

Tobias: “Uma pessoa que não é uma descoberta garimpada é a Luisa Geisler, uma autora que eu acho uma nova voz, sempre bem-vinda, porque ela tem um jeito de escrever que experimenta bastante com a linguagem. Ao mesmo tempo, ela escreve sobre contemporaneidade, sobre os personagens jovens vivendo nos dias de hoje e, enfim, eu sempre vou ler tudo que ela escrever até ela morrer. Tem um livro que saiu agora da Julia Dantas, ela publicou o segundo livro agora. O primeiro livro dela é Ruína y leveza, que é de 2015, e eu gostei muito. Ela é de Porto Alegre, e demorou 7 anos pra publicar o segundo, e eu estava esperando muito.” 

“Esse segundo, que se chama Ela se chama Rodolfo, é um livro lindo, que tu vê a sinopse e é sobre um cara que se muda pra um apartamento alugado e lá ele tem uma tartaruga. Ele precisa dar um jeito de se livrar da tartaruga. Quando eu vi a sinopse, eu não sabia se me interessaria tanto. Se eu não soubesse que a Julia Dantas é maravilhosa, não sei se iria comprar o livro. Mas aí, tu vai ler, e o livro é meio que uma jornada sobre identidade, sobre se conhecer, sobre meio que entender o que é ser um homem e vai acontecendo umas coisas super estranhas também. É um personagem desses que eu gosto, acontecem umas coisas estranhas e ele deixa acontecer e, enfim, Julia Dantas é uma grande mulher.”

“E, eu acho que o José Falero. É um autor que eu sempre cito, ultimamente, porque as coisas dele são sempre boas. Eu li Os Supridores primeiro e agora, por último, eu li o outro livro dele, de crônicas, que é o Mas em que mundo tu vive?, uma pedrada atrás da outra. A primeira crônica é sobre uma vez que ele tava trabalhando numa obra, em que ele tinha que carregar sacos de cimento, e ele solta umas frases do tipo, ‘ah, imagino que o leitor nunca tenha carregado um saco de cimento, mas se carregasse, ia saber que é bem pesado’. E tem isso ao longo de todo o livro, só que ele narra com uma linguagem… Ele é muito corajoso, na maneira de escrever, porque tem vezes que ele escreve um pouco mais erudito, mas tem outras que ele vai pra um registro super informal e sempre funciona, as coisas que ele escreve sempre funcionam. Às vezes, tu tenta escrever mais pra informalidade e fica meio brega, mas ele nunca erra no tom. Ele tá construindo, com poucos livros, uma obra muito foda que acho que vai ficar pra posterioridade. Então, recomendo.”

“Falar sobre relações humanas no meio desse caos ainda é o que me interessa” (Foto: Gustavo Roth/Agência Preview/Folhapress)

Sobre o romance que você descartou, tem uma entrevista na qual você cita que tinha algo a ver com uma galeria, como se uma pessoa olhasse por uma galeria do celular. O romance descartado foi esse? Pode falar um pouco sobre isso?

Tobias: “A ideia era que tu fosse percorrendo a galeria de fotos dessa pessoa e fosse descobrindo coisas sobre ela, então a galeria estava organizada que nem a galeria de fotos do nosso celular. Da foto mais atual para a mais antiga. Tu ia meio que vendo essa história de trás pra frente e descobrindo mais coisas sobre o personagem. Descobriria que ele tinha um caso, que ele tinha uma relação com uma mulher meio estranha, eles eram amigos mas o cara era abusivo com ela, e tu ia vendo isso através das fotos, só que no meio disso tinha boleto, umas fotos meio aleatórias. Enfim, foi um projeto que me fez aprender bastante sobre escrita, sobre o que eu quero fazer, sobre como funciona a ficção, e aprendi um pouco que não adianta só ter uma ideia legal, tu precisa saber executar aquilo e a história precisa ser interessante, precisa prender o leitor, porque era um livro que não prendia o leitor e eu fiz testes e não deu. E tudo bem.”

 

Você chegou a comentar sobre o romance que está escrevendo atualmente. Quais são as ideias e referências que cercam esse seu novo projeto?

Tobias: “Na pandemia, eu pirei muito na Sally Rooney. [O meu] romance fala sobre um menino que tem um namorado e eles tem um relacionamento aberto, e ele se envolve com um casal de meninos. Ele mora em Porto Alegre, ele é drag queen. A coisa do relacionamento aberto é um negócio que me interessa, eu nunca tive um relacionamento aberto mas acho que, na minha cabeça, faz sentido, de como a gente realmente se interessa por outras pessoas mesmo estando com alguém. Pensei em quais situações, o que acontece em um relacionamento aberto, que são diferentes de um relacionamento fechado, a coisa do ciúme, enfim, todas as inseguranças que vêm disso. É sobre esses quatro personagens e a relação deles.” 

“Acho que, no fim das contas, essas histórias que falam sobre relacionamento são as que me interessam mais, ou talvez seja a fase da vida que eu tô passando, mas daí entram assuntos no livro que eu acho que não estejam escritos o suficiente. Eu não li um livro que falasse sobre relacionamentos abertos e, talvez, seja um livro que, se eu soubesse que foi publicado, eu gostaria de ler. Tem uma frase que diz que a gente tem que escrever o livro que a gente gostaria de ler, que gostaria de ter na estante, então, estou indo meio pra esse caminho.”

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